A MULHER ALTA - Conto Clássico de Terror - Pedro de Alarcón
A MULHER ALTA
Pedro de Alarcón
(1833-1891)
Tradução de autor desconhecido do século
XX
—
Quão pouco sabemos nós, amigos; como sabemos realmente pouco!
Quem
falava era Gabriel, um distinto engenheiro civil do corpo de montanha. Estava
sentado sob um pinheiro, perto de uma fonte, no cimo do Guadarrama. Distava
apenas légua e meia do palácio do Escurial, na linha fronteiriça das províncias
de Madri e Segóvia. Conheço o lugar, a fonte, o pinheiro, e tudo, mas esqueci-lhes
o nome.
—
Sentemo-nos — prosseguiu Gabriel —, já que esta é a melhor coisa que temos a
fazer e já que nosso programa exige um descanso aqui... aqui neste local
agradável e clássico, famoso pelas propriedades digestivas desta fonte e pelos
inúmeros cordeiros, aqui devorados pelos nossos notáveis professores Dom Miguel
Bosch, Dom Máximo Laguna, Dom Augustín Pascual e outros ilustres naturalistas.
Sentem-se, pois quero contar-lhes uma estranha e maravilhosa história em prova
da minha tese, que pretende demonstrar, embora vocês me chamem de
obscurantista, que acontecimentos sobrenaturais ainda ocorrem neste globo terráqueo.
Falo de acontecimentos que vocês não podem avaliar em termos de razão, ou
ciência, ou filosofia... essas “palavras, palavras, palavras” da frase de Hamlet,
como são compreendidas (ou o não são) hoje.
Gabriel
dirigia suas animadas observações a cinco pessoas de idades diferentes. Nenhuma
delas era jovem, embora apenas um estivesse adiantado em anos. Três deles eram
engenheiros como Gabriel, o quarto um pintor e o quinto um literateur em
pequeno estilo. Em companhia do narrador, que era o mais moço, tínhamos todos cavalgado
mulas alugadas no Real Sitio de San Lorenzo, a fim de passar o dia estudando
botânica entre as belas alamedas de pinheiros de Pequerinos, caçando borboletas
com redes, apanhando escaravelhos raros na casca de pinheiros apodrecidos e
comendo o lanche frio de um cesto que tínhamos comprado de parceria.
Era
em 1875, no clímax do verão. Não me lembro se era dia de São Jaime ou São Luís;
inclino-me a crer que fosse de São Luís. Fosse de quem fosse, gozávamos de um
delicioso frescor nas alturas, e o coração e o cérebro, bem como o estômago,
achavam-se em muito melhor disposição do que usualmente.
Quando
os seus amigos estavam sentados, Gabriel continuou da seguinte maneira:
— Não creio que vocês me acusem de ser um visionário.
Feliz ou infelizmente, sou, se me permitem dizê-lo, um homem do mundo moderno.
Não tenho superstições e sou tão positivista quanto o melhor deles, mas incluo
entre os fatos positivos da natureza todas as misteriosas faculdades e
sentimentos da alma. Bem, então, a propósito dos fenômenos sobrenaturais ou
extranaturais, ouçam o que vi e ouvi, embora não seja o verdadeiro herói desta
muita estranha história que vou contar, e digam-me, depois, que espécie de explicação
terrena, física ou natural, seja qual for o nome que lhe queiram pôr, vocês
podem dar para uma ocorrência tão maravilhosa.
“O
caso foi assim. Mas esperem! Deem-me antes um trago, pois o cantil já deve ter
gelado nessa fonte cristalina e murmurante, localizada pela Providência neste
alto pinheiral para o fim expresso de gelar o vinho de um botânico.
“Bem,
senhores, não sei se já ouviram falar de um engenheiro do corpo de estradas chamado
Telésforo X...; morreu em 1861.
—
Não; eu não.
—
Mas eu ouvi.
—
Também eu. Era um camarada moço da Andaluzia, de bigode negro; estava para
casar-se com a filha do Marquês de Moreda, mas morreu de icterícia.
