O LOBISOMEM - Conto Clássico de Terror - Viriato Padilha
O LOBISOMEM
Viriato Padilha
(1866 – 1923)
Viajava
eu por uma dessas estradas de serra abaixo, tão incômodas pelos constantes
lameiros e pântanos que nelas se encontram, nos quais os cavalos enterram-se,
às vezes, até os peitos.
Descambava
o Sol para o ocaso, e já me sentia enfadado com a monotonia da paisagem baixa,
uniforme, apresentando sempre os mesmos mangues de vegetação arcaica, que
recordam a de épocas geológicas decorridas, a mesma pobreza de culturas, os
mesmos ranchos de sapé atufados na capoeira e com um magote de crianças magras
e lambuzadas à porta.
O
meu camarada (é este o nome que se dá ao criado que acompanha o viajante e
trata dos animais) nascera, por ali mesmo em Iguaçu ou Itaguaí. Conhecia a
palmo as paragens que atravessávamos, e de quando em vez esclarecia-me sobre
aquela insípida região, prestando-me informações interessantes acerca dos
bípedes que por ali viviam.
Cândido
era o nome do meu camarada, que também acudia ao chamado de Bigode, alcunha que
lhe haviam posto.
Era
um mulato de testa estreita, olhos apertados, com falta de dentes na frente da
boca, e magro. Não sabia ler, nem escrever, porém tinha feito muitas viagens
pelo interior dos estados do Rio de Janeiro e de Minas, e nelas adquirira certo
traquejo da vida. Era sobretudo muito loquaz, dessa loquacidade da gente do
povo, pouco embaraçosa no emprego das frases, rústica, desataviada, porém viva,
e muitas vezes originalíssima pelo emprego de imagens e conceitos
interessantes. Era, em suma, um excelente companheiro de viagem.
Caminhando,
chegamos a uma pequena, porém bem construída casa em que se achava em completo
abandono. A casa achava-se rente com a estrada e tudo indicava que ali não
residia ninguém haveria já anos. Uma das janelas da sala da frente tinha sido
arrancada e estava por terra; o vento havia levantado algumas telhas; e
abundante vegetação invadia o pequeno terreiro e cobria os três degraus que
conduziam à porta principal da habitação. Aos lados via-se uma engenhoca de
moer cana e uma roda de farinha, porém tudo a desaparecer quase por baixo das
tiriricas e outras ciperáceas, bem como abafando-se sob longas espatas
desprendidas do velho coqueiro de indaiá.
Causou-me
admiração ver em tal estado de abandono uma morada que parecia oferecer regular
conforto, quando, no entanto, miseráveis palhoças, esburacadas e mal cobertas,
achavam-se atulhadas de gente. Nesse sentido dirigi uma pergunta ao meu pajem:
—
Diga-me, sr. Bigode, por que motivo se vê em tal lastimável abandono esta
excelente casa?
—
Eh, patrão! — respondeu-me Bigode, que parecia ter esperado por esta
naturalíssima interrogação. — Essa é a
casa do lobisomem. É muito conhecida. Até já saiu nas folhas do Rio. Depois que
o lobisomem desapareceu, ninguém mais quis morar aqui. No entanto, é pena, pois
em toda esta redondeza não há uma casa tão boa, nem terras que deem melhor
mandioca e melhor cana. Mas... que quer vosmecê? Quando o povo cisma com
qualquer cousa, acabou- se, não há nada que lha tire da cabeça.
—
Então, sr. Bigode, esta casa pertenceu a um lobisomem?
—Sim,
senhor; um lobisomem, e daqueles verdadeiros mesmo. Foi desencantado pelo Juca
Bembém, que era camarada do velho Moura. Conheci muito o Juca; pra um pé de
viola, não havia outro.
—
E há mesmo lobisomens, sr. Bigode?
