O CAIPORA - Conto Clássico Sobrenatural - Viriato Padilha
O CAIPORA
Viriato Padilha
(1866 – 1924)
Um
dia, perguntei ao velho Dominguinhos por que motivo ele, que quase não saía do
mato, todavia não caçava durante o mês de agosto. A resposta que obtivemos foi
a pequena história que dentro em pouco vamos relatar.
Contudo,
antes de principiarmos essa narração, precisamos fornecer alguns
esclarecimentos sobre o importante personagem que nela vai figurar como
principal ator.
O
velho Dominguinhos era um pardo de setenta anos bem puxados, pequenino, magro,
enfezado mesmo, porém vivo, e o mais hábil e apaixonado caçador que temos
conhecido.
Dominguinhos
caçava desde menino. Durante toda sua juventude e idade madura, batera de
espingarda ao ombro as nossas formosas florestas, e ainda no ultimo quartel da
vida não saía do mato.
A
caça constituiu, por toda a sua longa existência, a exclusiva profissão e o
único vicio que tinha. Com a caça e pela caça considerava-se um mortal feliz, e
na verdade o era.
Ninguém
melhor do que ele arremedava as aves, ninguém como ele farejava um veado ou uma
paca.
Dominguinhos
conhecia perfeitamente todas as matas da vizinhança do lugar em que residia, e
mesmo as dos municípios limítrofes. Era sabedor perfeito dos sítios por onde
passavam varas de caitetus e queixadas, de todas as pastagens dos veados; poços
em que iam refocilar-se as capivaras; das trilhas das pacas, dos muricis, a que
se juntavam os jacus; dos poleiros dos macacos; dos taquarais por onde vagavam
as capivaras; era perito em fabricar mundéus, arapucas, laços de força,
quebra-cabeças, de pegar pelhas; conhecia perfeitamente os usos, costumes e
manhas de todos os animais, desde o lagarto até a onça, desde a rolinha ao
mutum, e sobre eles discorria de modo a fazer pasmar qualquer naturalista.
Além
disso, Dominguinhos era curado de cobra e como possuía antídotos eficazes
contra mordedura de qualquer ofídio, era muito estimado dos fazendeiros em
cujas casas passava todo tempo em que não estava no mato. Eram esse fazendeiros
ainda que abasteciam de pólvora e chumbo, pois Dominguinhos era paupérrimo e
toda a sua fortuna resumia-se na sua excelente espingarda Laport, em duas
cadelinhas já velhas, a Firmeza e a Namorada, e em um cachorro magro e pelancudo,
o Penacho.
A
fisionomia de Dominguinhos denunciava a sua profissão. O seu rosto tinha
feições de bicho do mato; o seu focinho de tatu e os seus olhos espremidos,
porém espertos, e penetrantes, assemelhavam-se ao de uma raposa à espreita da
caça em um cerrado. O seu andar era macio, parecendo a todo momento querer
surpreender inhambós na latada.
No
mais, um bom homem. Nunca se ocupara em fazer nem bem nem mal a pessoa alguma.
As caçadas não lhe davam tempo de pensar no resto da humanidade, a não ser
quando se tratava de mordeduras de cobra, porque, então, entrava em cena com os
seus antídotos.
Dominguinhos
era simplesmente um caçador, mas um caçador às direitas.
Eis
o retrato do singular personagem a quem perguntei um dia por que motivo não
caçava durante o mês de agosto, tendo observado nele tão curiosa anomalia
*
* *
Foi
assim que começou:
“Desde
menino ouvia dizer que o mês de agosto era aziago, por causa do dia 24, que,
como vosmecê sabe, é o de S. Bartolomeu, quando tudo quanto é judeu anda solto
por este mundão de Cristo.
Ouvia
falar a miúdo que no mês de agosto não se devia fazer umas tantas coisas, e
principalmente não era bom gente internar-se na mataria, para não ter algum mau
encontro.
