UMA PROMESSA QUEBRADA - Conto Clássico de Terror - Koizumi Yakumo
UMA PROMESSA
QUEBRADA
Koizumi Yakumo
(Lafcadio Hearn)
(1850 – 1904)
Tradução de Paulo Soriano
—
Eu não tenho medo de morrer — disse a esposa moribunda. — Somente uma coisa me
preocupa agora. Gostaria de saber quem ocupará o meu lugar nesta casa.
—
Minha querida — respondeu o marido —, ninguém jamais tomará o teu lugar em
minha casa. Nunca... jamais me casarei novamente.
Quando
dizia isto, o marido falava do fundo do coração: ele amava a mulher que estava
prestes a perder.
—
Tu juras pela fé de um samurai? — ela perguntou, exibindo um débil sorriso.
—
Juro pela fé de um samurai — ele respondeu, acariciando aquela face pálida e
murcha.
—
Então, meu amado — disse ela —, tu hás de me sepultar no jardim, não é mesmo?
Perto daquelas ameixeiras que plantamos lá no fundo. Há muito que eu te queria
pedir isto, mas pensei que, caso tu viesses a se casar novamente, não irias
querer o meu sepulcro tão perto de ti.
Agora que me prometeste que nenhuma outra mulher ocupará o meu lugar,
não é necessário que eu hesite em fazer o meu pedido... Eu quero tanto ser
sepultada no jardim!... Creio que, nele, poderei ainda escutar, de vez em
quando, a tua voz e, também, contemplar as flores da primavera.
—
Será assim como desejas — ele respondeu. — Mas não fales de enterro agora. Não
estás tão doente a ponto de perder toda esperança.
—
Eu te enterrarei — disse ele — sob a sombra das ameixeiras que plantamos. E tu
terás um lindo túmulo.
—
Tu me darás um sininho?
—
Um sininho?
—
Sim. Quero que ponhas um sininho dentro de meu ataúde. Um sininho como aqueles
que os peregrinos budistas carregam.
Farás isto?
—
Terás o teu sininho e tudo mais que desejares.
—
Não desejo mais nada — disse ela. — Meu
amor, tu sempre foste muito bom comigo! Agora posso morrer feliz.
Então,
ela fechou os olhos e morreu. Expirou tão facilmente quanto uma criança
sonolenta que adormece. Embora morta, estava linda. Havia um sorriso em sua
face.
Sepultaram-na
sob a sombra das árvores que amara em vida, e, com ela, desceu à cova um
pequeno sino. Erigiram sobre a sepultura um lindo mausoléu, ornamentado pelo
brasão da família, em que se lia o seguinte kaimyou[1]:
“Grande Irmã mais
velha. Sombra-Luminosa-da-Flor-da-Ameixeira, que moras na Mansão do Grande Mar
da Compaixão”.
*
Mas,
doze meses após a morte de sua esposa, os parentes e amigos do samurai
começaram a instigá-lo a contrair novas núpcias.
—
Tu ainda és um homem jovem — diziam. — És filho único e não tens filhos. É dever de um samurai casar-se. Se morres sem
filhos, quem fará as oferendas a teus antepassados? Quem cultivará a memória de
teus ancestrais?
E
tantas foram as insistentes exortações que, finalmente, persuadiram-no a
casar-se novamente. A noiva tinha apenas dezessete anos. E o samurai descobriu
que podia amá-la intensamente, a despeito dos mudos reproches que vinham do
túmulo no jardim.
II
Nada
que pudesse perturbar a felicidade da jovem esposa aconteceu até o sétimo dia
após o casamento, quando o Samurai recebeu a ordem para cumprir certos deveres
que exigiam a sua presença no castelo à noite.
Na primeira noite em que se viu obrigado a deixar a esposa sozinha, a
jovem mulher sentiu uma inquietação inexplicável. Sentia-se vagamente
atemorizada, mas sem saber por quê. Foi para cama, mas não conseguiu dormir.
Havia uma estranha opressão no ambiente — um peso indefinível, como aquele que
às vezes precede a irrupção de uma tempestade.
Por
volta da Hora do Boi[2],
ela ouviu, vindo de fora, o tilintar de um sino — um sino de peregrino budista.
Ela, então, se perguntou que peregrino poderia estar passando pelas possessões
do samurai em semelhante hora. Em seguida, depois de uma pausa, o sino tilintou
ainda mais próximo. Evidentemente, o peregrino se aproximava da casa. Mas, por
que se acercava pelos fundos, onde não havia entrada alguma...? De repente, os
cães começaram a ganir e a uivar de uma maneira estranha e horrível. E um temor
a assaltou como se num pesadelo. Sem dúvida, o tinido provinha do jardim...