—
Eh, Patrão! — exclamou o caipira, como que admirado da minha crassa ignorância
ou estúpida incredulidade. — Pois vosmecê ainda pergunta. Há lobisomens e de
muitas qualidades. Eu mesmo, que aqui estou, já tenho topado com eles nas
sextas-feiras, mas comigo nada podem. Trago no pescoço uma oração que é mesmo
um porrete bendito para tudo que é cousa má. Ora patrão, vosmecê perguntar se
há mesmo lobisomens?! Toda mulher que tiver sete filhos machos, pode ter
certeza que um deles vira lobisomem. E, sendo sete meninas, uma, mais cedo ou
mais tarde, vira bruxa. O lobisomem, patrão, é o dízimo do Diabo.
À
vista de definição tão explicita, não me era possível duvidar mais da
existência do lobisomem. Envergonhei-me até da incerteza em que me achava
acerca da realidade de personagem de existência tão comprovada, e pedi ao
Bigode que me contasse a história do lobisomem que outrora habitara a casa cujo
abandono agora me admirava.
Afinal,
tinha descoberto o meio de dissipar o tédio de uma viagem por sítios tão sem
perspectiva e mais que monótona paisagem.
A
história é pouco mais ou menos a que os leitores vão ler.
*
* *
O
sr. Basílio de Moura era um lavradorzinho remediado e pai de alguns casais de
filhos, todos já afamiliados. Apenas restava na casa paterna a caçula, d.
Cecília, moça regularmente bonita.
Enamorou-se
dela Joaquim Pacheco, um dos sete filhos varões do velho Pacheco, negociante de
secos e molhados em Marapicu. Joaquim Pacheco, ou antes Quincas Pacheco, era um
rapaz sem defeitos, e com um começo de fortuna. Já se vê que constituía um bom
partido; e tendo nisso concordado o velho Moura e a filha, ajustou-se o
casamento, sendo este logo realizado, não obstante apresentar o noivo intensa
amarelidão, que fazia recear por sua saúde. Mas, em serra abaixo, quem não
sofre mais ou menos do fígado? E quem tem cores vivas?
Assim,
não foi estorvo ao enlace matrimonial a palidez do Quincas Pacheco. Fez-se o
casamento e os novéis esposos foram residir na asseada casinha que me havia
chamado a atenção pelo seu prematuro abandono, e que ficava pouco distante da
do velho Moura, ali um pouco pra dentro. As extremas do sítio de um emendavam
com as de outro.
O
casamento fizera-se em um sábado, e nos primeiros dias não houve cousa de
importante a relatar-se. Os casadinhos saboreavam a sua lua de mel como todo
mundo; abraçavam-se, beijavam-se a todo instante, faziam castelos no ar...
Mas,
na primeira noite de sexta-feira, que passaram juntos, isto é, sete dias depois
do enlace matrimonial, começou a complicar-se a situação dos cônjuges.
Achava-se,
d. Cecília acordada, isso por volta da meia-noite, quando sentiu o marido
apalpá-la como se procurasse verificar se ela estava realmente adormecida, e,
assim julgando, esgueirou-se por entre os lençóis, dirigiu-se devagarinho para
a porta, abriu-a e saiu para o terreiro.
Só
quando o dia vinha rompendo é que Quincas Pacheco, com o corpo frio como o
focinho de um cão, voltou para o leito conjugal.
D.
Cecília ficou apreensiva com essa ausência noturna do marido. “Seria possível
que logo, na primeira semana casado, Quincas Pacheco a abandonasse para ir
procurar alguma descarada?! Isso seria horroroso!...”
Mais
admirada ficou D. Cecília ao observar no dia seguinte que o marido se achava
mais pálido que de costume, que seus olhos tinham um fulgor de singular
estranheza, que se havia tornado taciturno e procurava evitá-la.
Efetivamente,
Quincas Pacheco achava-se muito alterado em fisionomia e modos, e assim se
conservou por três longos dias. No quarto, porém, voltou um tanto ao antigo
estado, e D. Cecília, com muito boas maneiras, procurou saber dele o motivo,
porque se ausentara do leito conjugal durante a noite de sexta-feira. Mal, no
entanto, pronunciou a rapariga as primeira palavras sobre esse assunto,
encheu-se Quincas de inexplicável furor e, arrancando-se brutalmente dos braços
da esposa, foi sentar-se meditabundo na porta do quintal, onde passou todo o
resto do dia, sem querer comer nem beber.
