NO ABISMO - Conto Clássico de Ficção Científica - H. G. Wells
NO ABISMO
H. G. Wells
(1866 – 1946)
Tradução de autor desconhecido do séc.
XX
O
tenente estava de pé diante da esfera de aço e mordia uma lasca de madeira.
—
Que pensa disto, Steevens? — perguntou ele.
—
É uma ideia como outra qualquer — disse Steevens, em tom de quem quer formar
uma opinião sincera.
—
Creio que isto vai achatar-se em cheio — continuou o tenente.
—
Parece que ele calculou cuidadosamente a coisa — disse Steevens, ainda
imparcial.
—
Mas lembra-se da pressão — insistiu o tenente. — À superfície da água, ela é de
quatorze libras por polegada; trinta pés mais abaixo, é dupla; a sessenta,
tríplice; a noventa, quádrupla; a novecentos, quarenta vezes maior; a cinco mil
pés, trezentas vezes maior... isto quer dizer que a uma milha de profundidade a
pressão é duzentas e quarenta vezes quatorze libras: isto é... espere... um
quintal... uma tonelada e meia, Steevens. "Uma tonelada e meia" por
polegada quadrada. E o oceano tem aqui cinco milhas de profundidade. Ele
suportará uma pressão de sete toneladas e meia...
—
Uma bela sondagem! — disse Steevens. — Mas também ele é protegido por uma
espessura de aço.
O
tenente não respondeu e pôs-se de novo a morder o pedaço de madeira. O objeto
da conversação era uma imensa bola de aço, cujo diâmetro exterior era de nove
pés, mais ou menos, e que parecia ser o projétil de algum formidável peça de
artilharia: achava-se muito trabalhosamente encaixada em um arcabouço
monstruoso, armado no madeiramento do navio e os gigantescos cilindros de
madeira sobre os quais ela ia em breve resvalar por cima da amurada. Tal
aspecto davam à popa da embarcarão, que excitaria a curiosidade todo o
marinheiro consciencioso, desde "pool" de Londres até o trópico de
Capricórnio. Em dois lugares, um em cima do outro, o aço era substituído por um
par de janelas circulares, fechadas com portas de vidro de espessura
considerável, e uma delas, encaixilhada em armação de grande solidez, achava-se
então parte aparafusada.
Nesse
mesmo dia, pela manhã, os dois homens tinham visto primeira vez o interior
daquele globo. Ele estava cuidadosamente acolchoado de almofadas de ar
comprimido, guarnecidas de botões fixos entre as saliências, e que constituíam
o simples mecanismo do aparelho.
Todos
os objetos estavam igualmente bem acolchoados, até o aparelho Myers devia
absorver o ácido carbônico e substituir o oxigênio aspirado habitante do globo
quando, uma vez lá introduzido, estivesse aparafusada a abertura de vidro.
Tudo
estava tão perfeitamente acolchoado que uma pessoa, colocada dentro da esfera,
se esta fosse atirada por um canhão, poderia suportar com segurança o choque
impetuoso. E assim era preciso, porquanto ia lá penetrar pela abertura: ficaria
solidamente fechado dentro dela e seria em seguida atirado por cima da amurada,
para afundar-se no Oceano até uma profundidade de cinco milhas, como dissera o
tenente. A imaginação deste achava-se exclusivamente ocupada com esta ideia;
tornara-se para ele uma obsessão, mesmo durante as refeições, e Steevens, o
recém-chegado, era companheiro precioso, com que ele ia poder conversar à
vontade sobre o objeto da preocupação.
—
Tem-se ocorrido à ideia — disse o tenente — de que estes postigos de vidro
podem muito bem dobrar, rachar e esmigalhar-se sob semelhante pressão. Daubrée
liquefez rochedos sob pressões enormes... e note bem isto...
—
Se o vidro quebrar, disse Steevens — que poderá suceder?
— A água entrará como um jato de ferro. Já recebeu alguma vez um jato de grande pressão? É o mesmo que uma bala. Ele seria simplesmente esmagado e achatado. A água entrar-lhe-ia pela garganta, pelos pulmões, penetraria nos ouvidos...
—
Que imagem detalhada! — exclamou Steevens, que concebia as coisas ao vivo.
—
E a simples exposição de uma coisa inevitável — disse o tenente.
—
E o globo?
—
Esse deixaria escapar algumas pequenas bolhas e instalar-se-ia
confortavelmente, até ao dia do Juízo Final entre o lodo e o limo do fundo...
com o pobre Elstead esmagado nas almofadas achatadas, como manteiga em pão.
Repetiu
a imagem como se ela lhe tivesse agradado muito:
—
Como manteiga em pão.
—
Uma vista de olhos na vela traseira — disse uma voz.
E
Elstead apareceu atrás deles, vestindo um terno branco, tendo um cigarro na
boca e os olhos risonhos sob as grandes abas do chapéu.
—
Que está a dizer, a propósito de pão e de manteiga, Weybridge? Estás, como de
costume, resmungando sobre o ordenado insuficiente dos oficiais de marinha? Só
falta agora um dia para a minha partida. As lingas vão ficar prontas hoje. Este
lindo céu e este marulho tranquilo são justamente o que é preciso para se
atirar por cima da amurada uma dúzia de toneladas de chumbo e ferro, não é
verdade?
