O ENFORCADO - Narrativa Clássica de Horror - Victor Hugo


 

O ENFORCADO[1]

Victor Hugo

(1802 – 1885)

Tradução de Paulo Soriano

 

Mudo, atônito, com os olhos vítreos, estava o menino diante daquela coisa.

Para um homem, seria uma forca; para uma criança, seria uma aparição.

Onde o homem teria visto o cadáver, a criança vira o fantasma.

E nada entendia.

As atrações do abismo são de todos os tipos; no cimo daquela colina, havia uma. O menino deu um passo, depois, mais dois. Subiu, malgrado quisesse descer; aproximou-se em seguida, embora quisesse retroceder.

Chegou muito perto, ousado e trêmulo, para fazer o reconhecimento do fantasma.

Chegando à forca, ergueu a cabeça e examinou-o.

O fantasma estava coberto de betume. Brilhava aqui e ali. A criança podia ver-lhe o rosto. Com o betume, aquela máscara parecia viscosa e pegajosa, modelada pelos reflexos noturnos. O menino viu a boca, que era um buraco; o nariz, que era um buraco, e os olhos, que eram buracos. O corpo estava amarrado, envolto num grande tecido embebido em nafta. O pano estava mofado e roto. Um joelho o traspassava. Uma fenda revela-lhe as costelas. Algumas partes eram carne morta; outras, esqueleto. O rosto era da cor da terra; as lesmas, que perambularam por ele, haviam deixado vagas faixas prateadas. O pano, colado aos ossos, exibia relevos, como a roupa de uma estátua. A abertura do crânio rachado exibia o aspecto de uma fruta apodrecida. Os dentes permaneciam humanos: preservavam o riso. Um resquício de um grito parecia lançar-se da boca aberta. Remanesciam pelos de barba naquela face. A cabeça, inclinada, parecia estar atenta.

Reparos haviam sido feitos há pouco tempo. O rosto fora recentemente coberto de betume, assim como as costelas e o joelho, que sobressaíam da lona. Lá embaixo, apareciam os pés.

Logo abaixo, sob a relva, viam-se dois sapatos deformados pela neve e pela chuva. Os sapatos tinham caído dos pés daquele homem morto.

O garoto, descalço, olhou para os sapatos.

O vento, cada vez mais preocupante, fazia algum daqueles hiatos que antecipam tempestade: havia cessado completamente há alguns momentos. O cadáver não balançava mais. A corrente que o prendia tinha a imobilidade de um fio de prumo.

Como todos os recém-chegados à vida, e tendo-se em conta a especial pressão do seu destino, a criança teve, sem dúvida, dentro de si, aquele despertar de ideias típicas da juventude, que busca desimpedir o cérebro, e que se assemelha às bicadas dos passarinhos a romper ovo. Mas tudo o que havia, naquele momento, em sua pequena consciência, se transformava em estupor. O excesso de sensações é efeito do óleo em excesso: leva à asfixia do pensamento. Um homem teria feito indagações; a criança, não; ela apenas assentia.

O pez conferia àquela face um aspecto úmido. Gotas de betume, congeladas onde deveriam estar os olhos, semelhavam lágrimas. Ademais, graças a àquela resina, os danos causados ​​pela morte haviam sido visivelmente retardados — quase anulados —, reduzidos ao mínimo possível em sua eficácia deletéria. O que o garoto tinha diante de si era algo que recebera cuidados. Aquele homem era evidentemente valioso. Não queriam mantê-lo vivo, mas faziam de tudo para conservá-lo naquele estado de morte.

A forca era velha, carcomida — conquanto sólida —, e já era usada há muitos anos.

Era costume imemorial na Inglaterra combater os contrabandistas. Eram eles enforcados à beira-mar, lambuzados com betume e deixados pendurados no lugar; os exemplos pressupõem exibição pública e os cadáveres untados conservam-se por mais tempo. Aquele breu era da humanidade. Desta maneira, era possível renovar os enforcados com menos frequência. Colocavam-se as forcas em intervalos regulares ao longo da costa, como hoje em dia distribuem-se os postes de luz. O enforcado servia de farol. À sua maneira, iluminava seus camaradas, os contrabandistas. Estes, de longe, no mar, avistavam a forca. Aqui, havia um primeiro aviso; mais adiante, um segundo. Isto não evitava o contrabando; mas a ordem é feita de coisas assim. Tal costume perdurou na Inglaterra até o início deste século. Em 1822, três enforcados embreados ainda podiam ser vistos à frente do Castelo de Dover. Além disso, tal procedimento conservador não se limitou aos contrabandistas. A Inglaterra agia em igual medida com ladrões, incendiários e assassinos. John Painter, que ateou fogo às lojas de transporte de Portsmouth, foi enforcado e coberto de betume em 1776. O padre Coyer, que o chama de Jean le Peintre, o viu novamente em 1777. John Painter estava pendurado e acorrentado acima da ruína que ele mesmo produzira e, de tempos em tempos, recebia nova camada de betume. Esse cadáver durou — quase se poderia dizer que sobreviveu — cerca de catorze anos. Ele ainda prestava um bom serviço em 1788. Em 1790, todavia, teve de ser substituído. Os egípcios valorizavam a múmia do rei; a múmia do povo, ao que parece, também pode ser útil.

