A AVENTURA DO ESTUDANTE ALEMÃO - Conto Clássico de Terror - Washington Irving
A AVENTURA DO
ESTUDANTE ALEMÃO
Washington Irving
(1783 – 1859)
Tradução de Paulo Soriano
Contemporâneo de Edgar
Allan Pöe, o escritor norte-americano Washington Irving (1783 — 1859)
deixou narrativas de terror impressionantes, a exemplo de “O Diabo e Tom
Walker” e a muito famosa “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”. Ambientado na Paris
revolucionária, em pleno reinado do Terror, “A Aventura do Estudante Alemão” é
um conto pungente, macabro ao extremo: um estudante idealista se apaixona por
uma bela jovem vestida de preto (apenas adornada por uma fita igualmente negra
a cingir-lhe o pescoço) que, em uma noite de tempestade, encolhia-se,
desamparada, ao pé das escadas do patíbulo, sob a sombra da terrível
guilhotina...
O conto de Irving, que
se inspira em Flégon e Goethe, serviu de argumento a Alexandre Dumas na novela
“A Mulher da Gargantilha de Veludo”, em que o estudante alemão não é outro que
não o célebre escritor de terror E. T. A. Hoffmann.
Numa
noite tormentosa, nos tempos tempestuosos da Revolução Francesa, um jovem
alemão regressava aos seus aposentos, tarde da noite, cruzando a parte mais
antiga de Paris. Relampejava e nas ruas estreitas ressoava o ribombar dos
trovões. Mas devo, primeiramente, dizer alguma coisa sobre o jovem alemão.
Gottfried
Wolfgang era um jovem de boa família. Ele estudara durante algum tempo em
Göttingen. Mas, tendo um caráter visionário e entusiasta, dedicou-se a
estranhas doutrinas especulativas, que há tanto tempo têm fascinado os
estudantes alemães. Sua vida reclusa, sua intensa dedicação e a natureza
singular de seus estudos produziram um estranho efeito sobre o seu corpo e o
seu espírito.
Sua
saúde tornou-se débil; sua imaginação, doentia. Entregara-se a especulações
fantasiosas sobre a essência dos espíritos, até que, como Swedenborg,
encerrou-se num mundo ideal, construído em torno de si mesmo. Imaginava-se ― e
ninguém sabe a causa ― perseguido por uma influência maligna, um gênio do mal
ou um espírito, que intentava possuir-lhe o corpo, conduzindo-o à perdição. Tal
ideia, trabalhando em seu temperamento melancólico, produziu os efeitos mais
sombrios. Tornou-se abatido e desanimado. Seus amigos viram nisto uma doença
mental e decidiram que o melhor remédio era uma mudança de ares. Enviaram-no,
assim, para concluir os estudos, à alegre e esplendorosa Paris.
Wolfgang
chegou a Paris no eclodir da Revolução. O delírio popular capturou de imediato
sua mente entusiasmada e ele se deixou dominar pelas teorias filosóficas e
políticas da época. Todavia, as cenas sangrentas que se seguiram chocaram a sua
natureza sensível e, nauseado da sociedade e do mundo, tornou-se mais do que
nunca um recluso. Encerrou-se, pois, num apartamento solitário no Quartier
Latin, o bairro dos estudantes. Lá, numa rua sombria, não muito longe das
paredes monásticas da Sorbonne, continuou as suas especulações favoritas. Às
vezes, ele passava horas inteiras nas grandes bibliotecas de Paris, essas
catacumbas de autores falecidos, vasculhando suas hordas de obras ― empoeiradas
e obsoletas ― em busca de alimento para o seu apetite enfermiço. Ele foi, de
certa forma, um ghoul literário, que se alimentava no sepulcro da
literatura decadente.
Wolfgang,
embora solitário e recluso, era de um temperamento ardente, mas apenas no
âmbito da própria imaginação. Ele era muito tímido e ignorante do mundo para
insinuar-se ao sexo mais frágil, embora fosse um admirador apaixonado da beleza
feminina. E, na solidão de seu quarto, perdia-se muitas vezes em devaneios
sobre formas e rostos que ele havia visto; em sua fantasia, criava imagens de
beleza que superavam em muito a realidade.
Neste
estado de excitamento e sublimação, um sonho passou a exercer um extraordinário
efeito sobre ele. Era o sonho com um rosto feminino de beleza transcendente.
Tão forte foi a impressão recebida, que ele sonhava com o mesmo rosto,
repetidamente. De dia, o rosto assombrava seus pensamentos; de noite, seus
sonhos. Em suma, tornou-se apaixonadamente enamorado dessa sombra de seus
sonhos. E tal estado se prolongou até tornar-se uma daquelas ideias fixas, que
apavoram as mentes dos homens melancólicos, e que, às vezes, são confundidas
com a loucura.
Tal
era Gottfried Wolfgang e tal o seu estado na época a que me referi.
