ROBERT TREZE - Conto Clássico de Horror - Aurélien Scholl


 

ROBERT TREZE

Aurélien Scholl

(1833 – 1902)

Tradução de autor desconhecido do séc. XIX

 

Il y a des gens qui n'ont pas de chance[1].

Gazette des Tribunaux.

 

Em fins de setembro de 1850, algumas pessoas que tomavam banhos em Royan descobriram, da praia de Fancillon, um vapor que se encaminhava para a foz do Gironda.

Na altura da torre de Cardouan, uma vaga ergueu a elegante quilha e o vapor, tornando a mergulhar com graça, entrou, depois dessa reverência, com toda a sua velocidade, nas águas do grande rio.

A torre de Cardouan é como a gorra de Gessler, não se lhe passa por junto sem a saudar...

O vapor trazia bandeira americana e passou tão perto da praia que os passeantes puderam ler-lhe na popa o nome e o país:

The Fatality

Nova York

 

Na coberta do navio, passeavam personagens: o capitão, o comissário e muitos passageiros que, cheios de curiosidade, com óculos examinavam a terra.

A Fatalidade, de oitocentas toneladas, era consignada à casa Wellingham e Cia. no cais Chartrons nº 134 e conduzia treze passageiros de Nova York a Bordéus.

Havia sofrido horríveis temporais. Três homens da equipagem tinham morrido; mas, depois de longa e penosa viagem, pudera, por fim, chegar ao seu destino.

Entre os passageiros notava-se um jovem inscrito com o nome de Jones Robert Thirteen[2].

De estatura mediana, magro, nervoso, pálido, mas de palidez sinistra, Robert, bem que contasse apenas vinte e cinco anos, parecia ter trinta.

Tinha a testa larga e cheia de rugas prematuras, olhar terno e triste; e, bem ao contrário dos santos que ornam as Horas Romanas de Limoges, e cujas cabeças irradiam belas chamas de cor de ouro, poderia descobrir-se, ao redor da anuveada cabeça desse jovem, como que uma sombria auréola de melancolia.

Robert Thirteen possuía uma grande fortuna, mas, perseguido na América por uma série do dolorosos acontecimentos, esperava iludir a sorte vindo fixar-se na França.

Ao entrar no ancoradouro, o vapor, virando de bordo com muita rapidez, apesar dos esforços do piloto, meteu a pique uma embarcação que conduzia muita gente.

A maior parte salvou-se; mas a corrente, mui rápida nesse lugar, arrastou consigo duas mulheres e um menino, cujos cadáveres foram encontrados alguns dias depois.

Saltando em terra, Robert foi para o hotel das Duas Américas, onde, poucos meses depois declarou-se o primeiro caso do terrível cólera, que dizimou a cidade.

Robert apenas aceitara dos negociantes do Nova York, com quem havia sempre vivido nas melhores relações de intimidade, uma só carta de recomendação. Conhecia perfeitamente a língua francesa e preferia a solidão a uma sociedade de indiferentes e falsos amigos.

Essa carta era dirigida a Mr. Wellingham, o consignatário do vapor The Fatality.

Depois de ter percorrido a cidade em todos os sentidos ou, antes, nos seus dois ou três sentidos, Robert encaminhou-se para a casa Wellingham e Cia.

Empregara todo o cuidado passível no seu traje e, pela primeira vez animado da esperança de uma existência mais feliz, tinha quase o sorriso nos lábios. Introduziram-no no gabinete de Mr. Wellingham, que o recebeu com toda a polidez, e o convidou para jantar nesse mesmo dia consigo, atentas as expressões empregadas pelo correspondente de Nova York.

 

II

 

Mr. Wellingham era um homem de cinquenta anos, alto, e magro em extremo.

Alguns cabelos brancos rodeavam-lhe apenas a cabeça calva e lisa.

Bem que o estado de seus negócios fosse o melhor possível, havia em toda a sua pessoa um não sei quê de calamitoso e lúgubre.

Nunca encontraste esses homens de pedra, de tez plúmbea, andar lento e gelado, a quem bem se pode chamar homens d'além túmulo?