—
Você não há de perceber muito bem o marulho — disse Weybridge.
—
Não. A seiscentos ou oitocentos pés de profundidade... e lá estarei daqui a
doze segundos... nem uma só molécula se moverá, ainda que o vento se
desencadeie e que a água suba até as nuvens. Não. Lá, no fundo...
Isto
dizendo, caminhou para a trincheira da borda, e
os outros dois seguiram-no. Todos três se inclinavam, apoiando-se aos cotovelos
e contemplaram a água de um verde amarelado.
—
... a paz — disse Elstead, terminando alto o seu pensamento.
—
Está absolutamente certo de que o movimento dos relógios será constante? —
perguntou inopinadamente Weybridge.
—
Ele tem trabalhado trinta e cinco vezes — disse Elstead. — Continuará a trabalhar.
—
Mas suponhamos que ele não funcione.
— Por não há de funcionar?
—
Eu, nem por vinte mil libras desceria naquela maldita máquina — disse
Weybridge.
—
São realmente animadoras estas palavras — notou Elstead.
—
Ainda não pude compreender de que modo se possa fazer funcionar aparelho —
disse Steevens.
—
Ora! Em primeiro lugar, entro na esfera e aparafusam a abertura, principiou
Elstead. — E, depois de eu ter acendido e apagado três vezes seguidas a luz
elétrica para mostrar que tudo vai bem, sou lançado por cima da trincheira da
borda por este guindaste, com todos estes grandes pesos de chumbo suspensos em
volta de mim. Aquele enorme que está suspenso em cima, é munido de um cilindro
no qual estão enroladas cem toesas de sólida corda, e é tudo quanto liga os
pesos do fundo à esfera, excetuando as lingas que serão cortadas quando a
esfera cair. Sirvo-me de cordas, de preferência a cabos de ferro, porque são
mais flutuantes e por serem mais fáceis de cortar — condições necessárias, como
já vai ver. Repare, pare todos estes pesos de chumbo são furados; ser-lhes-á
adaptada uma barra de ferro que excederá seis pés à extensão da face interior.
Logo que esta barra estiver em contato com o fundo, ela baterá em uma alavanca
que desprenderá o movimento do relógio do lado em que está o cilindro sobre o
qual estão enroladas as cordas... Compreende? Deita-se à água todo o sistema do
modo mais simples. A esfera flutua... com o ar que contém, ela fica mais leve
que a água... mas os pesos de chumbo continuam a afundar, e a corda se
desenrola até ao fim. Logo que a corda fica inteiramente desenrolada, a esfera
vai também afundando.
—
Mas de que serve a corda? — perguntou
Steevens. — Por que razão não se unem diretamente os pesos à esfera?
— Por causa do choque provável do fundo. A
esfera e os pesos atingem pouco a pouco uma velocidade vertiginosa e vão ao
fundo rapidamente. Se não fora a gorda, ela seria feita em pedaços ao bater no
fundo. Desde, porém, que os pesos
repousarem no fundo, entrará em jogo a leveza da esfera. Ela continuará a
afundar cada vez mais lentamente, parará finalmente, depois tornará a subir. É
então que intervém o movimento do relógio. Logo que os pesos de chumbo se
achataram no fundo do mar, a barra será empurrada e impulsionará o movimento e
de novo a corda se enrolará no cilindro. Destarte, serei levado até ao fundo.
Aí ficarei cerca de meia hora, com a luz elétrica acesa, examinando o que
estiver em torno de mim. Depois, o movimento do relógio acionará uma faca de
mola, a corda será cortada e tornarei à superfície como uma bolha em um sifão.
A própria corda auxiliará a flutuação.
—
E se, por acaso, a esfera, ao subir, for ter ao fundo de um navio? — perguntou
Weybridge.
—
Ela levará tal velocidade que o atravessará como uma bala de canhão — disse
Elstead. — Sobre esse ponto não há a
menor dúvida.
—
Suponha que um pequeno crustáceo de grande agilidade se insinue nas molas do
relógio.
— Isto seria para mim uma espécie de convite um tanto urgente para eu me deixar ficar na companhia deles — disse Elstead voltando as costas para o mar e contemplando a esfera.
Tinham
atirado Elstead por cima da amurada às onze horas. O dia estava calmo e
serenamente iluminado, e o horizonte perdia-se no nevoeiro. O brilho das
lâmpadas elétricas tinha alegremente aparecido por três vezes dentro do
compartimento superior. Foi então que o fizeram descer lentamente até tocar na
superfície da água, e um marinheiro, colocado junto dos rebordos da ré, estava
pronto a cortar a adriça que retinha o conjunto dos pesos do fundo e da esfera.
A esfera, que na tolda do navio parecera enorme, não passava agora de um
pequeno objeto de dimensões mínimas, visto sob a popa da embarcação. Ela
baloiçou-se um pouco e os seus dois postigos escuros, colocados acima da linha
de flutuação, pareciam dois olhos desmesuradamente abertos, contemplando a equipagem
que se comprimia contra a amurada. Ergueu-se uma voz, perguntando o que devia
pensar Elstead daquele baloiço.
—
Estão prontos? — exclamou o capitão.
—
Sim, capitão.
—
Larguem tudo.
