BUQUÊ DE ASSOMBROS - Conto de Terror - Maycon Guedes
BUQUÊ
DE ASSOMBROS
Maycon
Guedes
Oscar
era seu nome, um ébrio que trançava suas pernas ao caminhar de volta para casa,
cambaleando, após uma noite de bebedeira com os amigos. Perto da meia-noite,
passando em frente ao extenso muro do cemitério, o homem tropeçava, mas não
desistia de seu rumo. A caminhada era longa, e o muro de lamentos, que separava
a vida da morte, era sua única companhia até a esquina da rua onde vivia. Com o
intuito de se distrair durante o percurso, ele cantarolava antigas canções de
amor, canções essas que o fizeram lembrar dos bons tempos de juventude,
especialmente dos bons momentos que viveu com sua amada Vera, que após anos de
casados ele passou a chamá-la carinhosamente de Verinha. Foi durante uma dessas
canções, de um antigo cantor que vivia ali na região, que Oscar se lembrou de
que naquele dia, ele e Verinha, completavam trinta e um anos de casados.
Desesperado,
o homem alimentado pelo álcool se queixa por ter deixado a pobre Verinha em
casa para sair e beber com os amigos naquela data especial; pior do que isso
era descobrir que naquela hora da noite não havia um único lugar aberto para
comprar ao menos um presente. Foi então que, lembrando de uma das histórias de
seu velho amigo, o coveiro Tavares, outro biriteiro da cidade, Oscar teve uma
ideia não muito inteligente. Diz que certo dia, o coveiro, preparando-se para
um encontro com uma mulher, apanhou para ela um bocado de flores de um dos
túmulos do cemitério; dizia ele, também, que a mulher adorou as flores, mesmo
impregnadas com o sutil perfume fúnebre das velas que queimavam no local.
Impulsionado pela manguaça, Oscar não pensou duas vezes e pulou o muro do
cemitério, partindo em busca de graciosas flores para a sua querida Verinha.
De
um bar rodeado por garrafas de vidro, Oscar agora estava rodeado por cruzes e
vultos sinistros. Enquanto caminhava entre as covas, lembrava o pobre ébrio das
histórias assustadoras do coveiro Tavares: histórias de assombração, névoas
macabras, amantes exumadores, espectros dançantes e outras mais, muitas mais. O
cemitério da cidade de Franco da Rocha tinha fama de ser assombrado, e naquela
noite, Oscar atestaria que as antigas histórias do coveiro não eram apenas
lendas ou mentiras, pois ele seria mais um dos habitantes da cidade a ter uma
macabra história para contar.
O
vasto jardim de cruzes podia ser visto até o distante horizonte; e as lápides,
molhadas pela fina garoa, eram iluminadas pelo forte brilho da Lua, enquanto as
chamas das velas, que se apagavam vagarosamente, ainda reluziam no gélido
mármore escuro. Oscar sentia que não estava só, e os clarões de alguns
relâmpagos, iluminando ainda mais a hospedagem de defuntos, constataram que,
realmente, alguns seres do além estavam à espreita, incomodados com a presença
do bebum zanzando pelo cemitério. Enquanto as frias gotas delgadas pinicavam o
rosto de Oscar, em sua nuca o arrepio se instalava, como um choque, devido à
enorme presença de espíritos malignos que avançavam em direção às suas costas —
demônios da guarda zelavam sua infausta alma.
Trêmulo,
o ébrio acreditava ser possível ouvir as marteladas de seu coração do outro
lado do cemitério, tamanho era o seu pavor, pois sentia que algo maligno o
rodeava. Não tardou e ele encontrou o que tanto procurava; e lá estava, um
lindo buquê de rosas enfeitando um túmulo. Ao se aproximar, não pôde deixar de
examinar a foto que estava na lápide, de uma jovem e bela garota, morta
recentemente. Oscar lamenta a morte da recém-defunta e, enquanto retirava o
buquê com uma das mãos, com a outra ele fazia o sinal da cruz — como se tal
gesto fosse impedir o horror iminente.
Oh!