Esses homens, ficai certos, têm sofrido muito.

O selo que lhes fecha o coração encerra algum mistério doloroso que rói como um câncer. Seus olhos fixos, e sem expressão olhando, nada vêm. São trapistas sem hábito. Uns têm em si alguma coisa de repulsivo. O primeiro sentimento que se experimenta ao vê-los é o temor. A outros — pelo contrário — alteram pela profundeza da dor que disfarçam. Percebe-se que vivem esmagados sob o peso de algum terrível acontecimento...

Depois que Robert passou alguns instantes com Mr. Wellingham, viva simpatia e profundo interesse penetraram em seu coração; e quando ele apresentou-lhe a mão, Robert teve os maiores desejos de abraçá-lo.

— Vem, senhor — disse Mr. Wellinghan —, quero apresentar-te à minha filha. Jouliette é uma encantadora menina, que, estou certo, haverás de amar.

— Oh, não! Temo causar-lhe algum mal...

— Como assim?

— Nada tenho que esmerar da sorte, senhor; quase que só se pode dizer que ela se regozija em me atormentar...

 — Pois és também do número desses homens que dizem que a fortuna não dá felicidade.

— A minha fortuna mesmo parece ter-me sido dada para me causar mais embaraços e desgostos. Nota isto. Até o paquete que partia no dia em que desejei embarcar-me para França chamava-se A Fatalidade, e a viagem foi das mais terríveis.

— São observações de um espirito preocupado — disse Mr. Wellingham. — Estou convencido que um nada, uma dessas circunstâncias que o acaso traz no momento menos esperado, será bastante para te dar a felicidade que julgas para sempre perdida.

— Desejo-o muito, mas tenho perdido as esperanças.

— Pois bem, meu caro senhor, pelo que diz respeito à minha filha, acontece inteiramente o contrário. Conquanto, ao nascer, tenha tido a desgraça de perder sua mãe, ela goza de uma felicidade prodigiosa. Nunca derramou lima lágrima. Inalterável alegria forma o fundo do seu caráter. Nunca conheceu os sofrimentos da infância ou da juventude. Canta desde manhã até anoitecer. Se desejar hoje bom tempo, pode contar-se que há de aparecer amanhã o Sol. Se o calor a incomoda, não tardará que chova. Todas as vezes que tem comprado bilhetes de loteria, tem ganho; em uma palavra, tudo lhe sai às mil maravilhas.

Entraram na sala de visitas, onde Jouliette não tardou a se apresentar. Logo que Robert a viu, entendeu para si que havia de amá-la com todas as forças de sua alma.

Jouliette era alva e cheia como o desabrochar de um riso; e o louro de seus cabelos eram da cor desse louro que apresentaria a Lua, se em alguma noite cobrisse com um véu de gaze a sua face brilhante.

E esses cabelos finos e sedosos brincavam ao redor de seu risonho semblante como um nevoeiro dourado.

As sobrancelhas puras, bastas e bem arqueadas, os olhos de um azul pronunciado e radiante, o nariz alvo e de um contorno admirável, os lábios bem rubros, o colo e as espáduas que convidavam os beijos como as flores convidam as borboletas; toda essa natureza admirável desafiava pela perfeição e pela cor o pincel e a palheta.

Sentaram-se à mesa.

Apenas Robert sentou-se, o espelho da sala rachou-se de alto a baixo.

— Que felicidade! — exclamou Jouliette. — Eu não sabia de que modo pediria a substituição deste espelho ruim! Vou acabá-lo.

E por mais que lhe batesse com o cabo de uma faca, nunca pôde sequer arranhar-lhe o vidro.

Depois do jantar, Mr. Wellingham propôs ao seu hóspede uma partida de scherby.

Robert aceitou.

Mr. Wellingham baralhou e deu as certas.

— Tenho dezessete pontos — disse ele.

— E eu treze — disse Robert, sem ver o jogo.

— Como podes saber?

— Com efeito, treze; eu os marco.

Mr. Wellingaham ganhou duas vezes.