O
cabo da adriça retesou-se contra a vaga e foi cortado. Formou-se um rodamoinho
sobre a esfera e a água convulsionou-se de um modo grotescamente imponente.
Alguém agitou um lenço; outro tentou uma exclamação vã! Um quartel-mestre
contou lentamente... oito, nove, dez. Formou-se novo rodamoinho, depois, com um
ruidoso marulho e, lançando jatos de água a grande altura, a esfera tomou a
posição vertical.
Ela
pareceu ficar estacionária um instante, depois tornar-se rapidamente menor; por
fim, a água cobriu-a, e ela ficou visível sob a superfície, indistinta e
aumentada pela refração. Antes de se ter podido contar até três, tinha ela já
desaparecido. Viu-se nas profundezas da água uma trepidação de luz branca que
foi diminuindo até não formar mais que um ponto, desvanecendo-se por fim. Depois, nada mais se viu senão o abismo de
águas tenebrosas, onde nadava um tubarão.
Rapidamente,
a hélice do vapor se pôs em movimento; a água espadanou em borbotões; o tubarão
desapareceu na confusão das ondas, e uma torrente de espuma sobre a cristalina
limpidez que havia sorvido Elstead.
—
Que se vai agora fazer? — disse um marinheiro a outro.
—
Vamos afastar-nos um par de milhas para não nos encontrarmos no seu caminho,
quando ele subir — respondeu o camarada.
O
navio tomou lentamente uma nova posição. A bordo todos os que não estavam de
serviço ficaram observando o lugar agitado onde a esfera se tinha afundado.
Durante a meia hora que se seguiu, é de crer que nenhuma palavra foi
pronunciada que não se referisse a Elstead. O Sol de dezembro estava agora no
céu e era grande o calor.
—
Creio que ele não deve sentir muito calor lá embaixo — disse Weybridge. — Há
quem afirme que, uma certa profundidade, a água do mar está quase sempre em uma
temperatura glacial.
—
Em que lugar vai ele aparecer? — perguntou Steevens.
—
Acolá — disse o comandante, que se orgulhava sua onisciência. E indicou com o
dedo um ponto exato para sudoeste. E acrescentou: — Agora não há de tardar. Já
se passaram 35 minutos.
***
—
Quanto tempo é preciso para chegar ao fundo do oceano? — perguntou Steevens.
—
Para uma profundidade de cinco milhas, levando em conta, como fizemos, uma
aceleração de dois pés por segundo, tanto na ida como na volta, são precisos
três quartos de minuto...
—
Então, ele está atrasado, — disse Weybridge.
—
Mas... quase — disse o comandante. — Suponho que são precisos alguns minutos
para que a sua corda se enrole.
—
Esqueceu-me isso — disse Weybridge evidentemente aliviado.
Então
principiou a expectação. Lentamente, decorreu um minuto e nenhuma esfera surgiu
das ondas. Seguiu-se outro minuto e nada veio romper a ondulação untuosa do
mar. Os marinheiros explicavam uns aos outros a importância do enrolamento da
corda. O cordame estava cheio de fisionomias atentas.
—
Sobe, Elstead, sobe! — gritou com impaciência um marinheiro de peito cabeludo,
e os outros repetiram e gritaram como se reclamassem a subida do pano de um
teatro.
O
comandante lançou-lhes um olhar irritado.
—
Naturalmente, se a aceleração é menor que dois — disse ele —, levará mais
tempo. Não estamos absolutamente certos que seja esse um dado exato. Eu não
creio cegamente nos cálculos.
Steevens
manifestou laconicamente o seu assentimento. Durante um par de minutos ninguém
falou. Então, o do relógio de Steevens fez um ruído.
Quando,
vinte minutos mais tarde, o Sol chegou ao zênite, eles esperavam ainda o
aparecimento da esfera, e nem um homem a bordo ousava murmurar que estava
perdida toda a esperança. Foi Weybridge quem primeiro exprimiu essa certeza.
—
Eu nunca tive confiança naqueles postigos, — disse ele, de repente, a Steevens.
—
Meus Deus! — exclamou Steevens. — Então
não acredita que...
—
Palavra que não... disse Weybridge.
—
Não tenho grande confiança nos cálculos desse gênero — declarou o comandante em
tom de dúvida, de modo que ainda não perdi de todo a esperança.
À
meia-noite, o cruzador evoluía lentamente, ao redor do lugar onde a esfera
tinha emergido. O clarão branco do foco elétrico perpassava e detinha-se
continuadamente sobre a extensão das águas fosforescentes, enquanto cintilavam
minúsculas estrelas.
—
Se a janela não cedeu e ele não está esmagado — disse Weybridge —, a sua
malfadada situação é ainda pior, porque,
nesse caso, seria por alta de funcionamento da mola do relógio, e ele estaria
agora vivo, a cinco milhas abaixo de nós, acolá, no frio e nas trevas, ancorado
na sua pequena bola de aço, lá, onde nunca entrou um raio de luz, e onde nunca
ser humano algum viveu, desde que as águas se reuniram. Ele lá sem alimento,
sofrendo a tortura da fome e da sede, aterrorizado e imaginando se morrerá de
fome ou sufocado. Qual destas duas mortes será a sua? O aparelho Myers deve
esgotar-se, parece-me. Quanto tempo resistirá ele?