Pobre Oscar; miserável ladrão de rosas funestas. Por que Diabos, naquela noite
soturna, escolheste atrair para si os males do inferno?
O
ladrãozinho acelerou o passo com o buquê em mãos, preocupado com a garoa que
gradativamente ia ficando mais densa. Os sons dos trovões ao longe, junto das
gotas d’água caindo nas folhas das árvores, não eram os únicos sonidos
presentes, pois, sutilmente, e não tão distante, Oscar podia ouvir uma voz
delicada proferindo algo; uma voz doce, tão encantadora quanto maléfica;
seduzia ao mesmo tempo que assustava. O ébrio dá uma ligeira espiada para trás
e vê, próximo ao túmulo assaltado, uma moça nua de cabelos negros e compridos,
idêntica a jovem da foto na lápide. Convicto de que aquilo poderia ser uma
assombração, Oscar correu, atônito, escondendo-se atrás do primeiro jazigo que
encontrou. Desafortunado, camuflou-se justamente num jazigo vandalizado onde havia
um enorme rombo, exibindo uma carcaça em decomposição, e de lá podia-se ouvir,
virtuosamente, a melodia das moscas que louvavam a carniça ao qual rodeavam.
Não suportando o mau cheiro e o zumbido tenebroso, o ébrio sai disparado pelo
corredor adornado de cruzes, rumo ao muro, acreditando que assim, pulando para
fora daquela necrópole, estaria livre da mulher nua que vagava entre as
lápides.
Enquanto
corria, Oscar notava ligeiros vultos atravessando o seu caminho; e as velas,
que haviam sido apagadas pela garoa, acendiam novamente conforme ele passava
por elas, uma a uma; e as suas chamas, ignorando os chuviscos, inflamavam mais
intensas do que antes; e as estátuas dos anjos, enfeitando alguns túmulos,
pareciam ter vida própria, movimentando-se e remodelando o rosto antes
angelical para uma face maléfica. Finalmente o ébrio alcança o muro, mas, antes
de pular fora daquele circo nefasto, dá uma última olhada para trás e, para o
seu espanto, se depara com uma legião de espectros sendo regados pela garoa,
vindo em sua direção, gemendo dialetos incompreensíveis, semelhante a um coral
de monstros desafinados.
Já
do lado de fora, a caminho de casa, sentindo enorme satisfação por conseguir
escapar, tendo em mãos o presente para a sua amada Verinha, Oscar desacelera,
sem nem se importar com a chuva que naquele instante caía fortemente. Dos
lábios do ébrio molhados pelo temporal — e pela cachaça, mais cedo — entoava a
canção She Made Me Cry, da banda Pholhas, num inglês todo errado, porém,
cantada com muita emoção, mas aquela serenidade não duraria muito, quando um
clarão no céu acompanhado por raios, seguido de um estrondo assustador, revelou
mais a frente, na rua escura onde ele caminhava, a mesma mulher sinistra do
cemitério. O pobre homem assustado atravessou a rua e correu, como nunca, quase
tropeçando, direto para sua casa, que àquela altura já não estava tão longe.
Chegando
em casa, ofegante, notando o silêncio e o vazio, Oscar chama por sua esposa que
não responde. Na mesa, seu prato predileto, o cuscuz da Verinha. Faminto,
cansado e ensopado, ele se senta e abocanha o cuscuz com as mãos ainda úmidas,
deixando o buquê de rosas molhadas em cima da mesa. Oscar levava o cuscuz à
boca alternando as mãos, feito um esfomeado que não come há dias. De repente, a
porta pela qual ele tinha entrado abriu-se abruptamente, revelando o vulto de
uma mulher imóvel. O susto tremendo fez Oscar engasgar, e parando assim —
finalmente — de comer.
“Ai,
diacho di assombração. Vai-te embora e mi deixa cumê o cuscuz em paz.” —
Proferiu Oscar, enquanto a figura da mulher parada à porta se tornou nítida,
graças ao clarão de um relâmpago. Não se tratava de nenhuma assombração, e sim,
sua esposa Verinha, encharcada e descabelada pela chuva, furiosa em seu
semblante — “Vixe! Agora é que eu mi lasquei di veiz” — Pensou Oscar, de olhos
vidrados e com a boca inflada de cuscuz.
