A LANÇA ARDENTE - Narrativa Clássica Sobrenatural - Otloh of Sankt Emmeram
A LANÇA ARDENTE
Otloh of Sankt Emmeram
(c. 1010 – c. 1072)
Quando
dois irmãos viajavam a cavalo, viram, de repente, uma miríade de espectros, que
pairavam no ar, um pouco acima do solo.
Considerando
aquela visão a um só tempo maravilhosa e aterrorizante, fizeram o sinal da cruz
e, em nome do Senhor, perguntaram aos espectros quem eram eles.
Uma das entidades, em trajes de cavaleiro,
caminhou celeremente até os irmãos, dizendo:
— Eu sou seu pai, e imploro-lhes que devolvam
ao mosteiro aquelas propriedades que, como sabem, injustamente usurpei à
comunidade. Façam isso pelo amor de Deus e pela minha própria libertação. Pois,
se não devolveram a terra usurpada, nem eu, nem vocês, nem qualquer um de nossa
posteridade, que retenha aquela terra, escapará ao fogo perpétuo do Inferno.
Os
filhos responderam:
—
Pai, como podemos abrir mão dessas posses? Quando vivo, o senhor nada nos
pediu. Ademais, se devolvermos a terra, estaremos reduzidos à pobreza. De
qualquer forma, o senhor não parece estar passando necessidade alguma, a julgar
pelos ornamentos de sua armadura e de suas roupas.
Com
pesar, o pai retrucou:
—
O que sabem vocês quanto à vestimenta que uso? Devo dizer-lhes que, onde quer
que minha armadura toque a minha carne, eu queimo com um fogo intolerável.
Sinto que tudo o que me rodeia, quer o perceba através da visão, da audição ou
do tato, está me consumindo. Para que vocês possam entender perfeitamente o que
digo, segurem a lança que carrego.
Um dos filhos, querendo constatar a veracidade
do que tinha ouvido, ansiosamente agarrou a lança que o pai estendia.
Imediatamente, deixou-a cair, ferido pelo tremendo calor que ela irradiava.
O
pai estendeu a mão para pegar a lança caída e disse:
—
Deveriam ambos saber que, se esta lança tivesse tocado a terra, vocês teriam
tornado ainda maior o meu tormento.
E
concluiu:
—
Eu imploro, meus filhos, que satisfaçam aos desejos de seu pai.
Então,
a imagem do cavaleiro desapareceu sem deixar vestígios.
Incitados
pelo instinto divino, os irmãos começaram a discutir sobre o que tinham ouvido.
—
Se mantivermos a propriedade que foi injustamente confiscada por nosso pai, sem
dúvida pereceremos. Pois, o que nos aproveita se ganhamos o mundo inteiro, mas
perdemos as nossas almas? Devolvamos a terra ao mosteiro de onde foi tirada.
Dessa forma, ambos beneficiaremos nossos herdeiros e ganharemos a indulgência
da graça para nosso pai e para nós mesmos.
Assim
que chegaram a essa conclusão, a imagem do pai voltou a aparecer diante deles;
mas, agora, envergava uma indumentária diferente.
—
Agradeço-lhes por isto. Diminuíram o meu fardo ao assumirem o compromisso da
devolução dos bens. Agora, pela graça de
Deus, estou livre do tormento e já posso descansar.
Mais
uma vez, o espectro desapareceu, deixando os irmãos realizarem aquela promessa
com a melhor boa vontade, porque sabiam da rápida libertação do pai daquele
tormento.
O
Papa Leão conheceu pessoalmente os irmãos, que se tinham tornado monges, e
deles ouviu a história. Apressei-me em registrá-la para edificação de meus
leitores.
Versão em português de
Paulo Soriano.
Comentários
Postar um comentário