—
Com mil bombas! — exclamou ele. — Que mesquinhas coisas somos! Que ousados
diabretes! No abismo! A ilhas e milhas de líquido... só água e mais nada, por
baixo de nós em volta de nós, e o céu! Voragens!
Dizendo
isto, ergueu os braços, e no mesmo momento uma pequena listra branca apareceu
sem ruído no céu, afrouxou pouco e pouco a marcha, deteve-se, tornou-se um
pequeno ponto imóvel, como se uma nova estrela tivesse tomado lugar no céu.
Pouco depois aquilo principiou a rolar e em breve se perdeu entre o reflexo das
estrelas e a pálida e nebulosa fosforescência do mar.
A
esta vista, ele ficou estupefato, com os braços estendidos e a boca aberta.
Depois, fechou a boca, abriu-a novamente, e agitou os braços em gestos
desordenados. Por fim, voltou-se e gritou: “Elstead, olá!” ao primeiro vigia, e
correu até Lindley, depois até ao foco elétrico.
—
Eu já o vi — clamou — a estibordo, acolá! Tem as lâmpadas acesas. E acaba nesse
momento de sair. Procure desse lado com o refletor. Vamos vê-lo perfeitamente a
flutuar quando tornar a aparecer à superfície.
Mas
não o encontraram antes da aurora. Mesmo então, escaparam de passar por cima
dele. Prepararam o guindaste e, com uma chalupa, agarraram as correntes da
esfera. Depois de voltarem para bordo, desaparafusaram a abertura dela e
exploraram a vista a escuridão interior, pois a câmara do foco elétrico estava
disposta de modo a iluminar a água somente ao redor da esfera e estava interceptada
pela cavidade geral.
A
atmosfera interior estava muito aquecida e a guta-percha que guarnecia a
extremidade da abertura estava mole. As perguntas impacientes ficavam sem
resposta e nenhum rumor se fazia ouvir. Elstead estava desmaiado, dobrado para
diante no fundo do camarim. Aí se introduziu o médico de bordo e tomando-o nos
braços o passou para os que se achado lado de fora. Durante certo tempo, não
lhes foi possível saber se Elstead estava vivo ou morto. Seu rosto reluzia de
suor à luz amarela das lâmpadas. Transportaram-no ao seu camarote de bordo.
Não
estava morto, conforme dentro pouco eles puderam notar, mas sim em um estado de
absoluto abatimento nervoso e, além disso, cruelmente contundido. Foi preciso
deixarem-no ficar deitado e perfeitamente tranquilo durante alguns dias.
Passou-se semana antes que ele pudesse contar as suas impressões.
Logo
às primeiras palavras, declarou que ia repetir a experiência. A esfera
precisava de ser aperfeiçoada, disse, a fim-de lhe permitir desembaraçar-se da
corda, se preciso fosse, e mais nada. Esta fora a aventura mais maravilhosa
possível.
—
Pensavam todos — disse ele — que eu não ia encontrar senão lodo. Zombavam das minhas explorações, pois bem, eu
descobri um novo mundo.
E
contou a sua história por fragmentos, sem continuação, e quase sempre
principiando pelo fim, de modo que é impossível repeti-la textualmente. O que
se segue é, porém, uma exata narração do que com ele se passou.
O
início da sua viagem foi um tormento. Antes da corda se desenrolar de todo, a
esfera não cessou de baloiçar. Ele teve a sensação de ser uma rã encerrada em
um balão sobre o qual batessem desenfreadamente com os pés. Não lhe era
possível distinguir senão o guindaste de bordo e o céu por cima da sua cabeça,
se bem que, de relance, lobrigasse por acaso as pessoas que se achavam na
tolda, sendo-lhe de todo impossível prever para que lado a esfera ia voltar-se.
Erguia um pé para andar e era arremessado em todos os sentidos contra as
almofadas. Qualquer outra forma teria sido mais confortável, mas nenhuma outra
teria podido suportar a enorme pressão do abismo. Subitamente, cessou o
baloiço; a esfera manteve-se em equilíbrio, e, quando ele se levantou, viu em
torno de si o azul esverdeado das ondas, à luz do dia, que, atenuada, filtrava
da superfície para o fundo, e uma multidão de coisas pequenas e flutuantes que
passavam vertiginosamente contra os vidros, as quais, segundo lhe parecia,
subiam em busca da luz. Depois, à proporção que ele olhava, a escuridão ia
aumentando, até que, por cima da sua cabeça, tudo se tornou tão escuro como o
céu da noite, se bem que de uma tonalidade mais sobre o verde, e, por baixo
dele só havia trevas absolutas. De vez em vez, umas coisas pequenas e
transparentes desprendendo irradiações luminosas, faziam, ao longo dos
postigos, leves listras esverdeadas.
E
a sensação de queda! Lembrava a partida súbita de um ascensor, com diferença de
durar mais tempo. Cumpre refletir um pouco para se imaginar o que devia ser.
Foi só então que Elstead se arrependeu de ter tentado aquela aventura. Viu sob
um aspecto completamente novo as probabilidades que se apresentavam contra ele.
