O JANTAR DO JAGUARU - Conto Clássico de Terror - Anônimo do Século XX
O JANTAR DO
JAGUARU
Anônimo do século XX.
Dizia-se
que aquela vivenda — como encravada pelo próprio Anhangá entre o capinzal
bravio o lameiro pestilencial das águas estagnadas — era o antro infecto onde
habitava um animal estranho com aspecto de lobo, meio homem, meio cachorro.
Por
isso, enquanto a expedição ia se aproximando da antiga fazenda em procura de um
refúgio protetor da tormenta que se avizinhava ameaçadora, assegurava-se que
ninguém se aproximaria do ranchinho de estacas nem por todo o ouro do mundo.
O
vaqueano da expedição, Aquilino Rodrigues, era um guasca de boa marca.
Chamavam-no Enguia, em alusão a sua extrema magreza e agilidade.
Há
dois dias que caía uma chuva fina e pertinaz.
Na
cozinha da fazenda, onde a peonada se reunia obrigada pelo mau tempo, o
capataz, tipo indiático, baixo e atarracado, pescoço de touro, tinha a palavra.
Esgotados
já todos os assuntos, a conversação esfriava, quando inesperadamente alguém
falou do lobisomem.
—
De uma feita — comentou um jovem mestiço — eu enxerguei o danado. Foi
uma coisa bárbara!... Caramba! Daí para cá nunca mais passei de noitinha pelos
caraguatás...
—
E que tem que vê os caraguatás? — disse o capataz.
—
Como?... Você não sabe? — protestou, assombrado o peãozinho. — Mas se onde há
caraguatás, sempre andam lobisomens.
Ante
o gesto de incredulidade do auditório, riscando com uma varinha no solo úmido a
marca do seu cavalo favorito, o moço deixou cair esta frase, cheia de
arraigadas convicções:
—
Bem! Eu vi. Se não era lobisomem, quem era pois?
O
Enguia que andava às voltas com o chimarrão grunhiu algo:
—
Então seria o jaguaru...
Nesse
instante, por trás do mato próximo, o alerta do quero-quero cortou
plangentemente o ar da tarde pardacenta.
De
dentro e sem olhar, o capataz deu a frase sacramental de boas-vindas:
—
Apeie-se, amigo!...
Ninguém
respondeu.
Fazendo
calar os cães, que se começavam a alvoroçar, o peão saiu então para o pátio, chapinhando
na lama e o chapelão enterrado até os olhos.
Não
tinham transcorridos senão breves instantes, quando regressou, todo alvoroçado
e com os olhos desmesuradamente abertos:
—
Parece mesmo um defunto... O lobisomem que eu vi recenzinha...
Mais
por curiosidade do que convencidos pelas palavras do moço, os peões saíram à
esplanada que formava o pátio da fazenda até chegar ao bosquezinho de luzernas,
junto ao curral.
Um
ser estranho, de uma imobilidade estatuária, detivera-se naquele lugar.
Vestia
um couro como original combinação de avental e chiripá amarrado à cintura.
Os
restos de uma baeta vermelha e desbotada serviam-lhe de poncho e constituíram
toda a sua vestimenta. Não usava chapéu. Umas melenas compridas e lisas
caíam-lhe até os ombros, dando-lhe um cunho selvagem.
Contudo,
o que fazia daquele ente extraordinário uma aparição verdadeiramente fantástica
era o rosto. Sumidos no mais profundo da cavidade orbitária, seus olhos quase
circulares, pretos e sem brilho, pareciam olhos de morto. Os incisivos e
caninos, muito amarelos e compridos como presas, à semelhança de certas feras
encolerizadas, assomavam pelos lábios entreabertos num rito de ferocidade
intensa.
Quando
a peonada, temerosa e em silêncio, foi-se aproximando daquela estranha
deformidade antropológica, puderam observá-lo detidamente.
Braços,
pescoço e pernas descarnados faziam contraste repugnante com o desenvolvimento
abdominal. Tinha o ventre enormemente crescido, como o dessas aranhas pançudas,
repelentes em sua pesada rotundidade
As
unhas das mãos — aduncas, compridas e fortes como garras — davam-lhe o aspecto
genuinamente característico do animal que se alimenta de carne deteriorada.
Tudo
nele era cadavérico, desconexo, macabro.
Um
dos peões, procurando gracejar, disse:
—
A água se mete na toca das preás e elas vêm para as beiradas... Chê, que é que
tu andas querendo?...
