O FANTASMAGÓRICO SENHOR MATHIAS - Conto Clássico de Horror - Jules Lermina
O FANTASMAGÓRICO
SENHOR MATHIAS
Jules Lermina
(1839 – 1915)
Tradução de autor desconhecido do séc.
XIX
Quando
constou a morte do Sr. Mathias, houve na pequena cidade de Lyre-sobre-Ys uma
surpresa geral. Era um homem de quarenta e cinco anos apenas, robusto, direito
como um fuso, e que — ora, vejam que pena! — casara-se, há apenas três anos,
com uma menina de vinte anos, nem mais nem menos do que a sobrinha do coletor
de impostos, uma mulher encantadora e a quem amava loucamente!
Naturalmente,
o Sr. Mathias, depois de morto, era citado, agora, como possuidor de todas as
virtudes, quando vivo. Era o que faltava que lhe chamassem, como outrora,
usurário e avarento! Quem pensava em
reeditar certa história relativa àquele famoso casamento e que tão pouco
favorável lhe era, quem iria recordar mesmo o terror vago que inspirava este
homem, de modos velhacos, rico e avarento, e que gastava, segundo se dizia, os
seus momentos de ócio em manipular uma série de drogas venenosas que experimentava
em cães?
Tratava-se
mesmo agora disto. Morrera, paz à sua
alma!
E,
afinal de contas, refletindo um pouquinho mais, era esta morte tão
extraordinária como se dizia? Evidentemente, o Sr. Mathias tinha
pressentimentos. Não tinha ele mandado construir ultimamente, por operários
vindos direta e expressamente de Paris, o jazigo de família que esperava, no
cemitério, os seus restos mortais? Ainda
mais, havia algum tempo que se lhe notava no rosto uma inquietação singular.
Vagueava em roda da sua própria casa, como se receasse ladrões misteriosos.
Sequestrava sua mulher, encerrava-se durante semanas inteiras no laboratório,
donde saía pela chaminé um fumo continuo até altas horas da noite.
—
Prenúncios dum ataque cerebral — dizia com ares de entendido o Dr. Labarre, que
afinal decidira por apoplexia serosa.
Em
suma, tinha-se feito ao Sr. Mathias umas exéquias magníficas. A terça parte da
povoação acompanhara-o à sua última morada, e alguns olhos se tinham umedecido,
quando descera pela cripta da capela funerária o caixão de carvalho, verdadeiro
monumento, onde dois homens como ele estariam à vontade.
Voltando
do cemitério, todos perguntavam o que faria a viúva do Sr. Mathias.
*
Ora,
agora, a verdade é que o Sr. Mathias não morrera. Duas horas depois da
cerimônia, poder-se-ia vê-lo no subsolo em que o caixão estava.
Dois
pequenos ruídos secos tinham soado, como o estalido de uma mola; e, depois de o
caixão se ter aberto como se fosse um armário, o Sr. Mathias sentara-se,
espreguiçando-se como um homem que acaba de acordar. Por uma abertura gradeada,
feita na parede superior, caía um raio de luz.
O
sr. Mathias levantara-se completamente, esfregando devagar os joelhos um pouco
anquilosados.
A
verdade é que se sentia bem, mesmo muito bem, confortavelmente. A dose de
narcótico que absorvera, depois de ter cuidadosamente calculado, tinha
produzido á justa o efeito desejado. Tinham-no julgado morto, tinham-no
enterrado, ia tudo esplendidamente.
O
Sr. Mathias tomara muito antecipadamente todas as precauções. O fundo da
sepultura fora habilmente disposto. Estava ali mentido toda a roupa necessária,
bastante comida, algumas garrafas de bom vinho, que se tinham tornado muito
fresquinhas, como facilmente se supõe. E como não há nada que mais avive a fome
do que ura enterro — o Sr. Mathias, comodamente sentado no seu caixão, abriu
uma garrafa, e bebeu ao seu futuro.
Já
há mais tempo devíamos ter dito por que é que o Sr. Matihias estava ali, seis
pés debaixo da terra, por sua própria vontade.
Como
sempre, era uma história de mulher. Casto até aos quarenta anos, o Sr. Mathias,
antigo farmacêutico, enriquecido pelas pílulas antiespasmódicas, tinha se
apaixonado pela encantadora Anna Plédefer, sobrinha do recebedor de
Lyre-sobre-Ys. Apresentara-se muito sem-cerimônia para marido à jovem que, com
sem-cerimônia não inferior, o recusara, o que o tornara apaixonado como um
imbecil... Perdão, como um homem de quarenta anos a quem deu na cabeça
apaixonar-se.