 

III

 

Estando para acabar a partida, um criado anunciou o Sr. conde Baltasar de Gustamente.

Robert sentiu um calafrio vendo entrar esse figurão trigueiro, alto, benfeito, que fez três cortesias com a mais perfeita etiqueta.

O conde Baltasar era um brasileiro rico que ia muitas vezes à casa de Wellingham.  Ele estava completamente apaixonado por Jouliette e não o ocultava.

Esta parecia receber com maior frieza a corte do conde, cuja paciência era inabalável.

— Então, mademoiselle — disse ele a Jouliette —, que boas-novas tens a dar-nos?

— Em primeiro lugar —respondeu ela com malícia —, a chegada do Sr. Robert Thirteen.

O conde franziu os sobrolhos.

— E que mais? — perguntou ainda.

— Depois.... fica morando em nossa casa o Sr. Robert Thirteen, que terás o prazer de encontrar aqui muitas vezes.

— O Sr. conde talvez não goste disso — interrompeu Robert.

— O conde é amigo de todos que recebo, disse Wellingham.

— Sou amigo de todos, é verdade; mas não tenho também o direito de o não ser?

— Deve-se viver bem com todos — disse Jouliette, dando certa inflexão às suas palavras.

— Ah! Desejo muito viver bem com todos! Mas se, porventura, ficar mal com alguém, será minha a culpa ou desse alguém?

— Conde, isso é uma sutileza. A culpa será sempre tua.

— Pois bem, aceito a sentença para te ser agradável.

Robert e Gustamante encontraram-se muitas vezes, com efeito, em casa do negociante e os dois rivais faziam um ao outro uma guerra surda, guerra de palavras e de olhares, em que Robert, sustentado por Jouliette, quase sempre vencia.

Enquanto Wellingham se ocupava com seus negócios, Robert ia algumas vezes passar o dia com Jouliette.

A sorte parecia ter abrandado. O americano não experimentava mais essas pequenas desgraças, cuja continuidade o desesperava, e estava convencido que devia à feliz influência de Jouliette essas tréguas das hostilidades da fortuna.

Gustamante, perdendo as esperanças de obter o consentimento de Jouliette, e desejando acabar com a falsa posição em que se achava, pediu a Mr. Wellingham uma entrevista particular, em que expôs a imensidade de sua fortuna, fez retumbar seu título tão alto quanto pôde e suplicou ao negociante que o ajudasse a abrandar o coração de sua filha.

Jouliette respondeu a seu pai que os brasileiros eram todos antropófagos e que, além disso, chamando-se esse homem Baltasar, nunca ela se atreveria a pôr-se a mesa com ele.

Mr. Wellingham tratou de desenganar a Gustamente com toda a civilidade que pôde.  Este, furioso por essa derrota e ferido em sua paixão, deixou logo a cidade, com grande satisfação de seu rival.

— Podes conceber — dizia Jouliette a Robert — que esse miserável ousou pedir a meu pai que influísse sobre mim em seu favor? Se em algum tempo alguém me amar, quero ser a primeira a sabê-lo; é a mim que só devem dirigir, a mim só...

Robert, que tinha até então resistido a todas as esperanças que lhe dava Jouliette, não pôde por mais tempo conter o que encerrava eu seu coração.

 — Pois bem, é a ti mesma que me dirijo — disse ele com voz comovida a Jouliette, que ficou por instantes abalada pela audácia que tinha mostrado.  — Não tenho precisão de dizer-te que te amo, tu o tens compreendido; tu o sabes; as minhas palavras seriam insuficientes a exprimir o que este amor tem de imenso e insondável. Mas, primeiro que tudo, devo patentear-te qual foi o meu nascimento e que vida tenho levado até o presente; e, talvez, que depois de me ouvires, fugirás de mim, como de um homem amaldiçoado e condenado desde o berço.

“Em uma noite do mês de março de 1824, uma mulher embuçada em uma capa escura, que lhe ocultava parte do rosto, foi bater à porta da casa William D. Thompson, em Nova York. Um criado abriu-a e a desconhecida entregou-lhe um cesto oblongo e bastante pesado, dizendo-lhe que o entregasse imediatamente a Mr. Thompson.