A
figura espectral olhou para os lados em atitude receosa de fera encurralada e
guardou silêncio.
E
como a peonada a rodeasse para melhor observá-la, apressou-se em apertar
fortemente com uma das mãos um saco que conservava debaixo do braço.
Descia
a noite. Ressoou, em breve, na opaca amplidão, queixoso, o balido de uma
ovelha. E enquanto o murmúrio da enchente ascendia do fundo tenebroso do
banhado, o capataz ordenou bruscamente:
—
Vamo churrasqueá.
O
desconhecido permaneceu breves instantes imóvel ainda. Depois, começou a tremer
entrechocando os dentes. Demonstrava estar profundamente fatigado, pelo que o
capataz com comiseração:
—
Achegue-se... churrasqueamo? — convidou-o.
Uma
espécie de grunhido gutural foi a resposta. Avançou como um autômato, sempre
apertando o saco que levava debaixo do braço. Dirigiu-se para a cozinha onde já
se sentia um perfume de carne assada.
Ao redor do fogão da vasta sala campeira, o
pessoal do estabelecimento aguardava o instante do jantar tradicional.
Silencioso
e esquivo como sempre, o velho Enguia viu aparecer, recortada no limiar da
porta, a silhueta extravagante do estranho visitante. Tossiu e resmungou algo
entredentes.
Como
um animal astuto arisco, olhando com persistência as brasas do fogão onde
dourava o assado, penetrou o personagem mudo e no desvão mais escuro deixou
cair o saco e acocorou-se junto dele.
O
mau tempo aumentava. Lívidos relâmpagos, de luz violeta, iluminavam com clarão
sinistro o vale onde a cheia ia adquirindo proporções extraordinárias.
Aonde
irá parar a casa e o jaguaru com a correnteza que traz o rio? — comentou
um dos peões, olhando receosamente o desconhecido.
Dispunha-se
a responder um em caboclo, quando de repente o capataz, pondo o chapelão na
nuca, aspirou o ar e, fazendo um gesto de asco, disse:
—
Animal morto... Algum animal imundo do banhado...
—
É mesmo — corroborou outro peão. Fede a carcaça...
O
velho Enguia interrompeu o diálogo.
Entornando
o chimarrão que dispunha a sorver, ergueu-se alto e ereto como um bambu.
Sem
pestanejar, por pouco tempo, olhou demoradamente para o desconhecido que, nesse
momento, esgaravatava com a das mãos o interior do saco e em a outra levava à
boca pedaços de carne.
Contemplou-o
assim, com seu riso indefinível, e de repente, dando um salto verdadeiramente felino,
como um gato montês, arrebatou-lhe o saco de um puxão e esvaziou no solo o
conteúdo.
Um
grito de louco, misto de dor e de medo, que nada tinha humano, deixou ouvir a
esquálida figura acocorada no canto da cozinha. Quis então fugir. Enguia,
porém, embargou-lhe a cabeça para trás. Olhou-o vivamente e, com a outra mão,
assim parado, enterrou-lhe até o cabo da faca na garganta. Depois, com um
violento impulso, seccionou-a com um só talho.
O
estranho levou as mãos ao pescoço, cambaleou como um bêbado e caiu para a
frente, batendo pesadamente com a cabeça nas brasas, que espalharam uma nuvem
de fagulhas com vespas de ouro.
Junto
ao cadáver do grande nefário, cuja cabeça se tostava na fogueira, espalhando um
cheiro nauseabundo, jazia o corpinho nu de uma criancinha de dois anos de
idade, o ventre inchado e o rosto tumefato delatando a existência de uma morte
ocorrida havia muitos dias.
O
pequeno cadáver tinha mutilados os músculos dorsais e parte dos braços como se
uma ave de rapina lhe houvesse arrancado a carne até os ossos, numa ânsia
voraz.
Aquilo
era o jantar do jaguaru.
O
lobisomem das noites tormentosas da floresta e do paul — o cão-lobo, o
jaguaru, desenterrador de cadáveres, cevando-se insaciável, ao arrancá-lo da
terra ainda frouxa, para depois saborear o espantoso banquete de carne humana
num jantar macabro...
E,
no umbral da porta, o velho Enguia recostou-se tranquilamente.
Entretanto,
a chuva, compassada e lenta, ia caindo como um sudário de lágrimas, sobre a
noite negra.
Fonte: Almanaque do
Terror nº 3, Editora Bloch, edição de janeiro de 1986.
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