D.
Cecília mortificou-se extremamente com tal procedimento. Era, porém, excelente
criatura e, compreendendo que aquele assunto desgostava o marido, evitou daí
por diante falar mais nele, ao mesmo tempo que, por inteligentes carinhos se
esforçava por arrancá-lo do pesado silencio em que ele se engolfara. Assim
restabeleceu-se um pouco a tranquilidade no casal. D. Cecília fizera o
sacrifício de seu orgulho e curiosidade em benefício da harmonia do lar.
Isso
durou uns três dias. Na sexta-feira seguinte, porém, quando o relógio americano
que havia na sala de jantar vibrara as doze horas da meia-noite, Quincas
Pacheco, tal como fizera na sexta-feira anterior, tornou a deslisar mansamente
da cama e, ganhando a porta da rua, pôs-se no mundo. Só voltou quando os galos
começavam a cantar.
D.
Cecília, que por ter o sono muito leve despertara quando o marido fizera girar
a chave na fechadura, ainda mais incomodada ficou do que da outra vez e, no seu
leito solitário, revelou-se cheia de impaciência e desgostos até a chegada de
Quincas.
—
Com certeza Quincas Pacheco tinha alguma amante — pensava ela —, e as
alterações que nele havia observado não eram outra cousa senão o arrependimento
de se ter casado com ela. Fizera-se o enlace tão apressadamente!... Quem sabia
das suas desgraças com outras mulheres?
No
dia seguinte, Quincas Pacheco estava lívido e o seu olhar terrivelmente
sombrio. Cecília quase o desconheceu. Seu marido não falava, pouco comia, e, às
vezes, soltava uns grunhidos singulares, que mais se assemelhavam aos de um
porco do que sons produzidos por garganta humana. À noite, querendo ela
afagá-lo, Quincas repeliu-a com modos bruscos. Era um homem completamente
diferente do da primeira semana, pois, embora sempre fosse um tanto tristonho,
mostrara-se até então delicado e carinhoso para com ela. Depois de pensar
durante algumas horas sobre o que devia fazer, d. Cecília, resolveu levar ao
conhecimento do pai o que se passava de extraordinário em sua casa. Assim,
dirigiu-se à roça do velho Moura, no domingo, e foi só, pois Quincas Pacheco
não quis acompanhá-la. Aí chegada, referiu ao pai todos os seus desgostos,
tornando-o ciente da conduta mais que irregular do esposo.
O
ancião, que não esperava arrufos entre casadinhos de fresco, ficou atônito ao
ouvir as queixas da filha, e mais ainda a natureza delas. Assim, depois de
coçar a cabeça por algum tempo, o que nele era sinal de grande embaraço,
disse-lhe:
—
Minha filha, aí anda cousa muito séria, talvez mais do que pensas. Não é
possível que o rapaz saia para procurar mulher, pois sabes melhor do que eu que
nestas redondezas não há nenhuma vida má, e demais Quincas é ainda muito novo
no lugar para que pudesse formar já relações de tal natureza. Olha, faz o que
te digo. Não dês por achada, continua a tratá-lo bem, nada lhe fales sobre os
seus passeios às tantas da noite, e, à primeira vez que ele tornar a sair,
acompanha-o de longe, e informa-te por ti mesma o motivo de seus giros. É o
mais prudente. Nada de juízos temerários sobre o pobre rapaz.
Aceitou
d. Cecília o conselho paterno, e, voltando para casa, esforçou-se por bem
tratar o esposo, que se mantinha sempre no seu pesado mutismo, e continuava a
assombrá-la com seus modos bruscos. D. Cecília tragou tudo com a maior
resignação. No entanto, sentia percorrer-lhe todo corpo um calafrio quando
Quincas soltava o grunhido estranho que principiara a emitir logo depois do
primeiro passeio. Estaria doido o infeliz?