“—Depois, desapareceu.

“Mr. William D. Thompson achou no cesto um menino e uma carta. ‘Eu sou — dizia a mãe — a décima terceira filha de uma pobre família de negociantes e o número treze sempre me tem acarretado desgraças. Nenhuma importância merece, no decurso da minha vida, as pancadas e maltratos a que sempre estive exposta na casa de meu pai. Minhas irmãs mais velhas tiranizavam-me e eu podia contar com pagar sempre qualquer falta que elas cometessem. Diziam, por fim, que seu seria motivo de desgraça para todas e, por isso, expulsaram-me de casa.

“’Desde o meu nascimento, o limitado comércio que dava com que viver à minha pobre família havia-se tornado repentinamente insuficiente. Perdas sucessivas haviam aniquilado a pequena fortuna de meu pai e a mais horrível miséria reinava entre nós.

“’Não sei se, depois que me puseram na rua, apareceu mais alguma abundância e felicidade nessa inóspita habitação; pelo que me diz respeito, precipitei-me de desastres em desastres...

“Se a sorte parecia sorrir-me um momento, era para me fazer recair mais cruelmente...

“’Este menino chama-se Robert e nasceu sexta-feira, 13 de fevereiro. Tu, que és bom e generoso, tem piedade dele. Sua miserável mãe pede aos céus que aceitem sua vida em holocausto e que o protejam’.

“A carta estava assinada com as iniciais S. H.

“Mr. William D. Thompson, rico banqueiro que, havia pouco, se retirara dos negócios, passava por homem benfazejo, e não era casado, nem tinha filhos. Foi essa, sem dúvida, a razão que induziu minha pobre mãe a confiar-lhe seu filho.

“O menino foi criado com o nome de Robert Thirteen, isto é, Robert Treze. E esse menino tornou-se, depois, o homem que ousa amar-te! Minha educação foi desvelada e Mr. Tompson habituou-se a considerar-me como seu filho. E, quando morreu, esse bom velho, há perto de três anos, deixou-me toda a sua fortuna, para mais desafiar contra mim as ameaças do destino.

“Com efeito, essa fortuna tem sido um fardo pesado, que me faz sentir ainda mais cruelmente toda a extensão da minha desgraça. Essa influência maldita, que me acompanha por toda a parte por onde ando, reduz-me a vida a um verdadeiro inferno.

“Pergunto a mim, muitas vezes, se não tenho o direito de viver, e se porventura serei eu mesmo a causa das desgraças que me rebentam debaixo dos pés a cada passo!

“Muita gente tem sido, sem dúvida, testemunha de um incêndio, de um assassínio, e de muitos outros acidentes que são próprios deste mundo e da nossa sociedade; mas isso sem essa horrível continuidade, sem essa desastrosa multiplicidade que me persegue constantemente.

“Que tenho eu feito aos céus? Não serei porventura um homem como os outros?

“Jamais tenho encontrado a desgraça sem a socorrer e, se não fosse por índole caritativo, não bastaria a lembrança de minha pobre mãe para me ensinar o respeito que é devido às lagrimas e à miséria?

“Conheces agora, senhora, o motivo das minhas tristezas... Sabes a razão por que é pálida a minha fronte e por que sangra o meu coração. Ah! Se fosses pobre, Jouliette, poderia consolar-me, pensando que essas tribulações e calamidades, que me perseguem sempre e sempre, seriam ao menos compensadas pela fortuna que irias gozar; mas que posso eu fazer pela sua felicidade que não se ache já feito? Que imenso sacrifício não seria o teu! Conheces, agora, que deves abandonar-me e fugir de mim!”

— Robert — exclamou Jouliette pegando-lhe na mão —, és um louco!... Teu coração sofre desde que nasceste, meu pobre amigo. Só tive meu pai para me amar, mas ele sabe amar por Deus... Não conheceste nem pai nem mãe; e os abraços de um benfeitor são sempre frios...