Pensou nos enormes peixes de serra que existem nas profundidades médias, nesses
espécimes terríveis que às vezes se encontram meio digeridos no estômago dos
grandes cetáceos, ou flutuando mortos, em estado de decomposição e meio
devorados.
Imaginou
o que seria um deles se agarrasse à esfera e não mais a largasse. E a mola do
relógio? Tinha-a suficientemente experimentado?
Passados
cinquenta minutos, tudo no exterior ficou negro como a noite, exceto o espaço
que o reflexo do seu foco elétrico alumiava e onde apareciam de vez em vez
peixes e fragmentos de objetos que se afundavam. Tudo aquilo desaparecia tão
rapidamente que ele não podia perceber o que fosse. Uma vez, pareceu-lhe ver um
tubarão. Nesse momento, a esfera principiou a aquecer pelo atrito. Passou-lhe
pela mente a ideia de que talvez aquele dado não tivesse sido suficientemente
calculado. A primeira coisa que pode notar foi que estava transpirando;
percebeu depois uma espécie de assobio que partia de sob os seus pés e ia
aumentando de intensidade, e viu em seguida uma grande quantidade de pequenas
bolas, muito pequeninas bolas, que subiam em leque para a superfície. Aquilo
era evaporação!
Ele
apalpou o postigo: o vidro estava escaldante. Imediatamente, ele acendeu a
lâmpada elétrica que alumiava a sua cabine, consultou o relógio embutido na
parede acolchoada, e viu que a sua viagem durava já dois minutos. Ocorreu-lhe
ao espírito que o postigo poderia talvez estalar no conflito das temperaturas,
porquanto não ignorava que a água é glacial nas grandes profundidades. Depois,
repentinamente, pareceu-lhe sentir uma pressão da parede da esfera contra as
palmas dos pés; de fora, o aparecimento de bolhazinhas diminuiu, bem como o
assobio. A esfera baloiçou-se levemente. O postigo não havia estalado, nada
tinha cedido, e estava certo de que, em todo caso, o perigo de um naufrágio
estava passado.
Mais
um minuto e ele repousaria no fundo do abismo. Pensou, então, disse, em
Steevens, em Weybridge, e nos outros que estavam a cinco milhas acima da sua
cabeça, mais altos em relação a ele do que nunca estiveram acima de nós as
nuvens mais elevadas que flutuam no céu; sim, pensou que naquele momento, todos
eles navegavam lentamente, buscavam sondar a profundeza das águas desejosos de
saberem o que lhe podia haver acontecido.
Principiou
a olhar pelo postigo. Não se viam mais bolhas, agora, e o assobio havia
cessado. Fora só havia profundas trevas, de um negror espesso como veludo,
salvo nos pontos em que o jato de luz elétrica penetrava na água e lhe mostrava
a cor: era uma cor parda amarelada. Então, três coisas, como formas de fogo,
nadaram à vista, seguindo-se. Ele não podia distinguir se eram pequenas, ou
enormes e afastadas.
Cada
uma delas se desenhava com relevos azulados, quase tão brilhantes como as luzes
de uma barca de pesca, luzes que parecia produzirem muita fumaça, e tinham de
cada lado manchas da mesma luz, como a das portinholas dos navios. A sua
fosforescência pareceu extinguir-se quando eles passaram no espaço iluminado
pela luz da lâmpada, e ele viu, então, que eram pequenos peixes de uma espécie
desconhecida, com olhos enormes, cujos corpos e caudas terminavam bruscamente.
Tinham os olhos voltados para ele. Supondo-os atraídos pela luz, Elstead pensou
que o seguiam na sua descida.
Dentro
em pouco se lhes reuniram outros do mesmo gênero. À proporção que ia descendo,
ele reparava que a água ia tomando um colorido mais desmaiado e que, como
átomos em uma réstia de sol, pequeninas manchas de luz brilhavam na irradiação
do foco elétrico. Isto era provavelmente causado pela nuvem de lodo e lama que
se levantara do fundo em consequência da queda dos pesos de chumbo.
Durante
todo o tempo que ele foi arrastado para o fundo por esses pesos, teve sempre em
torno de si um nevoeiro branco tão denso, que o projetor elétrico não conseguia
atravessar completamente, senão apenas a uma distância de dois pés. E
passaram-se alguns minutos antes que as camadas de sedimento em suspensão
tornassem a cair ao fundo. Só então, à luz das lâmpadas elétricas, e da
passageira fosforescência de um branco distante de peixes, logrou ele ver, sob
a imensa escuridão das águas superiores, uma superfície ondulante de lodo de um
branco pardacento, interrompida aqui e ali por maciços emaranhados de lírios
marítimos agitando os seus tentáculos esfaimados.
Mais
ao longe, viam-se os graciosos e transparentes contornos de um grupo de
esponjas gigantescas. Sobre esse solo estavam dispersos em grande número tufos
eriçados e lisos de uma bela cor purpurina e preta que ele supôs serem de
alguma espécie de ouriço marítimo, bem como umas pequeninas coisas com olhos
muito grandes ou cegas, apresentando uma curiosa semelhança, umas com os bichos
de conta, outras com as lagostas, rastejavam lentamente na esteira de luz e
tornavam a desaparecer na escuridão, deixando atrás de si sulcos no lodo.
