O MANTO - Conto Clássico Macabro - Alphonsus de Guimaraens
O MANTO
Alphonsus de Guimaraens
(1870 – 1921)
Ao
levantar-me da cama, onde me prendera uma cruel enfermidade de meses, eu não
tinha decerto o aspecto de um vivo. Magro e nervoso por natureza, de uma
irritabilidade histérica, a minha vida de enfermo passara-se debaixo de um
tédio pesado como uma abóbada de chumbo, algumas vezes interrompido por
intervalos de mágoa inanimada em que o meu olhar olhava sem ver e o meu
pensamento fugia para fora de mim mesmo, perdendo-se por entre as sombras intangíveis
dos grandes desesperos.
O
crepúsculo de maio, indeciso como tudo que se passa longe de nós, no mistério
religioso dos horizontes sem margens, era uma consolação sublime que tombava
sobre as almas. Certo, quem fechasse para sempre os olhos em aquela hora que ia
soar, cercado por toda aquela paz de convento desabitado, não podia deixar de
transformar-se em luz e bênçãos.
Com
passos incertos de quem atravessa o primeiro período de convalescença, eu segui
vagarosamente para o alto do Morro da Forca, lugar sombrio e deserto, onde as
lendas parecem passar sacudindo cabeças sangrentas.
Vila
Rica, olhada de aquele ponto, era um monte de ruínas. Só as igrejas, abençoando
a velha capital da poderosa capitania, triunfavam no meio daquelas ruas
íngremes, onde as casas cambaleavam.
Foi
então que ele me apareceu pela primeira vez.
Alto
e ossudo, o rosto cor de cobre gotejando aguardente, as mãos musculosas dos
antigos — a sua figura sem contornos evocava espectros vadios. Hortaleiro
fúnebre era esse, que plantava corpos de virgens para colher pó...
Com
um sorriso infame na boca sem dentes, as palavras saltando-lhe dos lábios
úmidos de saliva, chegou-se a mim curiosamente. Um tremor convulso de nervos
doentes agitou-me o corpo sem carne.
O
homem extraordinário, que surgira inesperadamente, trazia, debaixo do braço
esquerdo, um longo pano negro enrolado. Colocou-o no chão, sentando-se ao meu
lado. Levantei-me sem saber como, impelido pelo pavor que se apoderara de mim.
Arrimado ao bordão, arrastando os pés, fui caminhando sem olhar para ele. No
entanto, eu bem sentia o som de seus passos que me acompanhavam, e, de quando
em quando, a sua sombra que se alongava diante de mim, ao Sol pardo da tarde em
agonia.
Parei,
cansado.
—
Espere, meu amo. O que trago aqui debaixo do braço pode-lhe servir. O senhor
está bem mal, e o frio destas noites de maio não é bom. Eu não tenho interesse
em dar-lhe conselhos porque vivo disso. Que ganho em dar-lhe a vida? Se fosse o
contrário, bem. Mas o meu amo é tão moço! O meu embrulho...
—
Deixa-me, por Deus!
— Olhe: é um manto. Enrolando-se o senhor
nele, ficará bom de todo. E o meu amo precisa dele. Precisa, que eu sei.
Então,
vendo-me sem forças para lutar, passou-me pelos ombros altos e pelo peito em
osso, onde as clavículas pareciam agitar-se, a enorme capa que trazia, e
levou-me para um sítio ermo em que estanciamos por momentos, olhando um para e
outro, eu transido de mágoa, ele com um sorriso carinhoso, horrível de ver-se,
nos lábios escuros onde desvairavam blasfêmias.
Depois,
caminhando silenciosamente por debaixo das árvores mortas, ouvindo as
gargalhadas conhecidas das aves noturnas, e rindo-se ao ouvi-las, o coveiro,
pois que ele o era certamente, colocou-me dentro de uma cova imensa, em
companhia de milhões de mortos.
Passei
os olhos espavoridos ao redor de mim, procurando encontrar, nessa cripta
medonha, cheia de sombra e quase fechada à claridade baça da noite estrelada, o
esqueleto mísero de aquela que se finara ao meu lado, mansamente, como um
cordeiro de Deus.
