O LOBISOMEM - Conto Clássico de Terror - Petrônio

O LOBISOMEM

Caio Petrônio Árbitro

(27 – 66 d.C.)

 

Quando eu ainda era escravo, morava na rua Estreita, na casa que hoje pertence a Gavila. Quiseram os bons deuses que ali eu me apaixonasse pela mulher de Terêncio, o taberneiro. Vocês a conhecem: é Melissa, a tarentina, uma preciosidade, um a joia de mulher. Mas, por Hércules, eu não a cortejava pelos seus dotes físicos, ou para satisfazer à minha lascívia. Fazia-o pelas suas qualidades morais. Quando lhe pedia algo, ela nunca me negava; se ela ganhava um asse[1], dava-me a metade, que eu guardava em sua bolsa, e ela nunca me traiu a confiança.

Certo dia, o seu marido, que se encontrava na casa de campo, faleceu. Fiz o impossível para estar com ela, pois, como se costuma dizer, é na adversidade que se conhecem os amigos.

Para minha sorte, o meu amo havia ido a Cápua liquidar algumas mercadorias inservíveis. Aproveitando a oportunidade, convenci um convidado a acompanhar-me até uma distância de cinco milhas. Era um soldado forte como um demônio. Saímos antes do amanhecer, ao primeiro canto do galo, e o luar era tão claro que mesmo parecia dia. Aproximamo-nos de uns túmulos e meu companheiro começou a conjurar as estelas funerárias. Sentei-me cantarolando uma ária, e fiquei a contar as lápides. Depois, voltando-me para ele, vi que o homem se despia, deixando as vestes à beira da estrada. Fiquei mais morto do que vivo, imóvel como um cadáver. Então, ele se pôs a urinar em torno das roupas e se transformou num lobo.

Não imaginem vocês que eu esteja brincado. Eu não mentiria nem por todo ouro do mundo. Mas, voltando ao ponto: quando ele se transformou em lobo, pôs-se a uivar e desapareceu nos bosques. A princípio, não bem sabia onde eu estava. Depois, aproximei-me para apanhar as roupas; contudo, elas se tinham convolado em pedra. Se sustos matassem, eu já estaria morto. Todavia, saquei a espada e segui em frente, golpeando as sombras durante todo o caminho, até que cheguei à casa de minha amiga. Ao entrar, assemelhava-me a um fantasma. O suor escorria-me da face e os meus olhos estavam mortos. Custou-me muito a recompor-me.

A minha amada ficou surpresa com a minha chegada àquelas horas, dizendo:

— Se você tivesse chegado antes, poderia ter-nos ajudado. Pois entrou na herdade um lobo que sangrou todos os nossos animais, como se fosse um açougueiro. O lobo escapou, mas ferido. Um de nossos escravos atravessou-lhe o pescoço com uma lança.

Quando clareou, fugi à casa de nosso amo Gaio, correndo qual um mercador assaltado. Chegando ao lugar onde ficaram as roupas petrificadas, vi somente manchas de sangue. Em casa, encontrei o soldado estirado na cama, sangrando como um boi; um médico enfaixava-lhe o pescoço. Sem dúvida, ele era um lobisomem.

A partir de então, preferia ver-me morto a comer um naco de pão em sua companhia. Cada um pense o que lhe aprouver: se eu estiver mentindo, que a ira dos nossos Numes Tutelares[2] caia sobre mim.

 

Versão em português de Paulo Soriano.



[1] Antiga moeda romana de cobre, de pouco valor.

[2] Espírito que, acreditavam os antigos, acompanhavam as pessoas para inspirá-las ou protegê-las. Assemelhavam-se aos nossos anjos da guarda.

 

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