Tentou levantar-se para chamar um criado, mas descobriu que não podia se
erguer, mover-se, gritar... E o tilintar do sino ficava mais próximo, cada vez
mais se acercava. E — ai! — como uivavam os cães!... Então, com a leveza de uma
sombra furtiva, deslizou para dentro do quarto uma Mulher, embora todas as
portas estivessem trancadas e imóveis todas as cortinas. Era uma Mulher envolta
em vestes sepulcrais, que trazia consigo um sininho de peregrino. Sem olhos —
porque ela estava morta há muito tempo —, ela aproximou-se da jovem esposa... e os cabelos soltos caíam-lhe sobre a face.
E, mesmo sem olhos, mirou através do emaranhado de seus cabelos, e falou sem
que tivesse língua:
—
Nesta casa, não! Nesta casa não ficarás! Eu ainda sou a senhora deste lar. Irás
embora, e a ninguém revelarás a razão de tua partida. Se disseres alguma coisa
a Ele, eu te farei em pedaços.
Assim
que pronunciou estas palavras, a assombração desapareceu. A jovem esposa
desfaleceu de terror. Não recobrou a consciência até o amanhecer.
No
entanto, com a alegre luz do dia, ela duvidou da realidade do que havia visto e
ouvido. A lembrança da ameaça ainda pesava em seu coração tão intensamente que
ela não ousou falar da aparição noturna, quer para o seu marido, quer para
qualquer outra pessoa. Mas quase esteve a ponto de convencer-se de que tudo não
passara de um sonho desagradável, que a deixara impressionada. Todavia, na
noite seguinte, as suas dúvidas se dissiparam. Mais uma vez, na Hora do Boi, os
cães começaram a uivar e a ganir. Novamente ouviu o tilintar do sino, vindo do
jardim, aproximando-se lentamente. De novo tentou, em vão, levantar-se e gritar
por alguém. Mais uma vez a morta entrou no quarto e disse-lhe, com a voz
sibilante:
—
Tens de ir embora! E a ninguém dirás por que partiu. Se contas alguma coisa a Ele, um sussurro que
seja, eu te farei em pedaços!...
Desta
feita, achegou-se bem à cama e, inclinando-se, ficou a murmurar e a mover-se
como uma foice oscilante sobre a jovem.
Na
manhã seguinte, quando o samurai regressou do castelo, a jovem esposa
prostrou-se diante dele, suplicando:
—
Eu te imploro — disse ela — que perdoe a minha ingratidão e grande descortesia
ao dirigir-me a ti desta maneira, mas quero voltar para casa. Quero ir-me
embora imediatamente.
—
Tu não és feliz aqui? — perguntou ele, sinceramente surpreso. — Alguém se
atreveu a ser pouco delicado contigo durante a minha ausência?
—
Não é isto — ela respondeu, soluçando. —
Todos têm sido muito bons comigo... Mas não posso permanecer como tua esposa.
Tenho que partir.
—
Minha querida — exclamou ele, deveras espantado —, é muito doloroso saber que
tiveste algum motivo de infelicidade nesta casa. Mas não posso imaginar a razão para que
queiras partir... A menos que alguém
tenha sido muito indelicado contigo. Decerto, não me queres dizer que pretendes
o divórcio.
Ela respondeu, tremendo e chorando:
—Se
não me deres o divórcio, eu morrerei!
Ele
permaneceu em silêncio durante alguns instantes, tentando debalde descobrir
algum motivo para aquela surpreendente declaração. Então, sem trair qualquer
emoção, respondeu:
—
Mandar-te de volta ao teu lar, sem qualquer falta da tua parte, seria uma
atitude vergonhosa. Se me disseres alguma boa razão para o teu desejo —
qualquer motivo que me permita explicar as coisas honrosamente —, posso dar-te
o divórcio. Mas, a menos que me dês uma razão, uma boa razão, não o concederei,
pois a honra de nossa casa deve ser mantida acima de qualquer reproche.
Então,
ela se viu obrigada a falar e lhe contou tudo, acrescendo, numa agonia de
terror:
—
Agora que te contei tudo, ela vai me matar! Vai me matar!
Malgrado
fosse um homem corajoso e pouco propenso a acreditar em fantasmas, o samurai
ficou mais que surpreso por um instante. Todavia, uma explicação simples e
natural logo afluiu à sua mente.