“Foi isso que operou no teu espirito essas sinistras apreensões. O que a outrem não causaria o menor reparo, impressiona-te profundamente. O navio que te trouxe chamava-se Fatalidade, mas há vinte anos que ele navega com esse nome, e nem foste o único passageiro. Eram treze; e esse número inquieta-te em consequência dessa extravagância de espírito que causa tua desgraça: deram porventura os outros passageiro importância a isso? O vapor sofreu avarias; mas há no porto vinte, trinta navios que as têm sofrido das mais cruéis!

“Robert, o que vos mata apenas me impressiona; e muito me riria dessa superstição, se ela não te tornasse tão sombrio e aflito... Sobretudo, nada digas a meu pai do que se tem passado entre nós; deixai-me arranjar as coisas.”

Robert lançou-se aos joelhos de Jouliette e os cobriu de beijos.

Esta declarou a Mr. Wellingham que estava feita a sua escolha e o bom velho respondeu-lhe, sorrindo-se, que muito feliz fora sempre ela para que ousasse contrariá-la. Pouco tempo depois, Robert desposou Jouliette Wellingham.

 

IV

 

Ambos se adoravam. Robert, regenerado a seus próprios olhos pela afeição de Jouliette, amava-a tanto por amor como por reconhecimento; e Jouliette, bastante altiva por ter achado em si mesma a coragem que nenhuma outra mulher teria tido, atribuía a seu marido o orgulho ingênuo que provinha da sua força e superior idade moral.

Percorreram ambos uma parte da França e em toda a viagem nenhuma só diligência virou-se, nenhuma caldeira arrebentou-se.

Robert não podia crer em tão insolente felicidade.

Mr. Wellingham possuía em Vertefeuille uma deliciosa vila rodeada de bosques e prados banhados por um desses ribeiros que vão desaguar no Garona.

A casa de dois andares era cercada de colunelos torcidos, por onde trepavam mil plantas que, recaindo em floridos cachos, davam-lhe o aspecto dum imenso berço de folhagem. Foi lá que os dois amantes quiseram ir ocultar sua felicidade. Jouliette aí deu à luz uma menina, que chamou Robertine, bem contra a vontade de seu marido. Robert tremeu até que ela completasse treze dias e, depois treze meses.

Mas a menina continuou a passar admiravelmente; e, no mesmo dia em que fez treze meses, Jouliette deu-lhe um irmão, a quem chamou William, do nome de seu avô Mr. Thompson.

Corriam os dias alegres e serenos nesse retiro de delicias, e Robert dava graças ao céu pela sua clemência, quando a chegada de um personagem, que se não esperava, veio derrubar esse castelo de cartas.

Uma sexta feira, ao cair da noite, o jardineiro foi participar a Robert que um estrangeiro, desejando faltar-lhe em particular, o esperava em uma avenida.

Robert foi ter com ele e reconheceu o conde de Gustamante

 Ficou gelado; e o conde perguntou-lhe, com ar irônico:

— Como passas, Sr. Robert Thirteen?  

— Perfeitamente, Sr. conde — respondeu Robert, procurando tornar-se senhor de si. — Mas de onde chegas agora, tão inesperadamente?

— De Nova York.

Robert estremeceu   e foi assaltado de pungente inquietação.

— E que foste lá fazer?

O conde não respondeu logo.

— Sr. Robert Treze — disse, enfim —, quando desposaste a única mulher perfeita que tenho conhecido, causaste-me uma bem cruel ferida! Não era natural que, tendo-me um homem ferido, ao mesmo tempo, no meu amor e no meu orgulho, desejasse eu saber quem era esse homem?

—E então?

— Então, eis o que soube. Permita-me que refira as coisas de mais longe, porque assim é necessário à clareza da minha história.

“A 25 de março de 1824, achou-se, a duas milhas de Nova York, o cadáver de uma mulher moça, que se tinha enforcado num galho de uma arvore. Um certo homem, que então servia ao banqueiro Thompson, reconheceu, pelos vestidos, essa mulher, que na véspera tinha deixado nas suas mãos uma criança, em favor da qual ela implorava a compaixão de Mr. Thompson...”