—
Esse mesmo — disse Gabriel. — Bem, então, meu amigo Telésforo, seis meses antes
de sua morte, era ainda um jovem de futuro promissor, como se costuma dizer
agora. Simpático, esbelto, enérgico e tinha a glória de ser o primeiro da sua
classe a ser promovido. Já havia sobressaído em sua profissão por alguns
excelentes trabalhos que fizera. Diversas companhias disputavam seus serviços e
era também disputado por diversas moças casadouras. Mas Telésforo, como você
disse, era fiel à pobre Joaquina Moreda.
“Como
sabem, aconteceu que ela morreu, subitamente, nos banhos de Santa Agueda, no
fim do verão de 1859. Eu estava em Pau quando recebi as tristes notícias de sua
morte, que muito me afetaram, em virtude de minha estreita amizade com Telésforo.
Com ela tinha falado apenas uma vez, em casa de sua tia, a mulher do general
Lopez, e certamente considerei a palidez azulada de sua pele como um sintoma de
má saúde. Mas, seja como for, tinha ela maneiras distintas e muita graça, e
era, ademais, a única filha de um título, e de um título que carregava com ele
alguns confortáveis milhares; por isso, tive certeza de que o meu bom
matemático estaria inconsolável. Consequentemente, logo que voltei a Madri,
quinze ou vinte dias depois de sua perda, fui vê-lo numa manhã bem cedo. Ele
vivia em elegantes aposentos de solteiro da Rua I.obo... não me lembro que
número, mas era perto da Carrera de San Jerónimo.
“O
jovem engenheiro estava muito melancólico, embora calmo e senhor de seus
sentimentos. Já estava trabalhando, mesmo àquela hora, examinando, com seus
assistentes, os planos de uma ferrovia ou outros quaisquer.
“Recebeu-me
com um longo e apertado abraço, sem outra coisa mais que um suspiro. Depois,
deu algumas instruções aos seus assistentes sobre o trabalho e, em seguida,
conduziu-me ao seu gabinete particular, na extremidade da casa. Enquanto
caminhávamos, disse me ele, num tom de voz lamentoso e sem olhar-me:
—
Estou muito contente por ter vindo. Muitas vezes desejei que você estivesse
aqui. Aconteceu-me uma coisa muito estranha. Só mesmo um amigo como você pode
ouvir-me sem considerar-me um tolo ou um louco. Quero uma opinião a respeito
disso, tão serena e fria como a própria ciência.
—
Sente-se — continuou ele quando chegamos ao gabinete — e não pense que vou
aborrecê-lo com uma descrição da dor que estou experimentando... uma dor que
durará enquanto eu estiver vivo. Por que o faria? Você pode facilmente
imaginá-la, mesmo que conheça muito pouco de tais sentimentos. E quanto a ser
consolado, não desejo sê-lo, nem agora, nem mais tarde, nem nunca! O que
pretendo contar-lhe é um fato horrível e misterioso, que foi o presságio infernal
da minha desgraça e que me angustiou de uma maneira terrificante.
—
Continue — repliquei, sentando-me. O fato é que eu estava quase arrependido de
haver entrado na casa quando vi a expressão de um medo abjeto na face do meu
amigo.
—
Ouça, então — disse ele, enxugando o suor testa. — Não sei se é devido a alguma
fatalidade inata da imaginação, ou por haver ouvido alguma história dessa
espécie, com que as crianças permitem tão precipitadamente que a amedrontem,
mas o fato é que, desde os meus primeiros anos, nada me causa tanto horror e
susto como uma mulher sozinha na rua, a uma hora tardia da noite. O efeito é o
mesmo, quer eu realmente a encontre ou apenas a imagine. Você pode testemunhar
que eu nunca fui um covarde. Travei um duelo, certa vez, quando tive que fazê-lo,
como qualquer homem. Logo depois que saí da Escola de Engenharia, meus
trabalhadores em Despeñaderos se revoltaram e lutei contra eles, com pau e
revólver, até obrigá-los à submissão. Durante toda minha vida, em Jaen, em
Madri e noutros lugares, andei pelas ruas a qualquer hora, sozinho e desarmado,
e se me acontecia topar com pessoas suspeitas, ladrões ou simples mendigos
impertinentes, eles tinham que sair de meu caminho ou correr. Mas quando
acontecia que a pessoa fosse uma mulher solitária, parada ou caminhando, e eu
também estivesse sozinho, sem ter ninguém à vista em qualquer direção... então
(ria se quiser, mas acredite-me) toda a minha carne estremecia; vagos temores
me assaltavam; eu pensava em seres do outro mundo, em existências imaginárias, em
todas as histórias supersticiosas que me teriam feito rir noutras
circunstâncias. Apressaria meus passos ou faria meia-volta e não me libertaria
do medo enquanto não estivesse a salvo na minha própria casa.