Ouvia
tudo isso; porém, vosmecê sabe que, quando a gente é moço, entra tudo por um
ouvido e sai por outro, até que afinal tantas se leva na cabeça que se toma
caminho, quer queira, quer não, mas à sua custa, e Deus sabe, às vezes com que
sacrifícios.
Assim
eles estavam falando pra aí que não era bom caçar no mês de agosto e eu todo o
dia no mato, até que de uma vez me estrepei deveras para nunca mais.
Já
lhe conto como foi.
Foi
em uma véspera de S. Bartolomeu. Antes que a manhã rompesse, pus ao ombro a
espingarda, uma Laport trouxada, de confiança; enfiei o embornal da munição;
afivelei à cintura o facão; em outro embornal meti um pedaço de carne de vento
e farinha; e, com Deus, Nossa Senhora e os Anjos da Corte do Céu penetrei na
floresta.
Queria
ver de perto naquela madrugada um macuco que sabia estar empoleirado num
jaracatiá que havia bem no cocuruto da serra. O diabo do bicho andava a
fazer-me fosquinhas havia um par de dias; eu piava, ele respondia; tornava a
piar e ele vinha chegando, mas... quando já estava à distância do tiro, não sei
como o endemoninhado me avistava, e antes que tivesse tempo de levar a
espingarda à cara, lá ia ele, tic, tic, tic pela folharada seca em fora, que
ninguém mais o pegava.
Ninguém
ignora que o macuco é um bicho muito ladino; quem não souber ou não tiver paciência
não o tira do mato, mas Deus está aí mesmo.
Eu,
porém, nunca permiti que bicho algum tivesse mais astúcia do que eu e aquele
macuco estava jurado.
Persegui-o
durante alguns dias, até que, afinal, numa tardinha, percebi que se empoleirava
num pé de jaracatiá e assentei de dar cabo dele no outro dia de manhã. Podia
ficar no mato aquela noite para fazer-lhe tocaia, mas não tinha trazido
mantimento, estava com fome e assim foi-me preciso vir dormir em casa.
Quando
entrei, ainda estava escuro. De uma ramalhada, levantava-se um bando de jacus,
de outra corria uma cotia, mas o meu primeiro tiro estava guardado para o
ladrão do macuco que me havia feito aguentar durante tantas horas as mordidelas
de pernilongos.
Podia
aparecer qualquer caça, que dela eu nada queria. Enquanto não atirasse ao chão
o macuco do jaracatiá, e o não esganasse na minha fieira, o meu tormento não
cessaria.
Fui
subindo, impassível sempre, indiferente de todo à grande quantidade de caça que
se me ia deparando pelo caminho. Quando o dia vinha rompendo, já estava no
cocuruto da serra, bem debaixo do jaracatiá.
Olhei
para a arvore: o macuco estava ali mesmo, de peito aberto para mim.
Vosmecê
nunca foi amigo de caçadas? Não pode, por conseguinte, fazer ideia da alegria
que se apossa de um homem que tem esse vício, quando estica o cano da Laport
para boa caça: um macuco, um veado, uma paca, uma anta etc. Qual! Até a
respiração da gente escapole do peito sem querer!
Fiz
pontaria, bem certa: queria ver o bicho dar um tombo redondo. O macuco já
estava reservado; seria um presente para o Dr. Chiquinho, moço muito meu
camarada e amante da caça.
Ah!
Meu senhor! Preferia antes ter perdido um olho ou o braço direito do que errar
aquele macuco! Fiquei danado da minha vida. Não pude conter-me e exclamei:
—
Vai-te, desgraçado, dou-te de presente ao Diabo!
A
minha vontade era partir o cano da espingarda de encontro ao jaracatiá. Não o
fiz, todavia... Como?!... Uma espingarda que já havia matado onça! Não! Isso,
nunca!
Resolvi
voltar para casa, mas Deus, Nossa Senhora e os Anjos da Corte do Céu é que
sabiam como eu estava! Errar um macuco na bucha, e depois de uma trabalheira daquelas?!
Era para um homem nunca mais dar um tiro em toda sua vida.