O furioso vento, fustigando o monte, removera-lhe toda a neve. A relva ali ressurgiu, com cardos a ela entremeados, aqui e ali. A colina estava coberta por uma vegetação marinha espessa e rasteira, conferindo ao topo das falésias a aparência de um lençol verde. Sob a forca, no ponto sob o qual pendiam os pés do executado, havia um tufo alto e espesso, o que era surpreendente naquele solo árido. Os cadáveres, ali decompostos durante séculos, explicavam a beleza do relvado. A terra se alimentava do homem.

Um lúgubre fascínio tomou conta da criança, que ali ficou, boquiaberta. Abaixou a cabeça somente por um instante, devido a uma urtiga que esporeou as suas pernas e o fez sentir-se como uma besta. Então, levantou-se, erguendo a face. Olhou aquele rosto que o olhava. E aquilo o fitava com maior intensidade, porque não tinha olhos. Era um olhar difuso, indescritivelmente fixo, no qual coexistiam luz e escuridão, e que se projetava do crânio e dos dentes, bem como das arcadas superciliares vazias. Toda a cabeça do defunto o observava. Era assustador. Embora não houvesse olhar, o menino sentia-se visto. Era o horror das larvas.

Aos poucos, a própria criança tornava-se tétrica. Não mais se mexia. O torpor dominava-a. Não se dava conta de que perdia a consciência. Estava rígida e entorpecida. O inverno a entregava silenciosamente à noite; há algo de traiçoeiro no inverno. A criança era quase uma estátua. A dureza do frio penetrava-lhe os ossos; a escuridão, esse réptil, adentrava-lhe o corpo. A sonolência, que emerge da neve, alcança a gente como uma maré negra; o menino foi lentamente dominado por uma imobilidade semelhante à do cadáver. Estava a ponto de adormecer.

Na mão do sono enrista-se o dedo da morte. A criança sentiu-se agarrada por essa mão. Estava prestes a cair sob forca. Ela já não mais sabia se ainda estava de pé.

O fim, sempre iminente, sem transição entre ser e não mais ser, o retorno ao vazio, a possível sucumbência a qualquer instante: a criação é esse precipício.

Mais um instante, e criança e o defunto, a vida em esboço e a vida em ruínas, fundir-se-iam no mesmo desaparecimento.

O espectro parecia entender o que aconteceria, mas semelhava desejar que isto não se realizasse. De repente, começou a mexer-se. Parecia que prevenia o menino. Mas tudo isto não era senão o vento que voltava a bafejar.

Nada havia de mais estranho que aquele morto em movimento.

O cadáver, agarrado à ponta da corrente, empurrado pelo bafio invisível, tomou um ambíguo comportamento: erguia-se para a esquerda, depois caía; elevava-se para a direita, então despencava; e novamente erigia-se, com a precisão lenta e fúnebre de um badalo, ferozmente para frente e para trás. Poder-se-ia pensar que se via, na escuridão, a oscilação do pêndulo da eternidade.

E assim foi por alguns instantes. O garoto, diante da agitação do cadáver, começou despertar, e o seu corpo regelado demonstrava claramente que o medo o transia. A corrente, a cada oscilação, rangia com uma terrível regularidade. Parecia recuperar o fôlego e, em seguida, recomeçava. Aquele rangido imitava o canto de uma cigarra.

A aproximação de uma tempestade produz repentinas ondas de vento. Ali, de repente, a brisa convolou-se em vendaval. Sinistramente, a oscilação do cadáver ganhou amplitude. Não era mais um simples balanço; era um espasmo agora. A corrente, que antes rangia, agora gritava.

Era como se aquele grito fosse ouvido. Se aquele brado era um chamado, foi atendido. Das profundezas do horizonte, seguiu-se um grande ruído.

Era o som de asas.

Um incidente acontecia. O tempestuoso incidente dos cemitérios e das solidões: a chegada de um bando de corvos.

Aos gritos, negras manchas voadoras aguilhoavam a nuvem, perfuravam a névoa, cresciam, aproximavam-se, fundiam-se, engrossavam-se, precipitando-se em direção à colina. Era como a chegada de uma legião. Aquele bando — aquele verme alado das trevas — pousou sobre a forca.

O garoto, assustado, recuou.

Os enxames obedecem aos comandos. Os corvos reuniram-se nas traves da forca. Nenhuma ave havia sobre o corpo. Os corvos conversavam entre si. O seu grasnado é terrível. Uivar, assobiar, rugir: isto é vida; o grasnar é uma aceitação satisfeita da putrefação. É como ouvir o ruído que emerge do silêncio ao partir-se a lápide sepulcral. O grasnado é a voz expulsa da escuridão. O menino estava petrificado. Bem mais pelo terror do que pelo frio.