“Quando
me visse em casa, começaria a rir e ficaria envergonhado de meus temores
loucos. Meu único conforto era que ninguém sabia de nada. Então eu asseguraria
desapaixonadamente a mim mesmo que não acreditava em duendes, feiticeiras ou
fantasmas, e que não tinha nenhuma razão em amedrontar-me com aquela desgraçada
mulher, tirada de sua casa a uma tal hora pela pobreza, ou por algum crime, ou
por acidente, e a quem eu deveria ter oferecido ajuda, se ela a necessitasse,
ou lhe dado esmola. Não obstante, a lamentável cena se repetiria sempre que
fatos similares ocorressem... e lembre-se de que eu tinha vinte e quatro anos
de idade, tinha tomado parte em muitas aventuras noturnas, ainda que eu nunca
tinha tido nenhum conflito com essas mulheres solitárias depois da meia-noite!
Mas nada do que lhe contei teve jamais qualquer importância, pois o medo
irracional me abandonava logo que eu me encontrasse em casa ou visse alguma
outra pessoa na rua, e eu dificilmente poderia evocá-lo minutos depois mais nitidamente
do que alguém evoca um engano estúpido sem consequências.
“As
coisas continuavam assim, quando, há cerca de três anos (tenho, infelizmente,
boas razões para lembrar-me da data — foi na noite de 15 para 16 de novembro de
1857), eu voltava para casa às três da madrugada. Como você deve recordar-se, eu
morava, então, naquela pequena casa da Rua Jardines, perto da Rua Montera.
Tinha justamente saído, àquela hora tardia em que soprava um vento áspero e
frio, de uma espécie de casa de jogo... digo-lhe isso, embora saiba que o estou
surpreendendo. Você sabe que não sou um jogador. Entrei na casa, enganado por
um suposto amigo. Mas o fato é que, à medida que as pessoas começaram a entrar,
cerca da meia-noite, vindas de recepções ou de teatros, o jogo começou a
animar-se e o ouro começou a luzir em quantidade. Depois apareceram títulos de
banco e promissórias. Pouco a pouco, fui fascinado pela paixão sedutora e febricitante
e perdi todo o dinheiro que tinha. Saí mesmo devendo uma grande soma, pelo que
deixei uma promissória atrás de mim. Em resumo, tinha me arruinado
completamente; e se não fosse a herança que recebi logo depois e os bons
empregos que tive, minha situação seria extremamente crítica e lamentável.
Ia,
pois, para casa, como disse, a uma hora tão tardia da noite, entorpecido pelo
frio, faminto, envergonhado, aborrecido como você pode imaginar, pensando no meu
pai doente mais do que em mim mesmo. Via-me obrigado a escrever-lhe pedindo
dinheiro, e isto deveria espantá-lo e entristecê-lo, pois considerava-me numa situação
muito boa. Pouco antes de alcançar a minha rua, onde ela cruza com a Rua
Peligros, ao passar diante de um prédio recém-construído, percebi alguma coisa
na sua porta. Era uma mulher alta, grande, que estava tesa e imóvel, como se
fosse de madeira. Parecia ter uns sessenta anos de idade. Sus olhos atrevidos e
malignos, desprovidos de pestanas, estavam fixos nos meus como dois punhais.
Sua boca desdentada dirigiu-me um esgar horrível, que pretendia ser um sorriso.