Na
descida, novamente esbarrava com toda espécie de aves e de animais de caça. E
conservei-me ainda indiferente, mas desta vez raivoso, desesperado, pois que
caçador que erra macuco ou veado não deve dar mais um tiro durante sete
semanas. É uma vergonha!
Nisso,
ouço uma grande roncaria. Devia de ser uma vara de porcos que se aproximava.
—
Não — disse comigo mesmo —, porco do mato não passa de rabo em pé, perto de
mim. Isso mais devagar!
Carreguei
às pressas a espingarda, e trepei a um tronco que se achava perto.
Você
deve saber que o porco do mato, logo que se esteja levantado do chão uns cinco
palmos, nenhum mal faz. porque não levanta os olhos e só morde para os lados.
O
tronco em que trepei era uma cepa de óleo-vermelho, que haviam derrubado para dele
se fazerem eixos de carro.
A
porcada cada vez roncava mais perto. Ah! Excomungados! Iam-me pagar o tiro
errado do macuco.
Pouco
depois, vi de fato a porcada surgir lá embaixo na grota. Eram inúmeros os
porcos. Escolhi um, que vinha de cachaço levantado e a estalar os dentes. Aquele
era meu, com certeza. Quando, porém, já ia puxar pelo gatilho, vi uma coisa,
que, ainda quando me lembro se me arrepiam as carnes. Que dia de S. Bartolomeu
mais arrenegado!
No
fim da manada e montado no cachaço de um dos maiores porcos, vinha o Coisa Ruim!....
Nem era bicho, nem era gente!...
Parecia-se,
em verdade, com um homem, mas tinha o corpo todo peludo e era de rosto fechado.
Mas, o que é ainda mais para admirar, o Maldito trazia a tiracolo o macuco que
eu havia errado.
Lembrei-me,
então, de tudo. Pois eu não havia dado aquele macuco ao Diabo?
O
Diabo havia-o caçado.
Os
porcos passaram todos, e não tive coragem de atirar neles.
O
Coisa Ruim passou também, rente por mim. De vez em quando soltava um grito esquisito,
para tocar a vara de porcos, e dentro em pouco tudo desapareceu — os porcos e o
Demônio!
Tratei
de bater para minha casa... Quem disse, porém, que podia sair do mato?!...Qual!
Aquilo parecia até coisa mandada!
Um
mato em que eu andava todo dia, e a qualquer hora, mesmo da noite! Pois, meu
senhor, perdi-me: o caminho era ali mesmo, e eu ia andando. Mas, daí a pouco,
esbarrava numa moita de corumbaba por onde nem um rato passaria. Seguia por
outro lado: também havia caminho por ali. Mas, daí a bocado, via em frente uma
tapada de brejaúba, com cada espinho que só uma cobra por ali poderia penetrar.
Bato
para aqui; bato para li... Qual! Nada! Não saía do mesmo lugar! Não havia que
duvidar, estava perdido!...
Assim
passei todo dia, e já a noite se avizinhava sem que eu pudesse compreender como
fora que me sucedera aquilo, num mato em que era tão vagueano, quando, então,
me lembrei do que havia contado um caboclo velho. Ah! Agora compreendia por que
me tinha perdido!
O
Demônio, que tinha visto passear montado no porco, era o Caipora, e era quem
não me deixava acertar com o caminho. Contudo, havia um meio de me ver livre daquela
peste, segundo me ensinara o caboclo. Era dar-lhe fumo. Cortei logo uma porção
do que tinha para o meu gasto, e sacudi-o numa touceira de taquara, dizendo:
—
Toma, Caipora, deixa-me ir embora...
No
mesmo instante o Coisa Ruim, que passara montado no porco, saltou diante de mim
e, fazendo caretas, embrenhou-se por entre as taquaras, apanhou o pedaço de
fumo, e pôs-se no mundo.
Imediatamente
acertei o caminho, e duas horas depois achava-me em casa. De então por diante
jurei nunca mais caçar durante o mês de agosto. Não que naquele dia suei
frio!...
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