Viviam
assim os dois até que chegou a outra sexta-feira, e, como já havia sucedido nas
duas antecedentes, Quincas Pacheco, logo que no relógio de parede o tímpano
vibraram doze pancadas, esgueirou-se sorrateiramente da cama, abriu a porta e
ganhou o mundo.
Logo
após d. Cecília, que por prevenção se achava acordada, enfiou um roupão de lã
cinzenta que possuía, embrulhou-se num xale da mesma cor, e saiu para fora de
casa o mais lestamente possível, a fim de não perder de vista o esposo.
Era
noite de Lua cheia e tudo estava claro: fácil lhe foi conseguir avistá-lo
Quincas achava-se encostado ao oitão da casa e, ali, demorou-se alguns minutos,
como se estivesse formando um projeto.
Depois
dirigiu-se lento, cabisbaixo e muito triste na direção de um telheiro onde
dormiam os porcos; e, ao aproximar-se dele, começou a emitir os singulares
grunhidos que tanto haviam apavorado a moça. Esta o acompanhava à distância.
Sempre
grunhindo, Quincas Pacheco aproximou-se do telheiro e os porcos, ao
pressenti-lo, levantaram-se e fugiram. Então, Quincas Pacheco tirou a roupa, e,
atirando-se na poeira que servia de leito aos bacorinhos, espojou-se longo
tempo, sempre grunhindo ferozmente.
D.
Cecília não sabia que pensar do que estava presenciando. Parecia-lhe que o
marido havia enlouquecido repentinamente, e ainda não tinha voltado do seu
grande espanto quando viu Quincas Pacheco erguer-se, não sob a figura humana,
porém, sim, transformado em um grande porco, de cerdas eriçadas e prezas
salientes, o qual pôs-se logo de pé e começou a bater os dentes e a abanar as
orelhas de uma maneira horrível!! Os olhos dessa cousa monstruosa luziam como
brasas, e dentuça branca, cerrada e pontiaguda destacava-se no negrume dos
pelos.
D.
Cecília, levada ao auge do assombro, não pode reprimir um grito, e a estranha
alimária, assim que o ouviu, levantou a grande e pesada cabeça, farejou por
alguns instantes e depois avançou para o lugar em que a rapariga se achava.
A
moça, com toda a força de suas pernas e extensão de seu fôlego, bateu em
retirada para casa. Quando, porém, alcançava o terreiro, já o monstro tinha
dado a volta à habitação, e cercava-a pelo outro lado.
O
grande medo que se apoderou da jovem deu-lhe forças para voltar por onde tinha
vindo e, chegando ao alpendre de porcos, enfiou pelo caminho que conduzia à
casa do pai. Corria a mais não poder, e a fera sempre a acompanhá-la. Dez
minutos durou a perseguição, e de uma vez o porco chegou a deitar-lhe os dentes
no roupão de lã, que se rompeu com o esforço empregado pela moça. Afinal, d.
Cecília, sem afrouxar a carreira, chegou à beira de um regato que atravessava o
caminho e o traspôs de um salto. O monstro ia-lhe ainda ao enlaço, mas, ao ver
a água, estacou e retrocedeu, sempre batendo os dentes.
Já
era tempo também. A moça estava quase a cair de cansaço; tremiam-lhe as pernas,
ofegava, um suor frio corria-lhe pelas fontes e estava quase para tombar sem
alento na estrada, quando ouviu uma voz que cantava:
Tomara que o mato seque,
Quero vê que as cobras come;
É cousa que causa espanto
Vê muié passá sem home.
Oh! Minha senhora dona,
Que tristeza e que pená!...
A chinela de um paulista
Numa sala faz chorá.
A
moça reconheceu logo essa voz: era do Juca Bembém, camarada da casa de seu pai.
E, assim que este se aproximou dela, pediu-lhe que a levasse para junto do
velho. O rapaz, muito admirado por vê-la àquela hora na estrada, obedeceu-lhe
imediatamente.
Dali
à casa do Moura apenas distavam alguns passos.
Ao
entrar na sala da casa paterna, Cecília estava pálida como uma defunta.