“O
próprio terror ou delírio de medo, que instantaneamente me dominou, tornou a
minha percepção mais aguda, de maneira que pude distinguir, num só relance, dos
segundos que levei para passar em frente da repugnante visão, os menores
detalhes do seu rosto e dos seus trajes. Deixe-me ver se posso reproduzir as
impressões que tive, pela maneira e forma por que as recebi, como estão indelevelmente
gravadas em meu cérebro, à luz daquela lâmpada de rua, que brilhava lugubremente
sobre a fantástica cena. Mas estou me excitando demasiado, embora haja muitas
razões para isto, como você verá depois. Não se preocupe, porém, com o estado
da minha mente. Não estou louco ainda!
“A
primeira coisa que me impressionou naquela mulher, como prefiro chamá-la,
foi a sua extraordinária altura e a largura de seus ombros ossudos. Depois, a
redondeza e fixidez dos seus frios olhos de coruja, o tamanho enorme do seu
nariz saliente, e a grande caverna escura de sua boca. Finalmente, seu vestido,
como o de uma jovem mulher de Avapiés... o pequeno lenço de algodão que trazia
na cabeça, amarrado sob o queixo, e um leque minúsculo que segurava aberto na
mão e com o qual, com afetada modéstia, cobria a metade do seu peito.
“Nada
podia ser, ao mesmo tempo, mais ridículo mais medonho, mais risível e mais
zombeteiro do que o pequeno leque naquelas mãos enormes. Parecia como um cetro
de brinquedo nas mãos de uma tal velha, horrível e ossuda gigante! O mesmo
efeito produzia o pequeno lenço de percal que adornava sua face ao lado daquele
nariz adunco e masculino; por um momento, fui levado a crer (ou gostaria de ter
crido) que era um homem disfarçado.
“Mas
seu olhar cínico e o seu grosseiro sorriso eram os de uma bruxa, de uma
feiticeira, de uma maga, de uma... não sei o quê! Havia nela qualquer coisa que
justificava inteiramente a aversão e o medo que eu experimentara durante toda a
minha vida pelas mulheres que caminham pelas ruas, sozinhas, à noite. Dir-se-ia
que eu tinha, desde a infância, o pressentimento desse encontro. Dir-se-ia que
eu estava aterrorizado instintivamente, como todo o ser vivente receia e
adivinha, e suspeita e reconhece seu inimigo natural antes mesmo de ser atacado
por ele, antes mesmo de tê-lo visto, e somente por ouvir seus passos.
“Não
fugi correndo quando vi a esfinge de minha vida. Contive o impulso de fazê-lo,
menos por vergonha, ou principalmente por orgulho, do que pelo receio de que o
meu próprio medo lhe revelasse quem eu era ou lhe desse asas para seguir-me,
para apanhar-me... nem eu sei. Pânicos assim imaginam coisas que não têm forma
nem nome.
“Minha
casa ficava no extremo oposto da rua comprida e estreita, na qual eu estava só,
completamente só com aquele misterioso fantasma que eu jugava capaz de
aniquilar-me com uma única palavra. Como poderia eu alcançar a minha casa? Oh,
quão ansiosamente olhei para a longínqua Rua Montera, larga e bem iluminada,
onde se podia encontrar policiais a qualquer hora! Decidi, finalmente, extrair
o máximo de minha fraqueza; dissimular e esconder aquele miserável medo: não
apressar o passo, mas avançar lentamente, mesmo à custa de anos de saúde ou de
vida, e desse modo, pouco a pouco, aproximar-me da minha casa, fazendo o
possível para não cair desmaiado no chão antes de atingi-la.
“Estava
eu caminhando assim... devia ter dado cerca de vinte passos depois que deixara
atrás de mim a porta na qual a mulher do leque estava escondida, quando, de
repente, uma ideia terrível me assaltou... horrível, contudo, muito natural — a
ideia de olhar para trás e ver se o meu inimigo estava me seguindo. Pensei numa
coisa e noutra com a rapidez de um relâmpago: ou o meu medo tinha algum fundamento
ou era apenas loucura; se tivesse algum fundamento, aquela mulher estaria
caminhando atrás, de mim, pronta para apanhar-me, e, então, não haveria mais
esperança para mim neste mundo. Mas se fosse loucura, uma simples suposição, um
temor pânico como outro qualquer, eu ficaria plenamente convencido na atual
situação e em todos os casos futuros, se visse que a pobre mulher se tinha refugiado
no umbral da porta para proteger-se contra o frio, ou para esperar até que lhe
abrissem; e, assim sendo, eu poderia seguir para minha casa perfeitamente tranquilo,
e me curaria definitivamente de uma fantasia que tão grandes mortificações me
causava.