Súbito,
a multidão irrequieta de pequenos peixes mudou de direção e avançou para ele,
como um bando de estorninhos. Passaram por cima dele como uma neve
fosforescente, e ele viu então, atrás deles, um ente de dimensões maiores, que
se dirigia para a esfera.
Primeiramente,
não pode distinguir, senão apenas vagamente, aquele vulto de movimentos
indecisos, sugerindo a ideia de um homem andando; depois, ele entrou na
irradiação que a lâmpada projetava. No momento em que a claridade lhe tocou,
ele fechou os olhos, ofuscado. Elstead contemplou-o com grande espanto.
Era
um animal estranho, uma cabeça, de um vermelho escuro, lembrava vagamente a de
um cameleão, mas a fronte era tão levantada e a caixa craniana tão
desenvolvida, que nenhum réptil jamais apresentou semelhantes particularidades.
O equilíbrio vertical da sua face dava-lhe mais extraordinária semelhança com
um ente humano. Dois olhos grandes e salientes se lhe projetavam das órbitas, à
maneira dos de um cameleão, e de sob as pequenas narinas abria-se uma enorme
boca de lábios córneos como as dos répteis. No lugar das orelhas havia dois
enormes orifícios auditivos, para fora dos quais flutuavam numerosos filamentos
de um vermelho de coral, lembrando os ouvidos das arraias muito novas e dos
tubarões.
O
que, porém, a sua face apresentava de humano não era a particularidade mais
extraordinária que apresentava aquela criatura. Ela era bípede; tinha o corpo
quase esférico, equilibrando-se em uma espécie de tripeça composta de duas
pernas, como as das rãs, e uma longa cauda espessa; os membros superiores, que
imitavam grotescamente os braços humanos, muito à maneira das rãs, eram munidas
de um longo dardo ósseo guarnecido de cobre. A cor daquela criatura era
variegada: a cabeça, as mãos e as pernas eram de cor de púrpura, mas a pele,
que pendia flutuante, em volta do corpo, como se foram vestes, eram de um pardo
fosforescente. Ficou parada ali, ofuscada pela claridade.
Por
fim, aquele desconhecido habitante do abismo entreabriu a custo as pálpebras,
abriu depois de todo os olhos; em seguida, levantando a mão acima deles, abriu
também a boca e articulou, de modo perfeitamente humano, um grito que penetrou
até mesmo o invólucro de aço e o acolchoado interior da esfera. Como um grito
pode ser dado sem pulmão, Elstead não se preocupou em explicá-lo. A criatura
saiu então da claridade, tornou a entrar no mistério tenebroso que o envolvia
de um e outro lado, e, conquanto não a visse, Elstead sentiu que ela se dirigia
para ele. Certo de que a luz é que a estava atraindo, interrompeu a corrente
elétrica. Um momento após, ressoaram contra o aço pancadas surdas, e a esfera
principiou a baloiçar.
Então
se repetiu o grito, e pareceu-lhe que lhe correspondia um eco longínquo.
Continuaram as pancadas surdas e a esfera tornou a baloiçar e ranger contra o
eixo em que estava enrolada a corda. Ele ficou nas trevas, buscando sondar com
a vista a eterna noite do abismo. Daí a pouco, principiou a ver erguerem-se
contra ele, ainda indistintas e longínquas, outras formas fosforescentes e
quase humanas.
Sem saber bem o que fazia,
apalpou as paredes da sua prisão instável para procurar o botão do projetor
elétrico exterior, mas, por inadvertência, carregou no da pequena lâmpada que
alumiava a sua cabine acolchoada. A esfera relou e ele caiu. Nesse instante,
ouviu como que uns gritos de surpresa, e, quando se levantou, viu dois olhos
atentos que o observavam pelo postigo inferior e refletiam a claridade
interior.
No
mesmo momento, viu umas mãos que se agitavam vigorosamente contra o invólucro
de aço e ouviu — impressão aliás suficientemente horrível na situação em que se
achava — pancadas reiteradas sobre o invólucro de metal que protegia a mola do
relógio. Ao ouvir isto, sentiu oprimir-lhe o peito uma angústia horrível;
porque, se aqueles entes estranhos lograssem fazer parar o relógio, a sua
salvação era impossível. Apenas pensou isso, a esfera principiou a baloiçar e
pareceu-lhe que a parede se comprimia pesadamente contra os seus pés.
Então,
apagou a pequena lâmpada interior e restabeleceu a corrente do refletor
exterior. O fundo lodoso e as criaturas quase humanas tinham desaparecido, e
passavam apressadamente por diante do postigo dois peixes, um em seguimento do
outro.
Logo
lhe ocorreu à mente que aqueles estranhos habitantes do mar tivessem cortado a
corda e que a esfera estava agora sem governo. Ela subia cada vez mais rápida,
depois parou bruscamente, fazendo-o ir de encontro à parede acolchoada que
revestia a sua prisão. Durante cerca de meio minuto, impediu-o de refletir.
Então
sentiu que a esfera girava lentamente em torno de si mesma, produzindo uma
espécie de balanço, e pareceu-lhe também que avançava dentro d'água em direção
horizontal. Abaixando-se contra o postigo, ele conseguiu com o seu peso
restabelecer o equilíbrio e tornar a voltar para o fundo aquela parte da
esfera; todavia, nada mais conseguiu ver senão o pálido brilho do seu refletor
espancando inutilmente as trevas. Pensou, portanto, que lhe seria mais fácil
ver sem a luz da lâmpada.