— Quem te disse, senhor, que eu não sei tão bem como vós essa dolorosa história?

— Tão bem como eu, não me parece, Sr. Robert Thirteen, pois estou certo de que vou contar-te alguma coisa de novo. Ouve-me, portanto, com paciência.

“Essa mulher chamava-se Suzana Halkins. Suzana tinha sido seduzida por um jovem que chamaremos George, e que era primeiro caixeiro da casa Harrison, Barkley e Cia.  George amava loucamente a essa Suzanna, que me disseram ter sido de rara beleza. Mas a pobre moça tinha a cabeça um tanto desvairada. Os sofrimentos que havia suportado durante a sua infância tinham-lhe deixado terrores febris que a assaltavam repentinamente, sobrevindo-lhe verdadeiros acessos de loucura que a esmagavam. Foi num desses acessos que fugiu de Nova York, deixando George desesperado. Ele procurou-a durante seis meses e partiu, por fim para França, onde a casa Harrison, Barkley e Cia queria também estabelecer-se.

“Suzana fora recolhida por um rendeiro dos arredores, em cuja casa deu à luz o menino, que tinha de ser criado pelo banqueiro William D. Thompson. Thompson ou ignorava todos esses detalhes, ou julgou prudente ocultá-los a seu filho adotivo. Mas, seguramente, não sabia o que te vou dizer. Pouco tempo depois de sua chegada à França, George casou-se para apagar do seu espirito a lembrança de Suzana. E Geroge Wellingham teve uma filha, a quem chamou Jouliette.

— Estás mentindo, miserável! — exclamou Robert, agarrando-o pelo pescoço.

Gustamante livrou-se friamente desse ataque.

— Pergunta a Wellingham — disse ele — e vereis se não é assim... Adeus, Sr. Robert Treze!

E desapareceu.

Robert recolheu-se à casa e atirou-se, aniquilado, sobre uma poltrona do seu gabinete.

Depois, levantou-se e entrou devagarinho no quarto onde dormia sua mulher.

Jouliette dormia com o sorriso nos lábios. Um de seus braços reclinava-se com graça sobre o leito e seus ombros desenhavam-se alvos sobre o lençol branco.

Robert, comprimindo as palpitações do seu coração, deu um beijo na testa de Jouliette e abraçou, depois, seus dois filhinhos.  Dirigiu-se outra vez ao gabinete, abriu um armário, e tirou uma pistola, que armou.

— Mas, se esse homem mentiu — disse ele —, eu poderia viver tão feliz! Jouliette! Meus filhos! Não, não devo morrer antes de esclarecer este drama. Wellingham há de me dizer tudo.

Nesse momento, ouviu-se na estrada o trote de um cavalo.

Robert desceu.

Vinham dizer-lhe que Mr. Wellingham acabava de morrer na cidade de um aneurisma no coração.

Essa notícia aniquilou-o.

Como penetrar, agora, esse mistério infame que lhe tinha contado Gustamante?

Subiu ao gabinete; e, com o coração traspassado de agonia, pôs-se a meditar.

Nesse momento, o martelo de um relógio do quarto vizinho deu uma primeira pancada.

— Pois bem, com a graça de Deus, se o relógio der um número par do horas, viverei; se, porém, o número for ímpar, Deus quer que eu morra! — exclamou Robert.

E contou:  

— Duas... três... quatro... cinco... seis... sete... oito... nove... dez... onze... doze!... Meia-noite! — disse Robert. Jouliette não é minha irmã. Viverei.

Mas, de repente, escapou-lhe do seio um surdo gemido...

Horror!

O martelo do relógio levantou-se pela decima terceira vez...

Robert pegou na pistola e esmigalhou o crânio no momento em que o tímpano fatal ressoava a décima terceira badalada.

 

Fonte: “A Abelha”/RJ, fev/mar de 1856.



[1] Há pessoas que não têm sorte.

[2] Thirteen: treze em inglês.

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