O
velho Moura, acordado em sobressalto, assim que percebeu a filha em tal estado,
recuou assombrado, mas logo acercando-se dela, com solicitude, perguntou-lhe o
que havia acontecido.
Cecília,
depois de um quarto de hora em que não pode articular palavra, contou-lhe com
voz sumida toda a história da transformação do marido em porco e, bem assim, a
forma pela qual fora perseguida até o riacho do caminho.
Basílio
de Moura ficou de boca aberta ao ouvir tão espantosa narração, e como que sem
coragem para pronunciar a terrível palavra que logo lhe acudira à mente.
Contudo, Juca Bembém, que também ouvira a história, logo que a moça chegou ao
episódio do riacho, exclamou com vivacidade:
—
D. Cecília, desculpe se ofendo sem querer, mas seu marido é lobisomem!
—É
verdade — confirmou o velho Moura consternado, porém animado pela entrada de
Juca. — É verdade, minha filha. Que desgraça! Quincas é lobisomem!
Esta
cena muda durou alguns instantes, e decorridos eles, Juca Bembém deu alguns
passos para a moça e disse-lhe com decisão:
—
Senhora D. Cecília, enxugue o seu pranto; Deus dá remédio para tudo e eu lhe
garanto que hei de desencantar seu marido.
—
Hei de desencantar seu marido, custe o que custar. Muita gente já tem feito o
mesmo e eu não hei de ser dos mais caiporas, se Deus e Nossa Senhora da
Conceição me ajudarem. D. Cecília, peço-lhe que não volte esta semana e a
seguinte para sua casa e deixe o resto por minha conta. Na sexta-feira vou ver
o bruto. Entretanto, se ele cá vier amanhã, digam-lhe que vou morar com ele
alguns dias. Vosmecês inventem o que quiserem para ele não desconfiar.
E,
dizendo isso, Juca Bembém despediu-se dos dois e retirou-se. Percebia-se no seu
semblante que havia formado uma resolução inabalável.
No
outro dia, logo pela manhã. Quincas Pacheco veio à casa do velho Moura buscar a
mulher. Esta, ao avistá-lo soltou um grito de horror... É que nos dentes do
marido via pregados alguns fiapos do seu roupão de lã cinzenta. Não havia mais
que duvidar. Quincas Pacheco era lobisomem.
Logo
em seguida, porém, tranquilizou-se, e disse ao marido que não podia ir para
casa, porquanto seu pai se achava doente e não tinha quem o tratasse.
Efetivamente, o velho Moura, com o abalo que sofrera, caíra de cama. Disse mais
a moça que tinha combinado com Juca Bembém que, enquanto seu pai se conservasse
enfermo, fosse ele para o sítio, a fim de fazer-lhe companhia, preparar-lhe a
comida e tratar da criação.
Quincas
Pacheco achava-se de uma lividez de cadáver e durante o tempo que a mulher lhe
falara, nem uma só vez lhe tirara o olhar. Assim que ela terminou a sua
explicação, Quincas, embora fazendo grande esforço para reprimi-lo, soltou um
grunhido rouco,convulso, e retirou-se bruscamente.
***
Com o piedoso intuito
de desencantar o lobisomem, Juca Bembém, conforme ficara combinado, fora viver
com Quincas Pacheco.
É crença geral que se fazendo sangue na pessoa, quando ela se
acha transformada nesse animal fantástico, o Diabo vem lamber o sangue,
considera-se pago o seu dizimo, e a pessoa isenta-se do seu sombrio fadário.
Ora,
Juca Bembem sentia-se com coragem para travar combate com a fantástica alimária
e feri-la.
Nos
primeiros dias de sua permanência no sítio de Quincas, nada houve de anormal.
Pacheco, sempre muito sombrio e melancólico, evitava falar com o camarada, mas
este não se dava por achado e ia fazendo silenciosamente as suas obrigações,
até que chegou a fatídica sexta-feira.