“Raciocinando
dessa maneira, fiz um esforço extraordinário e voltei a cabeça. Ah, Gabriel!...
Gabriel! como foi pavoroso! A mulher alta tinha me seguido silenciosamente,
estava muito perto de mim, quase tocando-me com seu leque, quase encostando sua
cabeça no meu ombro.
“Por
que fazia isso?... Por que, meu Gabriel? Era uma ladra? Era realmente um homem
disfarçado? Era alguma velha feiticeira maliciosa, que percebera que eu sentira
medo dela? Era um espectro evocado pela minha própria covardia? Era um fantasma
zombeteiro da autodecepção humana?
“Nunca
lhe poderei contar tudo quanto pensei rum único momento. Se a verdade deve ser
dita, então digo-lhe que dei um grito e corri como uma criança de quatro anos
que pensa ter visto o Homem Sombrio. Não parei de correr até chegar à Rua Montera.
Lá chegando, o medo abandonou-me como por arte mágica. Isto apesar daquela rua
também estar deserta. Então voltei a cabeça para a Rua Jardines. Podia vê-la em
toda a sua extensão. Estava suficientemente iluminada para que eu pudesse ver a
mulher alta se ela tivesse seguido para qualquer direção e — pelos céus! — não
pude vê-la, nem parada, nem andando, nem de qualquer modo. Não obstante, tive a
cautela de não voltar àquela rua. A bruxa, pensei comigo, escondeu-se em algum
outro umbral. Mas ela não pode mover-se sem que eu veja.
“Justamente,
então, percebi um policial, vindo da Rua Cabellero de Gracia, e chamei-o sem
sair do meu lugar. Disse-lhe que havia um homem vestido de mulher na Rua
Jardines. Pedi-lhe que fosse pela Rua Peligros, e Aduana, enquanto eu
permanecia onde estava, a fim de que o sujeito, que devia ser provavelmente um
ladrão ou um assassino, não pudesse escapar-nos. O policial seguiu minhas
instruções. Entrou pela Rua Aduana e logo que vi sua lanterna aparecer na Rua
Jardines, encaminhei-me resolutamente para ela.
“Encontramo-nos
no meio do quarteirão, sem que nenhum de nós tivesse visto viva alma, embora examinássemos
porta por porta.
—
Entrou em alguma casa — disse o policial.
—
Deve ter entrado — repliquei, abrindo minha própria porta, com o firme
propósito de mudar-me para outra rua no dia seguinte.
“Momentos
depois, estava em meus aposentos: sempre tive o cuidado de trazer minha chave,
a fim de não perturbar o meu bom José. Não obstante, ele esperava por mim,
naquela noite. Meus infortúnios de 15 para 16 de novembro ainda não tinham
terminado.
—
O major Falcón esteve aqui — retrucou ele, em evidente agitação —, esperando
pelo senhor das sete até as duas e meia, e disse-me que, se o senhor dormir em casa,
seria melhor não tirar a roupa, pois ele virá vê-lo assim que amanhecer.
“Essas
palavras fizeram-me tremer de pesar e de alarma, como se predissessem minha
própria morte Eu sabia que meu amado pai, em sua casa em Jaén, sofria
frequentes e perigosos ataques de suas dores crônica. Escrevera nos meus irmãos
que, se ocorresse um súbito e fatal desfecho da doença, telegrafassem ao major
Falcón, o qual logo me informaria. Não Tinha, pois, a menor dúvida de que meu
pai havia morrido.
“Sentei-me
numa poltrona para esperar a manhã e o meu amigo e, com eles, as notícias de
minha grande desgraça. Só Deus sabe o que sofri naquelas duas cruéis horas de
espera. Durante todo o tempo, três ideias distintas estavam indissoluvelmente ligadas
no meu cérebro; embora parecessem diferentes, tudo faziam para conservar-se
juntas num grupo terrível. Eram elas: minhas perdas no jogo, meu encontro com a
mulher alta e a morte do meu estimado pai.
