LOBISOMEM - Conto Clássico de Horror - Valdomiro Silveira
LOBISOMEM
Valdomiro Silveira
(1873 – 1941)
Nasceu
o quinto filho do Ladislau, repolhudo e rosadinho que era uma lindeza. A
comadre, que assistia na casa ao recebimento desses hóspedes, chegou à porta do
quarto onde houve a festa. E falou, alto e bom som, ao pai da criança:
—
A quinta família inda é home, patrão — olhe que já tá beirando os sete, e conta
de sete é ruim numa irmandade. Quando bate nos sete, vancê bem sabe que sai um
lobisome. E, se a conta é nas mulheres, dá uma bruxa de remate. Pare agora co
andar, nhô Ladislau!
O
dono da casa veio até a porta, olhou, mal e mal, para o vultinho empacotado que
a parteira trazia nas duas mãos abertas, viu-o apertar as sobrancelhas a uma
passagem repentina de luz, concordou em ser muito parecido com ele, disse uma
palavra boa à mulher, e afastou-se.
Na
sala da frente, matutando em coisas várias, lembrou-se outra vez do agouro. E o
agouro fez-lhe tremer o coração. De envolta com ideias extravagantes, visões
assustadoras que lhe passavam pelo espírito, às carreiras, lembrou-lhe uma quadra
antiga, cantada nos desafios, e foi quase rindo que a cantou de novo, passados
tantos anos:
"Eu
não quero me casar
Com
mulher muito amarela.
Pode
virar lubisome,
Querer
me passar na moela".
Riu-se
de vez. Contemplou o céu limpo, onde umas nuvens claras se espichavam
finamente, como retalhos de lenços de cambraia, assobiou ainda a toada do desafio,
fez mesuras para todos os lados — nem que estivesse numa roda de dança — e foi
tratar de recolher o mantimento para a tulha, porque o almoço já estava pronto,
na cozinha, as cuias enxutas, e a água para o negrinho bufando na chaleira...
Se
o Ladislau, daquela feita, não macucou muito tempo, ficou meio desengraçado e
xavi quando viu que a gordura da companheira não aparecia redonda, tinha sua
ponta, e o viajante que havia de vir parecia, mal comparando, um potrinho
chucro, tais eram os pontapés que dava na mãe, toda hora. Pegou a sentir-se
desanimado, a fugir de gente, a falar sozinho umas tristezas de cortar o
coração:
—Ora,
que mal eu fiz pra Deus, que decerto me vai pinchar este castigo tirano de sete
filhos homes sem nem u'a menina? Se eu não roubei, não matei, não rondei donas
alheias!
E
veio o sexto, meio enfezado e friento, botando a boca no mundo desde o primeiro
instante. Apesar de miúdo e mofino, apesar de ter uma voz de taquara de cheia
de água, mamão e endefluxado sempre. Não estava engatinhando, mal se firmava
nos quartos, para se ter sentado, vacilante e de olhos pisca-piscas, opinioso e
dado a teimas, quando a mãe ficou mais uma vez de esperança, e o pai
atemorizado. Já não tinha uma noite sua, o pobre do Ladislau — quase todas levava
desveladas, a imaginar no que aconteceria e no que não, pedindo a Deus lhe
tirasse de cima do lar aquela espécie de praga.
Pediu
em vão, ou tarde — o hóspede foi outro Adãozinho, meio mole desde a nascença,
com o pescoço bambo. Fizeram-lhe um colar de fios de linha singela, ataram-lho
bem rente à carne, e em poucos dias principiou a endurecer o pescoço e a ter a
cabeça bem no meio dos ombros, embora esquisitona, de orelhas grandes e
achatada no cocuruto como chapadão de serra. O Ladislau caiu em desespero.
Escondia-se pelos ermos, rolava pelo chão, punha as mãos ora nos olhos e ora na
boca, chorava tal qual uma criança doentinha e largada...
O
sétimo vingou, como todos. Chamou-se Roque. Sentou-se, engatinhou, armou os
primeiros passos, criou coragem e andou. Cresceu, ficou taludo e desengonçado.