—
Onde é que cê si meteu, hómi? — Disse Verinha, entrando ligeira para dentro de
casa em direção à mesa onde Oscar estava — Eu fui atrás docê no bar e mi
disseram que cê saiu di lá faz é tempo!
—
Oh, minha Verinha. Eu fui comprar um presente procê. Tá aqui, ó! — Oscar se
levanta da cadeira, apresentando o que sobrou das rosas castigadas pela forte
chuva.
—
Comprar presente essa hora da noite, Oscarzin?
—
Pois é. Num tive tempo antes não, Verinha.
—
Tempo pras cajibrina cê tem, né, véio biriteiro?! E ainda por cima tá cumeno
tudo os meu cuscuz!
Verinha
toma de Oscar a panela de cuscuz, raivosa, ignorando as rosas sepulcrais na
mesa; dá uma última olhada para o marido, que se mantinha sentado com cara de
cachorro arrependido, ainda mastigando, e então vai em direção ao seu quarto
pegar uma toalha para se secar. Logo em seguida Verinha retorna, devolve a
panela à mesa e fita Oscar por alguns segundos antes de lhe perguntar:
—
Oscarzin, mi ixplica uma coisa. O que aquela galinha tá fazeno no nosso quarto?
—
Ué, deve tê pulado pá dentro. Cê sempre esquece as janela aberta; elas pula
memo.
Verinha
franze os olhos, indignada com a resposta do bebum.
—
Cê si acha o garanhão, então, Oscarzin?
—
Eu? Como assim, Verinha? Cê bebeu também, foi?
—
Qué dizê que quando eu saio e deixo a janela aberta as galinha pula tudo
dentro? — Verinha se enfurecia cada vez mais, apoiando as duas mãos na mesa,
encarando o marido que continuava saboreando o cuscuz.
Oscar
não entendia o motivo de Verinha estar tão abalada por uma galinha no quarto,
quando, imediatamente, compreendeu o que estava acontecendo, assim que, da
porta do quarto, surgiu uma mulher nua, a mesma mulher do cemitério, caminhando
lentamente em direção à mesa onde eles estavam, exibindo não apenas a nudez de
seu corpo, mas também a enorme cicatriz da autópsia formando um grande ‘Y’ em
seu tronco pálido e esquelético. Oscar se apavora, cospe um punhado de cuscuz,
pula da cadeira e se esconde atrás de Verinha.
—
Ai, Diacho di Diaba! Cê veio atrás di mim? — Grita Oscar.
—
Bote essa galinha pra fora da minha casa, Oscarzin — berrou Verinha — mas que
coisa, hómi; num posso saí uns minuto que a casa enche de quenga. E pelo amor
di Deus, para di cumê o meu cuscuz!
—
Ô minha Verinha. Eu… eu posso ixplicá.
—
Ixplicá o quê? Já tô veno é tudo! Só ti digo uma coisa, Oscarzin, meu cuscuz cê
num comi mais, agora cê vai cumê é o cuscuz dessa daí… bicha estranha, toda
disajeitada, credu; onde cê arrumou essa coisa?
Verinha
empurra Oscar para cima da assombração, mantendo-o encurralado; de um lado, uma
entidade do além, do outro, o que ele mais temia, a Verinha furiosa. Enquanto a
coisa se aproximava lentamente, o ébrio tentava explicar tudo o que aconteceu
para sua amada, implorando para que ela acreditasse em suas palavras, de que a
defunta deveria estar atrás do buquê que ele havia roubado de sua sepultura, e
que ela não era uma amante. Verinha não deu ouvidos; então Oscar teve uma
ideia, a de levar as duas mulheres até o cemitério, devolver o buquê ao túmulo
e torcer para a defunta retornar ao sono perpétuo, e só assim, após presenciar
tudo, Verinha acreditaria nas palavras dele. Tudo estava planejado na mente de
Oscar; ele pega o buquê com uma das mãos, e com a outra, apanha o que sobrou do
cuscuz, corre em direção à rua, em meio ao temporal, e deixa um rastro de medo
e esperança, enquanto Verinha e a falecida vinham logo atrás, enraivecidas
atrás do homem!