Pouco
honesto de natureza, apertara o recebedor em tramas tão hábeis que o
desgraçado, ao fim de um ano, sabendo que o cofre governamental já não estava
intacto, pensou seriamente no suicídio.
Então
o Sr. Mathias apareceu como salvador e apresentou as suas insignificantes
condições.
A
sobrinha sacrificou-se pelo tio que lhe servira de pai, e isto apesar de laços
muito apertados com um escrevente de tabelião da cidade vizinha. Vítima
dolorosa, Anna desposou o Sr. Mathias.
Sofrena
até ao fim todas as consequências desta catástrofe. Mas o sr. Mathias, fazendo
justiça a si próprio, tinha a convicção de que ela o odiava. Daqui a julgar-se
enganado como merecia não foi mais do que um passo. A suspeita degenerou-se-lhe
em monomania. Sua mulher não saía nunca, ninguém a visitava. Mas, ainda assim,
o Sr. Mathias dizia que era falta de táctica para a apanhar. Se não apanhasse
sua mulher em flagrante delito, é porque era um idiota culpado.
Então
surgira esta ideia luminosa no seu cérebro: fingir uma viagem, mas não a
Versailles ou ao Havre, como os maridos de comédia, uma viagem muito mais longa
e donde parecesse impossível a volta.
E
voltaria, mais vivo que nunca, uma destas noites, e havia de confundir a
infiel.
Esperaria
três dias; pensava agora em tudo isto, satisfeito, deitando-se confortavelmente
no caixão.
*
O
terceiro dia findara. O Sr. Mathias ardia em impaciência. Esperou que o relógio
do cemitério desse onze horas.
O
plano estava bem combinado. Os muros do cemitério davam para a sua propriedade.
Tinha ali com que se vestir todo de preto, como convinha a um espectro de
farmacêutico. Envolver-se-ia no sudário no cemitério, respeitando a cor local.
Depois de ter saltado o muro, iria direto ao quarto do sua mulher. Depois,
veria!
O
Sr. Mathias fez a sua toalete; em seguida, como já tudo estava disposto ad hoc,
empurrou a pedra tumular, trepou para a capela superior abriu a porta e
achou-se fora, com o sudário debaixo do braço.
Apenas
se viu cá fora do túmulo, desdobrou o vasto lençol branco e pegou-lhe de forma
a pô-lo nos ombros. Mas o sudário era pesado. A primeira tentativa falhou e
teve que recomeçar.
—Espere
aí! — disse então uma voz atrás dele. — Eu lá o vou ajudar.
*
É
necessário não se ter estado nunca à meia-noite, tentando pôr aos ombros um
sudário, no cemitério, para se não compreender quanto esta surpresa seria
desagradável ao sr. Mathias.
O
que assim falava era o guardado cemitério do lugar, o tio Grimbot, um original
muito conhecido nas tabernas dos arredores. Aproximara-se do Sr. Mathias, e,
olhando para ele, dissera:
—O
quê! É o senhor, Sr. Matias?... Então já!
O
Sr. Mathias. muito atrapalhado, tentava embrulhar-se, julgando que uma aparição
sinistra o livraria deste encontro importuno. Mas, qual história! O Grimbot
ajudava-o benevolamente e punha-lhe a mortalha com elegância.
—Saio
do meu túmulo... — principiou o sr. Mathias com uma voz sepulcral.
—Bem
sei — interrompeu Grimbot. — Isso vejo
eu. Teve muito mais pressa do que os outros...
O
sr. Mathias não ouviu nada. Agora caminhava a passos largos, nas pontas dos
pés, como um fantasma.
Grimbot
ia ao lado, continuando:
—Sim,
os outros, não lhes dá para aí tão depressa. Só no fim de um ou dois meses...
O Sr. Mathias voltou-se bruscamente, agitando os braços:
—Vai-te,
sacrílego! Vai-te!
—Então, então! — disse Grimbot, tomando uns
modos paternais. — Eu não lhe faço mal. Então quis também passear um
bocado...como os colegas, não é assim?
O
Sr. Mathias, muito perturbado, ia andando sempre, sem se dignar a responder.
Via na sombra a porta do cemitério. Como homem previdente que era, tinha alguns
luíses na algibeira.
—Nada
de conversas! — disse ele, mostrando
duas moedas de ouro a Grimbot. — A
chave!
Grimbot
recuou um passo:
—A
chave! Tu queres sair? — Ia-se familiarizando. — Ora, que fantasia! Meu
amiguinho, tem paciência! Mas... nada d'isso...