—
Minha querida — disse ele —, estás muito nervosa e receio que alguém te tenha
contado histórias tolas. Não posso conceder-te o divórcio somente porque
tiveste um pesadelo nesta casa. Mas realmente lamento que tenhas sofrido tanto
durante a minha ausência. Terei que ir, também nesta noite, ao castelo. Não te
deixarei, contudo, sozinha. Ordenarei a dois de meus antigos e leais serviçais
que montem guarda em teu quarto. Assim, poderás dormir em paz. São bons homens,
que tomarão todos os cuidados possíveis para proteger-te.
Em
seguida, falou-lhe com tanta consideração e carinho que ela se sentiu quase
envergonhada de seus terrores. Assim, resolveu permanecer naquela casa.
III
Os
serviçais encarregados de cuidar da jovem esposa — homens fortes, valentes e de
coração simples — eram experientes guardiões de mulheres e crianças. Contaram à
jovem esposa histórias agradáveis para mantê-la alegre. Ela conversou com eles
durante muito tempo, riu daquelas tiradas bem-humoradas, e quase esqueceu os
seus temores. Quando, finalmente, ela se
recolheu para dormir, os guardiões tomaram os seus lugares em um canto do
aposento, atrás de um biombo, e começaram a jogar uma partida de go[3],
falando apenas em sussurros para não a perturbar. Ela dormia como uma criança.
Todavia,
na Hora do Boi, ela despertou, mais uma vez, com um grito de terror... Ouvira o
tilintar do sino! O sonido já estava bem perto e se aproximava cada vez mais.
Ela se ergueu e gritou, mas não havia qualquer movimento no quarto, apenas um
silêncio tumular, um silêncio crescente, que se tornava cada vez mais denso.
Correu para os guardiões. Estes estavam sentados diante do tabuleiro, imóveis,
e se miravam com olhos fixos. Ela, gritando, chamou por eles e os sacudiu. Mas eles estavam hirtos, como que congelados.
Mais
tarde, eles disseram ter ouvido o sino e, também, o grito da jovem esposa. Até
mesmo sentiram que ela tentava tirá-los do transe. No entanto, não foram capazes de se mover ou
falar. A partir deste instante, deixaram de enxergar ou ouvir: um sono negro
havia-se apoderado deles.
*
Ao
amanhecer, quando entrou na câmara nupcial, à luz mortiça de uma lamparina, o
samurai contemplou o cadáver decapitado de sua jovem esposa, que jazia numa
poça de sangue. Os guardiões ainda dormiam, agachados diante do jogo
inconcluso. Ao grito de seu amo, levantaram-se e, estupidamente, encararam o
horror a seus pés...
Não
se via a cabeça. A ferida hedionda testemunhava que a cabeça não havia sido
cortada, senão arrancada. Um rastro de sangue estendia-se da câmara à galeria
exterior, onde as portas protetoras de intempéries pareciam ter sido fendidas.
Os três homens seguiram o rastro até o no jardim, atravessaram o gramado e os
espaços de areia, ao longo da margem de um lago iridescente, sob as espessas
sombras de cedro e bambu.
De
súbito, numa curva, eles se acharam cara a cara com algo que parecia saído de
um pesadelo, e que se agitava como um morcego: a figura da mulher, há muito
sepultada, erguida diante do próprio sepulcro. Em uma das mãos, trazia o
pequeno sino; na outra, a cabeça, ainda gotejante de sangue, da jovem esposa.
Por um instante, os três ficaram paralisados. Então, um dos homens armados,
proferindo uma invocação budista, golpeou com a espada a coisa, que,
instantaneamente, desmoronou, dispersando sobre o chão farrapos de mortalha,
ossos e cabelos. E desta ruína escapuliu
o sino, rolando e tilintando... Mas a
mão direita, descarnada, embora segregada do pulso, ainda se contorcia, aferrada
à cabeça decepada. E os seus dedos retalhavam e mutilavam aquela cabeça, assim
como as pinças de um caranguejo amarelo agarram e destroçam, rapidamente, um
fruto caído ao chão...
*
[— Esta é uma narrativa
perversa — eu disse ao amigo que me contara a história. — A vingança dos mortos, caso tivesse de ser
cumprida, deveria recair sobre o homem.
— É dessa maneira que
os homens pensam — ele respondeu. — Mas não é assim que que as mulheres reagem
a tal insulto...
Ele tinha razão.]
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