O LOBISOMEM - Conto Clássico de Terror - Honoré Beaugrand


 

O LOBISOMEM

(Excerto)

Honoré Beaugrand

(1848 – 1906)

Tradução de Paulo Soriano

 

Meu falecido pai, em sua juventude, caçava com os indígenas de São Francisco no alto São Maurício e na região de Matawan.

Ele era um camarada destemido e — cá entre nós —, posso garantir que não odiava os nativos. O padre da missão Abenaki alertara-o, duas ou três vezes, para ter cuidado consigo mesmo, porque os aborígenes poderiam fazer-lhe mal se o apanhassem a rondar as suas cabanas.

Mas os caçadores da floresta daquela época eram destemidos e vocês sabem muito bem que não se é sempre jovem.

Meu pai, portanto, partiu para caçar castores, ratos almiscarados e carcajus no alto São Maurício. Lá chegando, acampou com os Abenaki. Sua cabana mal se cobrira de neve quando ele viu uma linda indígena, que acompanhava o pai à caça.

Ela era uma moça lindíssima, embora, na tribo, ostentasse a fama de feiticeira. Era temida por todos os caçadores do acampamento, que dela não ousavam se aproximar.

Meu falecido pai, que era um homem corajoso, entrou no jogo e, como falava a língua nativa fluentemente, gracejava com a bela jovem. 

O pai da bela garota passou dois ou três dias montando as suas armadilhas e, durante esse tempo, as coisas correram bem. Devo dizer-lhe que a indígena era uma vil pagã que nunca fora à igreja de São Francisco e até se alegrava do fato de nunca ter sido batizada. Não há necessidade de contar-lhe detalhadamente como tudo aconteceu, mas o meu pai finalmente conseguiu um encontro com a garota, a algumas milhas do acampamento, à meia-noite de um domingo.

Meu pai achou a hora um tanto estranha e o dia da semana um pouco suspeito, mas, quando se está apaixonado, ignoram-se muitas coisas.

Ele chegou ao local do encontro pouco antes da hora combinada. Fumava silenciosamente o seu cachimbo, para ganhar paciência, quando ouviu um barulho. Imaginou que era a garota que se aproximava, mas logo mudou de ideia quando viu dois olhos, brilhantes como tochas, que o encaravam de uma forma estranha.

A princípio, pensou tratar-se de gato indígena ou um carcaju, e só teve tempo de erguer a espingarda — não a largou mais —, e mandar uma bala entre os dois olhos do animal, que, entre a vegetação, rastejava sobre a neve.

Todavia, errou o tiro e, antes que tivesse tempo de proteger-se, a fera estava sobre ele, apoiando-se nas patas traseiras e tentando cercá-lo com as dianteiras.

Era um animal imenso e o meu falecido pai jamais vira um lobo como aquele.  Sacou a faca de caça e lhe ocorreu a ideia de que estava lidando com um lobisomem. Sabia ele que a única maneira de se livrar dessas feras malditas era tirar-lhe o sangue, fazendo-lhe na testa um ferimento em forma de cruz. Foi isso que ele tentou fazer, mas o lobisomem — maldito que era —, bem se defendeu, e o meu falecido pai tentou, em vão, cravar-lhe a faca no corpo, já que fracassara no intento de libertá-lo do fadário. A ponta da faca, todavia, envergava-se sempre, como se tivesse atingido uma sola de couro.

A luta continuou e tornou-se terrivelmente perigosa. Quando o lobisomem já lhe rasgava os flancos com as suas longas garras, meu pai, com um golpe de sua faca, que cortava como uma navalha, conseguiu remover uma das patas dianteiras da besta.

A fera soltou um uivo semelhante ao de uma mulher ferida e desapareceu na floresta.

 


 

Meu falecido pai não se atreveu a persegui-la, mas colocou a pata na bolsa e voltou ao acampamento para tratar dos ferimentos que, embora dolorosos, não representavam perigo.

No dia seguinte, quando perguntou sobre a mulher indígena, soube que ela havia partido durante a noite com o pai e ninguém tinha notícia do caminho que haviam tomado.

Mas julguem o espanto do meu falecido pai quando, remexendo no saco à procura de uma pata de lobo, encontrou uma mão indígena, decepada logo acima do pulso. Era simplesmente a mão da pérfida garota que se transformara em lobisomem para beber o seu sangue e mandá-lo para o diabo, sem sequer lhe dar tempo a um ato de contrição.

Meu pai não falou do assunto aos nativos do acampamento, mas sua primeira providência, ao descer a São Francisco, na primavera seguinte, foi perguntar sobre a indígena que havia retornado à aldeia, alegando ter perdido a mão direita numa armadilha para lobos. A tratante havia desaparecido e provavelmente andava por aí como um duende entre os renegados de sua tribo.

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