Não tardou muito em amarelar e murchar de pele. Os cabelos enovelaram-se-lhe,
os olhos sumiram, a boca fez-se arqueada e fina. Entrou a comer, às escondidas,
a terra dura das paredes. Gritava de noite, em sonhos, pulava da cama às
tontas, corria pelos quartos feito um desatinado, até que o assossegavam e
deitavam, embalando-lhe o sono com histórias mansas. Então, dormindo, com
pérolas de suor frio a apontarem-lhe nas fontes, dava ares de um pequeno e
resignado mártir.
Quando
se lhe engrossou a voz e lhe rompeu o adão inesperadamente, ao fechar dos
quinze anos, pegou a levantar-se dormindo, de olhos escancarados e fixos, e a
passear noites afias pelos arredores da casa, remexendo no mangueiro das
novilhas crioulas e no chiqueiro dos tatus, de ceva. Iam buscá-lo, fora de
horas, acordavam-no, e então apavorava-se profundamente, dava de estremer todo,
e soluçava tempo esquecido. Por derradeiro já não o estorvavam no sono,
traziam-no devagar e com jeito, acomodavam-no, puxavam-lhe pelas cobertas,
agasalhavam-no e deixavam-no quieto.
Desgostos
velhos, amargura de ter um filho assim, ou fosse lá o que fosse, levaram o
Ladislau a entrar por demais nas águas de setembro. Volta e meia, por isto ou
por aquilo, abria o chapéu de sol. E, como o povoado era perto, não havia
semana em que não viesse correndo de norte a sul pelos caminhos, torrado de uma
vez, porque toda caninha, para ele, era trepadeira. Buzinava de raiva, quando
perdia o equilíbrio e plancheava na poeira ou na lama, mas, quase sempre, só
ficava tocado, e passava às gargalhadas pelos carreadouros e pelos trilhos de
extravio, pararaca e fogueto.
Uma
noite, porém, retardou-se no povoado. Fez chão para casa ao cantar
descompassado dos primeiros pipuiras. E como o tempo andasse meio brusco, entre
riso e choro, chuvisca-não-chuvisca, tomado como ia, não podia enxergar firme
cinco braças adiante de si. Aproximou-se do galinheiro, por desguaritado do
rumo, e os garnizés gargarejaram uma gritaria miúda de susto e zanga:
—
Ué, picurruchada, pois vocês também já querem me estranhar? Sou eu mesmo, sou
eu mesmo!
Falaria
mais, embora a língua se lhe emperrasse em algumas letras. Mas teve grande
medo, repentinamente, e calou-se. É que vira um vulto magricela, agachado por
debaixo do poleiro, comendo cabelos de mulher e quanta coisa achava, com fúria
que parecia de fome canina, e pressa que parecia de ladrão. O Ladislau abriu e
cerrou os olhos, uma e outras vezes. Não atinava com o que fosse aquele vulto:
—Sai
daí, sombração, que eu te atranco uma chumbada de sustância!
O
vulto não se ergueu, nada disse. Continuou a mastigar e a engolir à toda, e com
tanta força, que os dentes estralavam, dando uns nos outros. O Ladislau,
apurado de medo, quis pôr-lhe medo lambem:
—
Lá vai a coisa, bulto dos dianhos! Você sai ou não sai?
O
vulto não se abalou. Passava a mão pela poeira, catava penas, levava-as à boca,
triturava-as depressa, devorava-as. E uma claridade hesitante de Lua
engrandeceu-lhe a sombra, que se encompridou fantasticamente até o cocho de
pau-de-cruz, onde crescia do chão para a madeira, desvanecendo-se na água escassa.
O Ladislau perdeu a paciência:
—Aguenta,
bicho, que a fumaça aí vai!
Logo
que urrou o tiro, o vulto bateu de encontro ao poleiro, estrebuchando e
rosnando. Foi só aí que o Ladislau pôde reconhecê-lo, admirado e já sem pavor:
—É
você, Roque? Ora, louvado seja Deus! Fiz sangue em você de devera. Fiz? Ora,
louvado seja Deus!
E
meio em si, meio na pinga, abriu um vão nas varas de bambu, acercou-se do
filho, todo prosa e com feição de páscoas, e examinou-lhe a arranhadura do
chumbo mostarda, que lhe passara de refilão pela pá esquerda:
—Não
há nada como um dia despois do outro! Fiz sangue no meu sangue, a poder de
chumbo, meu sangue virou gente! Ora, louvado seja Deus, que meu filho não é
mais lubisome.
Fonte: Vamos Ler,
edição de 27/01/1944.
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