—
Quatro luíses! — gemeu o Sr. Mathias.
—Mau!
Já tu disse — continuou Grimbot. —Não continues, que eu te chego. Podes sair do
jazigo, podes passear. Não me opondo. Os outros também saem...
—Os
outros! Quais outros!
Grimbot
fez um gesto largo:
—Os mortos!
Então, quem há de ser?
—Os
mortos... Quem é que te falia em mortos? Eu estou vivo, bem vivo!
—
Ai! Que chalaça! Essa agora é forte! Mas
deixá-lo... Eu sou bom homem... Anda cá beber uma pinga.
Deixou
cair a mão como um tenaz sobre o pulso do sr. Mathias, arrastando-o até ao
cubículo onde morava. Empurrou-o para um quarto do rés do chão.
O
Sr. Mathias estava literalmente aturdido. Grimbot fechara a porta, tirara duma
prateleira uma garrafa, e, depois de ter enchido dois copos, levantara o seu,
dizendo:
—Cá
vai a tua, Sr. Mathias.
*
—Ouve
agora, meu rapaz — disse o sr. Mathias. —Tu queres desfrutar-me. Seja. Apenas,
há tempo para tudo. Por razões pessoais, deixei-me enterrar. Mas preciso sair
por negócios graves. Pagar-te-ei bem, podes estar sossegado...
Enquanto
ele falava, Grimbot dera devagar volta à mesa e fora-se encostar à porta.
—Tu
faltas bem —chasqueou ele. Ah, com que então está vivo! Não és o primeiro que
me diz isto. Tenho ouvido muitos assim. Mas vê tu, gosto dos meus subordinados.
Todas as noites, vêm por aí um ou dois beber uma pinga, sem cerimônia. Ontem,
foi o tabelião; conheces, não é assim? Madel, o teu vizinho... aquele que tem a
coluna partida. Antes de ontem, a Sra. Claudin, uma boa mulher! Eu estou sempre
de boa feição, deixo-os tomar o ar da noite, cavaqueio um bocado... Mas
deixá-los sair! Isso é o que faltava!
O
sr. Mathias começava a sentir-se desvairado. Grimbot falava com um perfeito
sangue-frio, como funcionário responsável.
Era
de estatura mediana, atarracado, com mãos de gorila. Os olhos eram negros,
brilhantes... O Sr. Mathias sentiu um calafrio. Aquele homem estava doido!
Sim,
não havia dúvida. Tinha visões. Julgava o seu cemitério povoado por almas do
outro mundo: vivia num mundo fantástico, criado pela sua imaginação de bêbado.
E confundia! Mas, palavra de honra que confundia!
O
Sr. Mathias começou a falar, a prometer, a suplicar. Pois quê! O bom, o
inteligente Grimbot podia lá tomá-lo por um morto a valer! Desatou a rir...
—Basta!
—disse Grimbot para terminar, com a voz sacudida. Não tens juízo. Toca a ir
para casa!
—
Para casa! Onde?
—Para
a tua casa, pois; para onde haveria de ser? No ângulo da terceira divisão.
—Para
o túmulo, nunca!
—
Não queres? Ah, sim!
O
sr. Mathias viu tremerem as mãos enormes. Teve medo, olhou era torno de si,
procurando uma saída. Uma só.
À
porta e diante, Grimbot, especado. Tanto pior! Tinha que sair, desse lá por
onde desse. Atirou se para a frente, gritando...
Grimbot,
tranquilamente, estendera a mão aberta em que se foi meter o pescoço do seu
agressor. O sr. Mathias deu um arranco e tentou lutar.
A
garra apertou com mais força. O sr. Mathias vergou, suspenso pelo braço
estendido. Ainda se agitou um pouco no último estertor, depois ficou imóvel.
Grimbot, sem para ele olhar, atirou-o para cima do ombro e levou-o, com o seu
andar digno e vagaroso de guarda fiel, até o jazigo. Atirou-o para a cripta e
fez cair a pedra com um ponta pé. Depois, fechou a grade e continuou o seu
passeio através dos túmulos, resmungando:
—Então,
já viram! Sair? Ora esta! Este é o meu lugar.
*
Foi
assim que a viúva do Dr. Mathias pode casar-se com aquele que ela sempre amara.
Fonte: “Pacotilha”/MA,
edição de 13 de novembro de 1887.
Fizeram-se brevíssimas
adaptações textuais.
Ouça este conto na locução e interpretação de André Egydio de Carvalho:
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