Juca
Bembém dormia na sala, em uma rede, e, por precaução, nessa noite resistiu ao
sono, e nem ao menos despiu-se. Quando o relógio bateu doze horas, ouviu ruido
no quarto do patrão. Daí a pouco, este assomou à porta e, dirigindo-se para a
da rua, abriu-a e saiu. Juca Bembém fez outro tanto, armando-se de uma fouce
bem amolada, que de antemão tinha encostado à parede, e acompanhou Pacheco.
Este
foi direitinho ao alpendre dos porcos, grunhindo pelo caminho. Ali chegado,
despiu-se, e atirou-se à poeira, esponjando-se nela em todos os sentidos, e
pouco depois erguia- se transformado em porco. Juca Bembém sentiu os cabelos se
arrepiarem na cabeça, mas não perdeu o ânimo e, dirigindo-se para o monstro,
gritou-lhe em voz ameaçadora:
—
Hoje é comigo, lobisomem!
O
porco levantou a cabeça, bateu as grandes orelhas pendentes e lançou-se sobre
Bembém. Este, que se achava prevenido, de um salto evitou o esbarro.
Voltou
o porco ao ataque, porém Juca tornou a furtar-lhe o corpo, e quando, pela
terceira vez, a fera investiu contra ele, o destro caipira vibrou-lhe a foice
pelo fio do lombo, e a arma, pegando em uma das orelhas do lobisomem, fez dela
jorrar um grande esguicho de sangue.
Imediatamente surgiu em
frente do rapaz Quincas Pacheco e desapareceu o porco. Quincas Pacheco estava
extremamente pálido e cansado.
—
Que é isso, patrão? — exclamou Juca Bembém. — Perdoe-me se o feri!...
—
Ah, meu bom amigo — respondeu-lhe com voz cava Quincas Pacheco —, que grande
serviço te devo! Livraste-me de um penoso e miserável fadário. Graças à tua
coragem, deixei de ser lobisomem. Anda comigo, quero recompensar-te
generosamente.
E
partiu para casa. Ao chegar ao terreiro, Pacheco virou-se para Bembém e
disse-lhe:
—
Espera-me aqui. Vou buscar uma “molhadura” para recompensar o teu grande
serviço.
Juca
Bembém ficou esperando. Pacheco entrou em casa. Daí a pouco assomava à porta,
mas a “molhadura” que trazia era uma espingarda carregada e, antes que Bembém
pudesse fazer um movimento para fugir, pregou-lhe um enorme tiro, quase a
queima roupa.
Juca
Bembém, caiu, e daí a três dias entregava a alma a Deus. Haviam-lhe entrado no
corpo dezesseis caroços de chumbo grosso.
Desde
esse dia também nunca mais ninguém via Quincas Pacheco. Consta que fugira para
os sertões de Minas de Goiás.
—
Agora — disse-me Bigode, depois de terminar a história que para aqui
transportei, somente alterando um pouco a linguagem —, Juca Bembém morreu
porque não sabia de todas as manhas do bicho. Ele devia ter espetado a foice no
chão, posto nela o seu chapéu e o casaco, e esconder-se a um canto. O outro
dava-lhe o tiro que não pegava, e então seria obrigado a dar-lhe o dinheiro que
lhe prometera. Não sabem das cousas e querem se meter nelas! Não, que
desencantar um lobisomem tem suas histórias! A pessoa, depois que se livra
daquele fado ruim, fica envergonhada e, se pode, dá cabo de quem a desencantou.
Coitado do Juca Bembém, era tão bom rapaz, e valente até ali!...
—
E d. Cecília, qual foi seu destino? — perguntei, interessado pela sorte da
infeliz esposa do lobisomem.
—
D. Cecília — respondeu Bigode — nunca mais quis habitar sua casa. Os cabelos se
lhe embranqueceram de todo dentro de um mês, e pouco depois começou a tossir e
a deitar escarros de sangue pela boca. Estava sofrendo do peito, e seis meses
depois da morte de Juca Bembém e do desaparecimento de Quincas Pacheco, dava
ela sua alma aos anjos. Basílio de Moura ainda é vivo; sofreu muito, mas o
patrão bem sabe que gente velha tem couro duro para desgostos. Já está
quilotado.
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