Os corvos silenciaram. Um deles pulou sobre o esqueleto. Foi um sinal. Os demais precipitaram-se, formando uma nuvem de asas. Depois, todas as penas se fecharam e o enforcado desapareceu sob um enxame de bulbos negros, que se remexiam na escuridão. Neste instante, o cadáver estremeceu.


 


 

Teria sido o corpo? Teria sido o vento? O cadáver dera um salto assustador. O furacão, que se encorpava, veio em seu socorro. O fantasma entrou em convulsão. Fora uma borrasca, soprando com fúria total, que dele se apoderara e agora o agitava em todas as direções. Tornou-se horripilante. Pôs-se a debater-se. Fantoche terrível, que tinha por cordão a corrente de uma forca. Algum parodista das sombras agarrara o seu fio e brincava com aquela múmia. Ela girou e saltou, como se estivesse prestes a desmoronar. Os pássaros, espantados, esvoaçaram. Um puro reflexo desses bichos infames. Depois, voltaram. Então, travou-se uma luta.

O morto parecia possuído por uma vida monstruosa. Os ventos ergueram-no como se fossem carregá-lo; dir-se-ia que o cadáver se debatia e se esforçava por escapar, mas a corrente segurava-o pelo pescoço. Assustados e ferozes, os pássaros refaziam todos os seus movimentos, recuando e atacando. De um lado, uma estranha tentativa de fuga; de outro, a perseguição a um cadáver acorrentado. O defunto, empurrado por todos os espasmos do vento, tinha solavancos, choques, acessos de raiva; ia, vinha, erguia-se, tombava, repelindo o enxame, agora disperso. O morto era a clava; o enxame, a poeira. Persistente, a feroz saraivada de ataques não desistiu. O defunto, como que tomado pela loucura, sob aquele emaranhado de bicos, multiplicava no vazio os seus golpes cegos, semelhantes aos golpes de uma pedra presa a uma atiradeira. Por vezes, o cadáver tinha sobre si todas aquelas garras e todas aquelas as asas; em seguida, nada. Às vezes, a horda recolhia-se, mas, prontamente, voltava furiosamente ao ataque. Era o assustador aquele suplício post mortem. Os pássaros pareciam frenéticos. Os resfolgadouros do inferno deviam permitir a passagem a tais enxames. Unhadas, bicadas, grasnados, a rasgadura de trapos que já não eram carne, o ranger da forca, o chocalhar do esqueleto, o tinir da corrente, os uivos da ventania, o tumulto: a mais lúgubre das lutas. Uma lâmia contra os demônios. Uma espécie de combate espectral.

Às vezes, com a intensificação vento, o enforcado virava-se sobre si mesmo, enfrentando o enxame por todos os lados ao mesmo tempo, como se enxotasse as aves. Parecia que os dentes tentavam mordê-las. O defunto tinha o vento tanto contra como a seu favor, como se os deuses das trevas estivessem envolvidos na peleja. O tufão fazia parte da batalha. O defunto se contorcia e o bando de pássaros, em espiral, esvoaçava sobre ele. Era um redemoinho dentro de um turbilhão.

Ouvia-se, vindo lá de baixo, um imenso rugido: era o mar.

E o menino experimentava tal pesadelo.

De repente, começou a tremer, membro por membro, e um arrepio percorreu-lhe o corpo. Cambaleou, estremeceu, quase caiu, voltou-se, apertou a fronte com as duas mãos, como se a própria cabeça fosse um ponto de apoio, e, abatido, com os cabelos ao vento, descendo a colina com os olhos fechados, ele mesmo quase um fantasma, fugiu, deixando, atrás de si, no cerne da noite, todo aquele tormento.

Correu ao acaso, até ficar sem fôlego, desnorteado, por sobre a neve, pela planície, pelo espaço. Aquela fuga o aquecia. Era-lhe necessária. Sem aquela corrida e aquele pavor, estaria morto.

Quase sem fôlego, parou. Mas não se atreveu a olhar para trás. Pareceu-lhe que os corvos o perseguiam, que o morto se soltara da corrente e que agora, provavelmente, seguia na direção que ele tomara, e que a própria forca descera a colina, perseguindo o cadáver. Tinha medo de ver tudo aquilo, acaso olhasse para trás.

Quando recuperou um pouco do fôlego, começou a correr novamente.

 

Ilustrações: François Flamenf (1856 – 1923) e autor desconhecido do séc. XIX.



[1] Excerto de “O Homem que ri”.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

A MULHER-FANTASMA - Conto Clássico Fantástico - Brian Hayes

LADRÕES DE CADÁVERES - Narrativas Verídicas de Horror - Henry Frichet