O VAMPIRO DO CASTELO DE BRAM - Conto de Terror - Paulo Soriano
O VAMPIRO DO
CASTELO DE BRAM
Paulo Soriano
1
O peso opressivo
do luar, incidindo sobre os meus longos cabelos negros, escorria, num fluxo
impiedoso, caudaloso, nos meus ombros, impelindo-me para frente, como se eu
estivesse tocada pelo vento que precede as mais violentas tempestades.
Eu caminhava
sozinha — descalça e andrajosa — por uma estrada milenar, aberta pelos eslavos,
mas pavimentada pelos romanos, que ladeia os vales relvosos, salpicados de
árvores agulhosas. Sobre esses extensos vales, as montanhas escarpadas deitam,
eternamente, as suas sombras melancólicas, que azulam e amolecem ao luar. Eu
saíra de Vesta Verde quando anoitecera, já corroída pela fome e pelo cansaço. A
fria madrugada grassava e eu precisava buscar um refúgio para um merecido descanso.
Eu devia ter, de
alguma forma, errado o caminho. Porque, sob os meus pés descalços, a estrada
ganhara uma aspereza incomum, serpenteando para cima, galgando as encostas de
uma montanha cuja imponência a sombra da noite não deixava margem à imaginação.
O luzeiro que vi
adiante me animou. Assim, redobrei a intensidade de meus passos e em breve
alcancei o passadiço que conduzia aos portões de um castelo milenar, uma
estrutura negra, pesada, sulcada por estrias ancestrais, onde as sombras e as
heras adensavam e buscavam o lúgubre mergulho.
O luzeiro era,
na verdade, uma simples lanterna, que um homem idoso empunhava, em riste, em
uma das torres da construção secular. Decerto que ele me viu, porque não foi
necessário que eu tangesse as cordas que faziam girar os sinos da campainha.
Por uma abertura em arco, ao sopé da torre, o homem saiu ao meu encontro,
tomando-me pelas mãos. Eram mãos pálidas, incrivelmente frias, extremadas por
longas e amoladas unhas.
Quando o homem
ergueu a lanterna para subir as úmidas escadas de pedra, pude constatar que a
sua fisionomia era assustadora. Naquele rosto exangue, encimado por um crânio
completamente nu, dois olhos negros, duros, ornados de grossas sobrancelhas,
bailavam sobre olheiras violáceas. Elas caíam, desfalecidas, em dobras pesadas,
acima dos ossos salientes dos maxilares. O nariz era finíssimo, recurvo como um
gancho, e dos seus lábios eu nada pude ver, porque naquela ranhura tumular
insinuava-se apenas a brancura dos dentes pontiagudos. E como eram asquerosos
aqueles negros tufos de pelos desgrenhados, que se esgueiravam a partir do poço
escuro das orelhas pontudas, repuxadas como as de um demônio helênico!
— É tarde —
disse-me ele. — Já não tenho como te alimentar, pobre criaturinha bela e suja.
Mas te darei um quarto para o descanso, onde te envolverás nos flácidos vincos
de teu roto vestido. Fica a cela no cume da torre e logo lá chegaremos. Lá há
água, se tiveres sede. E há um catre pouco confortável. Desculpa-me a
franqueza, mas não costumo hospedar gente desconhecida. Nem mesmo os nobres,
como eu, gozam de minha hospitalidade, se não tenho como me certificar de sua
verdadeira origem e intenções.
Ao dizer isso,
logrou girar a chave no caixilho, fazendo-me menção para que entrasse. Foi o
que eu fiz. Imediatamente, a porta se fechou atrás de mim.
— Chamo-me
Dragos Valicescu, sou o Terceiro Conde de Bran, e vivo completamente só —
disse, enquanto descia vagarosamente as escadas. — E não me esperes pela manhã,
porque sou notívago e odeio a luz do Sol — concluiu, com um quê de
sensualidade malévola em sua voz de animal.
O conde partiu.
Estava quase
amanhecendo quando fechei o único postigo do quarto da torre e procurei descansar
no desconforto daquele catre infeliz, onde a escuridão cairia sobre mim como
uma negra mortalha, pegajosa e fria.
2
Quando
despertei, já anoitecera. O postigo da torre achava-se escancarado e sobre o
parapeito ardia um enorme círio, cuja ereta chama não se movia. A porta do
quarto jazia aberta, e a silhueta longilínea de Dragos, o Conde de Bran,
desenhava-se como uma sombra nefasta a enturvar os umbrais.
— Tu deves estar
faminta — disse-me ele. — Aproxima-te de mim, linda e desolada jovem, que eu te
trouxe algo de comer.
De fato, eu
estava faminta. Extremamente faminta. Certamente, em toda a Valáquia, não
haveria um ser mais faminto do que eu. Tomei a bandeja de carnes e frutas que
ele trazia e a depositei sobre a cama. Mas não me debrucei sobre a iguaria.
— Dá-me um beijo
em agradecimento — ele exigiu, em tom feroz.
O Conde avançou,
tomou-me pelas mãos, e mergulhou o arremedo de lábios em minha boca, sorvendo a
minha saliva com uma fúria bestial. Seus longos dentes tremiam numa convulsão
atroz.
Ao contato da
língua daquele homem decrépito, a minha fome recrudesceu. Sim, recrudesceu
assustadoramente. Quase tremi, assaltada por uma ansiedade ensandecida, por uma
compulsão tão premente que somente os animais mais ferozes podem experimentar.
E, num frêmito, os meus dentes caninos, até então retraídos, deslizaram celeremente,
conformando-se em presas amoladas, próprias a perfurar e dilacerar.
Depois do beijo,
veio o peso opressivo do luar, que se infiltrava pelo postigo aberto. Incidindo
sobre os meus longos cabelos negros, o luar escorria, num refluxo impiedoso,
caudaloso, nos meus ombros, impelindo-me à garganta do Terceiro Conde de Bran,
onde minhas presas aguçadas afundaram profundamente e de onde eu extraí a
seiva morna, densa, repleta de delícias, que saciou a minha fome infinita. E
pouco me custará a encontrar a cripta do castelo, que doravante será minha;
lá, regenerada, dormirei profundamente, por vários dias, o meu tranquilo sono
de morte.
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