Teve
razão neste ponto; pois, no fim de alguns minutos, as trevas aveludadas se
transformaram em uma espécie de escuridão translúcida, e então, longínquos e
tão pouco perceptíveis como a luz zodiacal de uma noite de verão, viu
moverem-se por baixo dele. Supôs que aquelas criaturas tivessem desamarrado o
cabo e o levavam agora a reboque ao longo do fundo do mar.
Então,
para lá das ondulações da planície submarina, vaga e distante, ele viu um
imenso horizonte de uma luminosidade muito desmaiada que se estendia de um e
outro lado para tão longe quanto a sua janela lhe permitia avistar. Em direção
a esse horizonte era impelido a reboque, tal um balão que conduzem da planície
para a cidade. Aproximava-se dele vagarosamente, e muito lentamente, a vaga
irradiação se ia definindo em lineamentos mais exatos.
Eram
quase cinco horas quando finalmente alcançou aquela área luminosa; e, por esse
mesmo tempo, ele pode distinguir uma espécie de disposição que sugeria a ideia
de ruas e casas agrupadas em torno de um vasto edifício sem teto, que lembrava
grotescamente uma abadia em ruínas. Tudo aquilo se estendia por baixo dele como
um mapa. Tosas as casas eram recintos murados sem tetos, e sendo a sua
substância, como viu mais tarde, formada de osso fosforescente, essa
particularidade proporcionava ao lugar uma aparência de luar vindo do fundo
para cima.
Entre
as cavidades inferiores, vegetais crinoides estendiam os seus tentáculos, e
grandes, esbeltas e frágeis esponjas surgiam como reluzentes minaretes, como
lírios de luz membranosa, emergindo na claridade geral da grande cidade. Nos
espaços abertos, ele podia avistar uma agitação como de bandos de pessoas, mas,
como se achava muito acima, não podia distinguir separadamente as pessoas de
que se compunham aqueles bandos. Então, lentamente, sentiu-se puxado para o
fundo, e, à proporção que se adiantava, os detalhes dos lugares iam aparecendo
mais claramente à sua vista. Reparou que as filas de construções nebulosas eram
contornadas por linhas pontuadas de objetos redondos, e, também, que, em vários
lugares, por baixo dele, em vastos espaços abertos, havia uns vultos
semelhantes a carcaças de navio petrificadas.
Lenta
e ininterruptamente ele descia, e os vultos por baixo dele se iam tornando mais
brilhantes, mais claros e mais distintos. Levavam-no em direção do vasto
edifício que ocupava o centro da cidade, e, de quando em quando, podia perceber
a multidão de formas móveis que puxava pela corda. Ficou admirado de ver que um
dos navios, que formava um dos traços principais do local, estava coberto de
gente que gesticulava, olhando para ele, e depois, que as paredes do edifício
subiam silenciosamente em volta dele e lhe ocultavam a vista da cidade.
As
paredes eram de madeira endurecida pela água, de cabos de ferro entretecidos,
de fragmentos de cobre e de ferro, de ossos e de crânios de náufragos. Os
crânios bordavam as paredes do edifício em ziguezagues, em espirais e em curvas
fantásticas. Nas suas órbitas vazias, e sobre toda a superfície das paredes
brincavam e ocultavam-se uma multidão de pequenos peixes prateados.
Inopinadamente entrou pelos ouvidos de Elstead um zumbido surdo, um rumor
violento como o do som das trombetas, ao qual se seguiram, em breve, clamores
fantásticos. A esfera continuava afundar; passando em frente de imensas janelas
pontiagudas, através das quais ele avistava, ainda que vagamente, um grande
número daquelas criaturas estranhas e fantasmagóricas que o observava. Por fim a
esfera foi assentar, segundo lhe pareceu, sobre uma espécie de altar no centro
do recinto.
Desde
então, ele se achou em um nível que lhe permitia ver distintamente aqueles
estranhos habitantes do abismo. Com grande surpresa sua, ele percebeu que se
prostravam todos diante dele, exceto um, trajando, conforme lhe pareceu, uma
veste de escamas superpostas e coroado de um diadema luminoso, e que se
conservava de pé, abrindo e fechando alternadamente a sua boca de réptil, como
se estivesse dirigindo os cânticos dos adoradores.
Um
curioso impulso fez com que Elstead acendesse a lâmpada interior, de modo que
ele se tornou visível aos habitantes do abismo, e aquela claridade os fez
desaparecerem imediatamente na escuridão. A esta inesperada transformação, os
cânticos foram substituídos por um tumulto de aclamações delirantes, e Elstead,
preferindo observá-los, interrompeu a corrente e desapareceu diante deles. Mas
durante um momento, ficou como cego e não pôde perceber o que eles faziam, e
quando, enfim, os pode distinguir, estavam de novo ajoelhados. E assim
continuaram, ficando a adorá-lo sem descanso nem tréguas durante três horas.