“Precisamente
às seis, o major Falcón entrou no meu quarto e olhou-me em silêncio. Atirei-me
em seus braços, soluçando amargamente, enquanto ele exclamava, afagando-me:
—
Sim, meu caro amigo, soluce, soluce.
*
Meu
amigo Telésforo — continuou Gabriel, depois de haver tragado outro copo de
vinho — também fez uma pausa nesta altura da narração e, em seguida, prosseguiu
da seguinte maneira:
—
Se minha história terminasse aqui, talvez você nada visse nela de
extraordinário ou de sobrenatural. Você me diria a mesma coisa que homens de
bom senso me disseram naquela ocasião: que todas as pessoas dotadas de
imaginação viva estão sujeiras a algum impulso de medo ou outro qualquer; que o
meu provinha de mulheres retardatárias e solitárias, e que a velha criatura da
Rua Jardines era apenas alguma miserável sem teto, que pretendia pedir-me uma
esmola quando eu gritei e corri.
“De
minha parte, procurei acreditar que fosse assim. Cheguei mesmo a acreditá-lo,
ao cabo de muitos meses. Contudo, eu estava, então, disposto a dar alguns anos
de minha vida para certificar-me de que não tornaria a encontrar a mulher alta.
Mas, hoje, eu daria todas as gotas do meu sangue para tornar a encontrá-la.
— Para quê?
— Para matá-la.
—
Não compreendo.
—
Compreenderá quando lhe disser que a encontrei novamente, há três semanas,
algumas horas antes de receber as notícias fatais da morte de minha pobre
Joaquina.
—
Conte-me isso, conte-me Isso!
—
Há muito pouco que dizer. Eram cinco horas da manhã. Ainda não estava
completamente claro, embora a aurora fosse visível através das ruas que se
dirigiam para o leste. As lâmpadas dos postes tinham-se apagado e os policiais
desaparecido. Enquanto eu seguia pela Rua Prado, para alcançar o outro extremo
da Rua Lobo, a horrível mulher passou pela minha frente. Não me olhou e pensei
que não me tivesse visto.
“Trazia
o mesmo vestido e segurava o mesmo leque, como três anos antes. Meu
estremecimento e susto foram maiores do que nunca. Corri depressa ao longo da Rua
Prado, logo que ela passou, embora não desviasse os olhos da sua figura, como
para assegurar-me de que ela não olharia para trás, e quando atingi a outra extremidade
da Rua Lobo, arquejava como se tivesse atravessado a nado a corrente impetuosa
de um rio. Apressei o passo, então, com renovada energia, para casa, cheio,
agora, de alegria em vez de medo, porque pensei que a odiosa bruxa tinha sido
conquistada e despojada de seu poder pelo próprio fato de haver eu passado tão
perto dela sem que me tivesse visto.
“Cedo,
porém, e quando eu quase havia alcançado esta casa, uma onda de pavor
invadiu-me, ao pensamento de que a esperta feiticeira tinha-me visto e
reconhecido, simulando o contrário a fim de deixar que eu entrasse na Rua Lôbo,
onde ainda estava escuro e onde poderia atirar-se sobre mim com segurança.
Sentia que ela estava me seguindo, que já estava junto de mim.
“Passei
do medo à mais furiosa cólera, a urna cólera desesperada e selvagem. Atirei-me
contra a velha criatura. Encostei-a na parede, pus a mão na sua garganta. Senti
seu rosto, seu hálito, as mechas errantes do seu cabelo grisalho, até que me
convenci inteiramente de que ela era um ser humano... uma mulher.”
“Entrementes,
ela emitira um gemido roufenho e penetrante ao mesmo tempo. Pareceu-me falso e
fingido, bem como a hipócrita expressão de medo que ela não devia realmente
sentir. Logo em seguida, ela exclamou, como se estivesse prestes a chorar, mas
olhando-me com seus olhos de hiena:
—
Por que está brigando comigo?
Esta
observação aumentou meu medo e atenuou minha raiva.
—
Lembre-se — gritei-lhe —, que você já se encontrou comigo, noutro lugar.
—
Creio que sim, querido — retrucou ela, zombeteiramente. — Na noite de Santo
Eugênio, na Rua Jardines, há três anos. Minha própria medula estava gelada.