Voltava
ele para casa no final da noite de tempestade, percorrendo as ruas antigas e
sombrias do Marais, na parte velha de Paris. O estrondear dos trovões
reverberava sobre as casas altas das ruas estreitas. Chegou à Place de Grève,
onde as execuções públicas eram realizadas. Os relâmpagos estremeciam acima dos
pináculos do antigo Hôtel de Ville, espraiando um brilho cintilante sobre o
espaço aberto à frente do estudante. Atravessando a praça, Wolfgang recuou de
horror quando se acercou da guilhotina. Era o auge do reinado do Terror e esse
terrível instrumento de morte estava sempre em prontidão. No cadafalso,
continuamente corria o sangue dos virtuosos e valentes. Nesse mesmo dia, a
guilhotina havia sido empregada ativamente em seu ofício de carnificina, e,
agora, erguia-se cruelmente, em meio a uma cidade silenciosa e adormecida, à
espera de novas vítimas.
O
coração de Wolfgang fremiu no peito, e já se afastava ele, a tremer, do
horrível instrumento, quando notou o vulto de uma figura encolhida ao pé da
escada que levava ao cadafalso. Uma sucessão de relâmpagos permitiu um
vislumbre mais claro: era uma figura feminina, vestida de preto. Ela estava
sentada em um dos degraus mais baixos, inclinada para frente, com o rosto
escondido no peito. Seus longos e desgrenhados cabelos tocavam o solo,
misturando-se à água que caía torrencialmente. Wolfgang fez uma pausa. Havia
algo de terrível nesse solitário monumento de aflição. A mulher parecia estar
acima do normal. Eram tempos de vicissitudes, e muitas belas cabeças, que antes
descansavam em seus travesseiros, agora vagavam sem teto. Talvez se tratasse de
uma pobre mulher enlutada, com o coração destroçado, a quem a terrível lâmina
havia deixado solitária, lançando à eternidade todos os entes queridos.
Ele
aproximou-se e falou-lhe num tom compadecido. Ela ergueu a cabeça e o olhou
selvagemente. Qual não foi o espanto do rapaz ao contemplar, à luz do clarão do
relâmpago, o mesmo rosto que insistentemente havia assombrado os seus sonhos!
Ela estava pálida e desconsolada, embora linda e encantadora.
Tremendo
em meio a emoções violentas e conflitantes, Wolfgang novamente a abordou. À
mulher falou sobre a circunstância de estar ela exposta, àquela hora da noite,
à fúria de uma tempestade, oferecendo-se, assim, a conduzi-la a seus
conhecidos. Ela apontou para a guilhotina com um gesto de terrível significado.
―
Não tenho ninguém sobre a Terra ― disse ela.
―
Mas você tem um lar ― Wolfgang respondeu.
―
Sim, num túmulo.
O
coração do estudante se liquefez com tais palavras.
―
Se um estranho se atreve a fazer uma oferta ― disse ele ―, sem o perigo de ser
mal interpretado, eu te ofereço o meu humilde lar, como um amigo dedicado. Eu
mesmo não tenho amigos em Paris. Sou um estrangeiro nesta terra. Mas, se eu
puder dedicar a minha vida a seu serviço, ela está à tua disposição. Estou
propenso a sacrificar a minha vida antes que a ti sobrevenha alguma aflição ou
indignidade.
Havia
uma honestidade tão sincera na atitude do jovem que suas palavras realmente
produziram efeito. O seu sotaque estrangeiro também acorria em seu favor:
demonstrava que não era um habitante qualquer de Paris. Com efeito, há no
entusiasmo da verdade tanta eloquência que não é possível pô-lo em dúvida. Sem
reservas, a desconhecida desabrigada se entregou à proteção do estudante.
Ele
amparou os seus passos vacilantes através da Pont Neuf e do local onde a
estátua de Henrique IV havia sido derrubada pelas turbas. A tempestade amainara
e o trovão ressoava à distância. Toda Paris permanecia tranquila. O grande
vulcão das paixões humanas dormitava, reunindo as forças para a erupção do dia
seguinte. O estudante conduziu seu fardo pelas ruas antigas do Quartier Latin,
junto às paredes sombrias da Sorbonne, levando-a ao sórdido hotel em que
morava. A velha porteira, que lhes franqueou a entrada, contemplou, com
surpresa, a visão incomum de um melancólico Wolfgang acompanhado por uma
mulher.
Ao
entrar no apartamento, o estudante, pela primeira vez, corou ao ver a pobreza e
a impessoalidade de seus aposentos. Consistiam em apenas um cômodo ― uma sala à
moda antiga ― fantasticamente talhado com os restos de uma antiga
magnificência, porquanto compunha um desses hotéis situados na mesma quadra do
Palácio de Luxemburgo, que pertencera à nobreza. Estava repleto de livros e
papéis, e de tudo o quanto é próprio a um estudante. Sua cama ficava em um
canto afastado.
Quando
os lumes foram acesos, permitido a Wolfgang melhor vislumbrar a desconhecida,
ficou ele mais ainda extasiado com aquela beleza. O rosto da desconhecida era
pálido, mas de uma beleza deslumbrante, desencadeada por uma profusão de
cabelos negros, que pendiam em cachos. Seus olhos eram grandes e brilhantes,
dotados de uma expressão singular, quase selvagem. Até onde o vestido preto
permitia a visão de suas formas, estas eram de perfeita simetria. Sua aparência
geral era extremamente impressionante, embora a mulher se vestisse com
simplicidade A única coisa a assemelhar-se a um ornamento era uma fita preta,
larga, adornada por diamantes, que lhe cingia o pescoço.