Ao
chegar no cemitério, Oscar busca pela lápide, ensandecido. Ele só encontraria a
sua paz após colocar a defunta para descansar - em paz - no seu leito de morte.
Depois de todo o corre-corre entre as covas, Oscar encontrou finalmente o
túmulo que procurava, aguardou alguns instantes até as duas mulheres se
aproximarem e devolveu o buquê ao seu local. Verinha então fica de olhos
arregalados, observando a entidade se aproximar de sua cova e desaparecer
instantaneamente, evaporando igual fumaça. Oscar encara Verinha e lança um
sorriso, demonstrando alegria por conseguir provar para sua amada que suas
palavras eram verdadeiras. Verinha então se aproxima e mete o cascudo na cabeça
do homem.
—
Bichu sem graça, queria mi dá flor di cemitério? Tómi vergonha! Nóis pudia é
ter morrido; vai sabê o que essa coisa pelada podia fazê com nóis dois.
Oscar
lamenta mais uma vez e envolve Verinha em seus braços. O casal caminha sem
pressa, rumo à saída do cemitério, enquanto a chuva continuava a molhar seus
corpos cansados e enrugados pelo tempo.
— É, minha Verinha, pá morrê basta tá vivo.
Logo, logo é nóis que tá aí, enterrado no palitó di madêra.
—
Vira essa boca pra lá, hómi. E no dia que eu morrê, ai docê vim robá minhas
flor pra dá pá outra rapariga! Eu caço ocê e ti levo comigo! Mas óia, essa
correria toda mi deu é fómi.
Oscar
enfia a mão no bolso da calça e tira um punhado de cuscuz esfarelado. Verinha,
com o estômago roncando de fome, admira seu companheiro com enorme sorriso.
Um
ano se passou e Oscar chega em casa cantarolando como sempre, carregando uma
cesta de chocolates, ansioso para presentear sua querida esposa em mais um
aniversário de casamento. Ao abrir a porta, ele dá de cara com Verinha, à luz
de velas, com a mesa farta de vinho, pão e mocotó. O casal se prepara para
comer, Oscar esfrega as mãos uma na outra ao observar a suculência dos pratos
na mesa, e Verinha, permanecia encantada com a quantidade de chocolates na
cesta.
Oscar
para de saborear sua comida por um instante e volta sua atenção à música que
tocava no quarto. Ele conhecia aquela canção, a voz soava familiar, mas não
conseguia lembrar o nome do cantor.
—
Ô Verinha, essa num é aquela música do dia que nóis si conheceu naquele barzin?
—
É sim. Sabia que cê ia lembrá? — Disse Verinha com os olhos brilhando, contente
por ele ter se lembrado mesmo após tantas décadas.
—
Como é mesmo o nome do cantor? Bastião, né? Que Deus u tenha. Cantava muito,
vixi! Mas eu num tava sabeno dele tê gravado disco não. Cê sabe que as música
era tudo ele que criava, né?
—
Sim, Oscarzin. Mas ele num chegô a gravá disco não. Eu consegui essa música aí
dano meus pulo — Verinha baixava a cabeça com um sorriso timido, enfiando as
mãos entre as pernas e virando a cabeça para o lado, feito uma criança
envergonhada.
—
Como assim, muié? Num tô entendendo! Como cê conseguiu essa música?
—
Ai, Oscarzin. Queria fazê uma surpresa. Então eu lembrei daquela veiz qui ocê
robô a flor da defunta lá, sabe? Ai eu tive a ideia de… — Nesse instante, Oscar
retorna apressado para a mesa.
—
Misericórdia, muié tribulada. Eu num tô acreditano no qui ocê feiz!
Feliz em fazer parte do acervo com mais um conto. ❤💀
ResponderExcluirFelizes em publicá-lo também.
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