—
Mas quem é você? — perguntei sem largá-la. — Por que me segue? O que pretende
de mim?
—
Sou uma pobre e fraca mulher — tornou ela com um olhar diabólico. — Você me
odeia e tem medo de mim sem razão alguma. Se não tem, diga-me, meu bom senhor,
por que se mostrou tão amedrontado quando me viu pela primeira vez?
—
Porque eu a detesto desde que nasci. Porque você é o espírito mau de minha vida.
Parece, então, que você me conhece há muito tempo.
—
Bem, ouça meu filho, eu também o conheço há muito tempo.
—
Conhece-me? Desde quando?
—
Mesmo antes de você nascer! E quando o vi passar por mim, três anos atrás,
disse comigo mesma: é ele.
—
Mas que sou eu para você? Que é você para mim?
—
O diabo! — replicou a bruxa, cuspindo na minha face, livrando-se de meus braços
e correndo com espantosa agilidade. Erguia a saia acima dos joelhos e seus pés não
faziam o menor ruído ao tocarem no chão.
“Seria
loucura tentar alcançá-la. Ademais, já começavam a passar pessoas pela Carrera
de San Jerónimo e, também, na Rua Prado. Já era dia. A mulher alta continuou a
correr ou a voar até a Rua Huertas, a qual estava agora iluminada pelo Sol. Lá
ela parou e voltou-se para olhar-me. Acenou-me com o leque uma ou duas vezes, ameaçadoramente
e desapareceu pareceu no ângulo de uma esquina.
“Espere
um pouco, Gabriel. Não pronuncie ainda sua sentença, neste caso em que minha vida
e minha alma estão em jogo. Ouça-me dois minutos mais.
“Quando
entrei em casa, encontrei o coronel Falcón, que tinha justamente chegado para
dizer-me que minha Joaquina, minha noiva, toda minha esperança, felicidade e
alegria na terra, tinha falecido no dia anterior em Santa Agueda. O infeliz pai
telegrafara a Falcón para comunicar-me a notícia... a mim que, uma hora ante, devia
tê-lo adivinhado ao encontrar o espírito mau de minha vida! Não compreende,
agora, que devo matar esse inimigo nato da minha felicidade, essa bruxa velha e
vil que é a zombaria viva do meu destino?
“Mas
por que digo matar? É ela uma mulher! É um ser humano? Por que tive um
pressentimento do sua existência desde que nasci? Por que me reconheceu ela
quando me viu pela primeira vez? Por que a vejo somente quando uma grande
calamidade cai sobre mim? É ela o Demônio? É a Morte? E' a Vida? É o
Anticristo? Quem é ela? Que é ela?”
—
Vou poupar-lhes, queridos amigos — continuou Gabriel —, os argumentos e
observações que empreguei para tentar acalmar Telésforo, pois são os mesmos,
precisamente os mesmos, que vocês estão se preparando para empregar a fim de
provar que nada há de sobrenatural ou sobre-humano na minha história. Vocês
irão ainda mais longe; dirão que meu amigo estava semilouco; que ele sempre o fora;
que, ao menos, ele sofria daquela doença moral que alguns chamam “terror pânico”,
e outros “insanidade emocional”; que, mesmo assegurando a verdade do que contei
sobre a mulher alta, tudo deve ser atribuído a coincidência de datas e de
fatos; e, finalmente, que a pobre velha criatura também devia ser louca, ou uma
ladra, ou uma mendiga, ou uma alcoviteira... como o herói de minha história
disse a si mesmo num intervalo lúcido.
—
Uma suposição muito adequada — exclamaram os camaradas de Gabriel. — Justamente
o que íamos dizer.
—
Bem, ouçam alguns minutos mais e verão que eu estava enganado naquela época e
que vocês estão enganados agora. O único que não se enganou, infelizmente, foi
Telésforo. É muito mais fácil dizer a palavra “insanidade” do que encontrar
explicação para certas coisas que acontecem na terra.
—
Fale, fale!
—
Vou falar; e desta vez, como é a última, não tomarei o fio da narração sem
beber antes um copo de vinho.