No
mesmo instante uma voz que vinha de outrora, e que um dia suavizara a minha
alma deserta com as ignoradas canções de paz e de ventura que os primeiros anos
cantam, mais brancas que a alva do dia e que os lírios reais, murmurou-me aos
ouvidos:
—
Olha para dentro de ti mesmo, espreita a desolação do teu espírito em ânsias,
verás os olhos taciturnos do fantasma que amas, tu que bem sabes que as sombras
não podem ser amadas...
Perdida
a esperança de vê-la junto de mim, fosse embora na nudez branca e trágica das
múmias que me cercavam, o meu isolamento era real e irreparável. E os versos
pungentes do Dies Irae, que toda a Idade Média soluçara, tombavam da
minha boca na melodia sonolenta de aquela linguagem bárbara, criada talvez para
os salmos d'além vida.
Dies
irae, dies illa!
II
Por
alguns momentos, longos como ciclos solares, o meu olhar vagou surpreso por
todo o indefinido horror circunjacente.
O
túmulo era soturno e fundo como uma imensa cisterna vazia. Caveiras
sarcásticas, que tinham luz própria, mais brancas que os luares tristes das
noites românticas, abriam-se no riso perpétuo que a ausência de lábios lhes dava.
Lembravam-se talvez de beijos idos, recordavam-se por certo de horas remotas,
quando as bocas floresciam em beijos, como crateras de vinho claro, como cíatos
de púrpura.
Meus
companheiros de leito rangíamos queixos friorentos, chegando-se uns aos outros
com carícias de amorosas e gestos de quem abraça. E as bocas sem lábios
beijavam-se na escuridão, e suspiros de gozo mortuário e vampírico saíam de
peitos que não aninhavam mais dentre de si os pobres corações humanos. Eram os
últimos arquejos da matéria a desfazer-se em poeira.
A
abertura do túmulo, pequena embora, parecia dar entrada a todo o céu, que se
despenhava em trevas, lá por dentro, sombrio e desolado como um castigo divino.
Nenhuma estrela caía de envolta com as nuvens, nenhum raio de luar vinha
abençoar-me — a mim que tanto precisava da luz absolvedora do céu.
De
repente, no alto, à beira da terra cavada de fresco, o rosto familiar do
coveiro apareceu-me, com um sorriso delicado nos lábios grossos.
— Vai melhor, meu amo? Enrole-se bem no manto.
Com alguns dobres de sino e um padre a encomendar as almas, tudo está pronto.
Não há médico como eu para curar enfermos como o senhor. Coitadinho!
Fechei
os olhos pávidos de espanto, e concheguei ao rosto as dobras lutulentas da
minha enorme capa.
Nesse
momento atroz, passaram-me pela frente, em debandada, vingativos como remorsos,
todos os sonhos da minha vida até então inútil. Desgraçada criatura que, depois
de tantos anos de existência, não tivera amor para amar sinceramente os bons,
nem ódio para odiar sinceramente os maus. Pobre espírito sem rumo que, sofrendo
embora no meio da hipocrisia satânica dos homens, não pudera dedicar-se a Deus cristãmente,
como os santos e os mendigos, nem pudera fugir às tentações do mundo,
abrigando-se debaixo das ermidas longínquas, onde há quem peça por nós...
No
entanto, se eu não fosse morrer em aquela hora que ia desprender-se das mãos do
tempo, bem poderia ser que me tornasse um Eleito na terra.
Foi
então que o meu corpo se agitou em uma convulsão que julguei suprema.
O
Dr. Pulvis, sentado à minha cabeceira, sorriu-me afetuosamente.
—
Que terrível febre, meu pobre amigo!
Com
a alegria expansiva de quem acorda de um pesadelo que não tinha fim, passei as
mãos pelo rosto, onde o suor corria em bagas doloridas.
Era
meio-dia apenas. A luz do Sol parecia transformar-se em raios de som. Ao longe,
acompanhada pelas rezas dos crentes, soluçava a campainha da extrema-unção, como
um apelo de Deus ao mundo que se perdia para sempre...
Fonte: Revista
Brasileira (RJ), tomo décimo, Rio de Janeiro, 1897.
amigo Barão, vou ler agora a noite este conto. Esse escritor eu me lembro das poesias sombrias dele...me lembro no Ensino Médio, quando eu era aluno e quando os livros didáticos eram realmente bons !
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