Elstead
fez uma narrativa das mais circunstanciadas, relativamente àquela cidade
admirável e àquelas criaturas que nunca viram, nem Sol, nem Lua, nem estrelas,
nem vegetação verde, nem nenhum vivente do ar, que nada sabem do fogo, e não
conhecem outra luz que não a claridade fosforescente de organismos vivos.
Por
muito interessante que seja a sua história, mais interessante ainda é saber que
homens de ciência, tão eminentes quanto Adams e Jenkins, nada de inacreditável
encontram nela. Disseram-me eles que não viam razão alguma para que criaturas
vertebradas, inteligentes e respirando a água, acostumadas a uma temperatura
muito baixa, a uma pressão enorme e de tão pesada estrutura que, vivas ou
mortas, não podem flutuar, que tais seres não possam viver no seio do mar
profundo, desconhecidos de nós e, como nós, descendentes do grande Teriomorfo,
da Idade da Terra Vermelha.
Todavia,
eles devem conhecer-nos como criaturas estranhas e meteóricas, acostumadas a
rolar, mortas por acidentes, através das misteriosas trevas do seu céu líquido,
e não só nós, pessoalmente, senão também os nossos navios, os nossos metais,
nossos aparelhos que chovem incessantemente na noite deles. De vez em quando,
alguns objetos devem atingi-los, ao caírem, esmagá-los, como pelo julgamento de
alguma potência superior, e outras, devem chegar até eles objetos de uma
raridade e de uma utilidade inapreciáveis, ou de formas sugestivas e
inspiradoras. Até certo ponto, é lícito admitir que a conduta deles à chegada
de um homem vivo fosse a mesma que seria a de um povo bárbaro para com uma
criatura luminosa e aureolada que aparecesse de repente no nosso céu, descendo
para junto de nós.
É
provável que Elstead houvesse uma outra vez completado aos oficiais do
Ptarmigan todos os detalhes da sua estranha permanência de doze horas no
abismo. É certo também que teve tenção de escrever a narração dela, mas nunca
chegou a fazê-lo. E, pois, somos forçados, infelizmente, a coligir os
fragmentos dispersos da sua história de acordo com as reminiscências do
comandante Simmons, de Weybridge, de Steevens, de Lindley e dos outros. Podemos
fazer uma ideia vaga, por meio de imagens fragmentárias, do imenso e lúgubre
edifício, das pessoas cantando ajoelhadas com as suas cabeças de cameleão, e
suas roupas levemente luminosas; parece-nos também ver Elstead, tentando
fazer-lhes compreender que era preciso desamarrar a corda que prendia a esfera.
Os minutos passavam um a um, e Elstead, consultando o relógio, conheceu com
terror que só tinha oxigênio para quatro horas. Mas continuavam os cânticos em
sua honra, cânticos esses que lhe pareceram tão impiedosos como se fossem o
hino fúnebre da sua morte próxima.
Ele
nunca pode compreender o modo por que se salvou, mas, a julgar pela extremidade
da corda que ficara amarrada à esfera, ela devia ter sido cortada em virtude do
atrito constante contra a borda do altar. De repente, a esfera soltou-se e ele
partiu, como de um salto para longe daquele mundo, como uma criatura etérea
envolvida no vácuo atravessaria a nossa atmosfera para voltar ao seu éter
natal. Ele devia ter desaparecido aos olhos daqueles entes como sobe ao ar uma
bolha de hidrogênio. E aquela sua ascensão lhes devia ter parecido assaz
singular.
A
esfera subia com velocidade ainda maior do que à descida, porquanto, então, se
achava mais pesada, em consequência dos pesos de chumbo, e tornou-se
excessivamente quente. Subia com os postigos voltados para cima, e Elstead
lembrava-se da torrente de bolhas que se batiam contra o vidro, esperando ele,
a cada instante, vê-lo fazer-se em pedaços. Repentinamente, qualquer coisa
semelhante a uma roda imensa principiou a girar-lhe dentro da cabeça, o
compartimento acolchoado pôs-se a rodar em torno dele e Elstead perdeu os
sentidos. Depois disso, de nada mais se recorda até o momento em que voltou a
si no camarote de bordo e ouviu a voz do médico.
Tal
é a substância da extraordinária história que Elstead contou por fragmentos aos
oficiais do Ptarmigan. Tencionara ele escrevê-la mais tarde, mas tinha o
espírito preocupado, sobretudo com as reformas a fazer no seu aparelho,
reformas essas que foram efetuadas no Rio.
Resta-nos
simplesmente dizer que, a 2 de fevereiro de 1896, ele realizou a segunda
descida ao abismo do oceano, com os aperfeiçoamentos que lhe tinha sugerido a
sua primeira experiência. Talvez nunca se saiba o que aconteceu. Ele não
regressou. Ptarmigan bordejou em volta do ponto em que ele submergiu,
buscando-a debalde durante treze dias. Depois voltou ao Rio e a notícia foi
transmitida a todos os seus amigos. E o caso termina aqui, por enquanto. É,
porém, muito pouco provável que se faça nova tentativa para verificar essa
esquisita história de cidades, até aqui desconhecidas, existindo no abismo dos
mares.
Fonte: “Fon Fon”/RJ,
edição de 18 de março de 1950.
Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (www.poeteiro.com).
Revisão: Paulo Soriano.
Ilustração: Warwick Goble (1862 – 1943).
vou ler esse!
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