“Alguns
dias depois daquela conversa com Telesforo, fui enviado à província de Albaceta
na qualidade de engenheiro do corpo de montanha. Não muitas semanas se passaram
antes que eu soubesse, por um contratador de trabalhos públicos, que o meu
'infeliz' antigo tinha sido atacado por uma terrível espécie de icterícia;
tornara-se inteiramente verde e vivia reclinado numa poltrona, sem trabalhar e
sem desejar ver nenhuma pessoa, soluçando noite e dia no mais inconsolável e
amargo desespero. Os médicos tinham-no desenganado.
“Isto
me fez compreender o motivo por que ele não respondeu às minhas cartas. Tive
que escrever ao coronel Falcón para obter notícias e, nesse ínterim, todas as
informações que me chegavam eram cada vez mais desfavoráveis e soturnas.
“Após
uma ausência de cinco meses, voltei a Madri, no mesmo dia em que o telégrafo
espalhava as notícias da batalha de Tetuán[1].
Lembro-me como se fosse ontem. Naquela noite, comprei o indispensável Correspondencia
de España e a primeira coisa que li foi a notícia da morte de Telésforo.
Seus amigos eram convidados para o funeral na manhã seguinte.
“Estão
naturalmente certos de que compareci. Ao chegarmos ao cemitério de San Luis,
para o qual eu rodava numa carruagem próxima do coche funerário, minha atenção
foi despertada por uma camponesa. Era velha e muito alta. Ela riu
sacrilegamente ao ver que tiravam o caixão. Então, postou-se na frente dos que
conduziam o esquife numa atitude triunfante, indicando-lhes, com um
pequeníssimo leque, o caminho que deviam tomar para chegarem à cova aberta que
esperava.
“À
primeira vista percebi, com espanto e susto, que era a implacável inimiga de
Telésforo. Era justamente como ele me havia descrito... com o nariz enorme, os
olhos diabólicos, a boca horrível, o lenço de perca e aquele minúsculo leque
que parecia em suas mãos o cetro da indecência e da zombaria.
“Ela
imediatamente observou que eu a estava olhando e fixou os olhos em mim de um
modo peculiar, como se estivesse me reconhecendo, como se quisesse demonstrar
que estava me reconhecendo, como se soubesse que o morto me tinha contado os episódios
da Rua Jardines e Rua Lobo, como que desafiando-me, como que declarando-me
herdeiro do ódio que tinha alimentado pelo meu infeliz amigo.
“Confesso
que, no momento, meu medo foi maior do que o meu espanto, diante daquelas novas
coincidências e acidentes. Pareceu-me evidente que alguma relação
sobrenatural, anterior à vida terrena, existira entre a misteriosa velha e
Telésforo. Mas, no momento, minha única preocupação era sobre minha própria
vida, minha própria alma, minha própria felicidade... coisas estas que ficariam
expostas ao maior perigo se eu realmente herdasse tamanha maldição...
“A
mulher alta começou a rir. Apontou para mim, com desprezo, usando o leque, como
se tivesse lido meus pensamentos e expusesse publicamente minha covardia. Tive
que apoiar-me no braço de um amigo para não cair. Então, ela fez um gesto de
piedade ou de desdém, rodou sobre os calcanhares e entrou no cemitério. Sua
cabeça estava voltada para mim. Abanava-se e acenava-me ao mesmo tempo.
Deslizava entre os túmulos com um despudor infernal e indescritível, até que,
finalmente, desapareceu para sempre no labirinto das tumbas.
“Eu
disse para sempre, pois desde então já passaram quinze anos e nunca mais a vi.
Se era um ser humano, deve ter morrido há muito; se não era, continuo
convencido de que ela me despreza demais para meter-se comigo.
“Agora,
exibam suas teorias! Deem-me sua opinião sobre esses estranhos acontecimentos.
Ainda os consideram como inteiramente naturais?”
Fonte: “A Cigarra”/SP,
edição de dezembro de 1952.
Ilustrações: PS/Copilot.
[1] Batalha
ocorrida em 4 de fevereiro de 1860, no Marrocos, entre os exércitos espanhol e
marroquino.
a ilustração da anciã, é assustadora! Vou começar a ler o conto agora.
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