Veio,
então, ao encontro do estudante alemão a preocupação de como ajudar aquela
mulher indefesa, que se lançara à sua proteção. Pensou em abdicar do próprio
quarto em favor dela e buscar alojamento em outro lugar. Mas estava tão
fascinado com os seus encantos, pois dela irradiava uma magia que lhe subjugava
os sentidos e pensamentos, que não podia desviar-se de sua presença. Suas
maneiras eram também estranhas e inexplicáveis. Ela deixou de falar sobre a
guilhotina. Sua aflição havia diminuído. Com suas atenções, o estudante ganhara
a confiança da desconhecida, e, aparentemente, o seu coração. Evidentemente,
ela era, assim como ele, uma entusiasta e as pessoas assim talhadas se entendem
prontamente.
Na
paixão do momento, Wolfgang confessou o seu amor pela mulher. Contou-lhe a
história de seus misteriosos sonhos, e como ela havia se apossado de seu
coração antes mesmo que o rapaz a conhecesse. A desconhecida ficou
estranhamente impressionada com aquela declaração e admitiu sentir-se atraída
por ele de uma maneira igualmente inexplicável. Era a época de teorias e ações
selvagens. Velhos preconceitos e superstições eram abolidos. Tudo estava sob a
influência da "Deusa da Razão". As formalidades e cerimônias de
casamento, escombros dos velhos tempos, começaram a ser consideradas supérfluos
rituais para as mentes honrosas. Os pactos sociais estavam em moda. Wolfgang
era demasiadamente teórico para não ser contaminado pelas doutrinas liberais de
sua época.
―
Por que devemos nos separar? ― perguntou. ― O nosso coração está unido; ante os
olhos da razão e da honra, somos um só. Que necessidade há de formalidades
sórdidas para unir as almas elevadas?
A
desconhecida ouvia com emoção: ela evidentemente fora iluminada pela mesma
escola teórica.
―
Tu não tens casa ou família ― continuou ele. ― Deixa-me ser tudo para ti. Ou
melhor, sejamos tudo um para o outro. Se as formalidades são necessárias, nós
as acataremos. Eis aqui a minha mão. Eu me entrego a ti para sempre.
―
Para sempre? ― indagou a desconhecida, solenemente.
―
Para sempre! ― repetiu Wolfgang.
A
desconhecida apertou a mão que lhe era estendida.
―
Então eu sou tua ― murmurou ela, reclinando-se ao peito do rapaz.
Na
manhã seguinte, o estudante deixou sua esposa a dormir e saiu uma hora mais
cedo, em busca de um apartamento mais espaçoso, adequado a seu novo estado
civil. Ao voltar, encontrou a mulher deitada, com a cabeça pendendo da cama e
um braço estirado. Falou com ela, mas não recebeu resposta alguma. Então,
avançou para despertá-la daquela postura inquietante. Ao tomar-lhe a mão,
verificou que esta estava fria e que não havia pulsação. A face da mulher
estava pálida e medonha. Em uma palavra, ela era um cadáver.
Horrorizado
e frenético, ele soltou um grito alarmante, clamando pelos da casa. Uma cena de
confusão se seguiu. A polícia foi chamada. O oficial de polícia entrou na sala
e retrocedeu ao contemplar o cadáver.
―
Céus! ― gritou. ― Como esta mulher veio parar aqui?
―
Você sabe alguma coisa sobre ela? ― indagou Wolfgang, ansiosamente.
―
Se eu sei? ― exclamou o oficial. ― Ela foi guilhotinada ontem.
Deu
um passo à frente e desatou a gargantilha negra que cingia o pescoço do
cadáver. A cabeça rolou no chão!
O
estudante perdeu o controle.
―
O demônio! O demônio finalmente me tomou! ― gritou ele. ― Estou perdido para
sempre.
Tentaram
acalmá-lo, mas em vão. Estava dominado pela crença de que um terrível espírito
maligno havia reanimado o cadáver com o intuito de apoderar-se dele, o
estudante. Enlouqueceu e morreu em um hospício.
Aqui,
o velho homem, de feições assombradas, terminou sua narrativa.
―
Esse fato é verdadeiro? ― perguntou um cavalheiro curioso.
―
Um fato que não pode ser posto em dúvida ― respondeu o primeiro. ― Soube-o por
fonte autorizada: foi o próprio estudante que me contou. Eu o conheci no
manicômio de Paris.
Imagem do miolo PS/Copilot.
Barão amigo, essas ilustrações, que loucura ! É bom lembrar que o internauta que dá o comando também é co-autor por causa do prompt ou descrição, isso aliás nos EUA tá tendo uma discussão tremenda, nem o pessoal do Direito sabe o que fazer rss rss coisas da tecnologia que voa, mas são muito legais issas imagens geradas!
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