A NOIVA DO ESPECTRO - Conto Clássico de Terror - William Harrison Ainsworth


 

A NOIVA DO ESPECTRO

William Harrison Ainsworth

(1805-1882)

 

O castelo de Hernswolf era, no final do ano de 1655, o centro da moda e da alegria. O barão do mesmo nome era o nobre mais poderoso da Alemanha e igualmente célebre pelos feitos patrióticos de seus filhos e pela beleza da sua única filha.

A propriedade Hernswolf, situada no centro da Floresta Negra, fora concedida pela nação em reconhecimento a um dos seus ancestrais, e passou, juntamente a outras posses, de mão em mão, para a família do atual proprietário. Era uma mansão com ameias, em estilo gótico, construída, conforme a moda da época, no mais grandioso estilo arquitetônico. Consistia sobremodo de corredores escuros e ventosos e de cômodos abobadados com tapeçarias, de fato magníficos em seu tamanho, mas que pouco satisfaziam às necessidades de conforto, dada a circunstância extrema da sua lúgubre magnitude. Um bosque escuro de pinheiros e freixos cercava o castelo por todos os lados e conferia um aspecto sombrio ao cenário, que raramente era animado pela alegre luz do Sol.

*

Os sinos do castelo repicavam alegremente quando o crepúsculo do inverno se achegava e o guardião postava-se, com a sua comitiva, na galeria da ameia, para anunciar a chegada dos visitantes, convidados a partilhar das diversões que reinavam dentro das muralhas. Lady Clotilda, filha única do barão, acabara de completar dezessete anos, e fora convocada a um cintilante auditório, no qual comemoraria o seu aniversário.

As grandes salas abobadadas foram abertas para a recepção dos numerosos convidados, e a festa noturna mal havia começado quando o relógio da torre expandiu os seus repiques com inusual solenidade. Prontamente, um homem desconhecido, alto, vestido com um traje negro, assomou no salão de baile. O estranho inclinou-se, em cortesia, a um e outro lado, mas foi recebido por todos com a mais estrita reserva. Ninguém sabia quem ele era ou de onde vinha; contudo, por sua aparência, era evidente que se tratava de um nobre de primeira grandeza e, embora a sua chegada fosse recebida com desconfiança, era respeitosamente tratado. Dirigiu-se particularmente à filha do barão e era tão inteligente nos comentários, tão jovial nos passeios e tão fascinante nos discursos, que rapidamente despertou o interesse de sua jovem e sensível ouvinte. Finalmente — depois de alguma hesitação por parte do anfitrião, que, tal como os demais visitantes, era incapaz de abordar o estranho com indiferença —, foi convidado a permanecer alguns dias no castelo, convite que o estranho aceitou alegremente.

Quando caiu o silêncio da noite e todos se retiraram para descansar, ouviu-se o monótono e pesado sino oscilando, de um lado para o outro, na torre cinzenta, embora o vento mal tivesse forças para mover os ramos das árvores do bosque. Alguns hóspedes, quando reunidos à mesa do desjejum na manhã seguinte, declararam que, à noite, tinham ouvido os sons de uma música incrivelmente celestial; a maioria, contudo, persistia em afirmar que lhes chegaram ruídos horríveis, vindos, ao que lhes parecera, do quarto ocupado pelo estranho homem.

Ele logo apareceu à mesa e, quando fizeram alusão às circunstâncias da noite anterior, um sorriso sombrio, de inexprimível significado, aflorou em suas lúgubres feições, prontamente matizadas pela mais profunda melancolia. Dirigiu sua conversação principalmente a Clotilda, e quando falou dos diferentes climas que visitou, das regiões ensolaradas da Itália, onde os simples sopros da fragrância das flores e a brisa do verão suspiram sobre uma doce terra; quando lhe disse que falava daqueles deliciosos países onde o sorriso do dia se funde à suave beleza da noite, e a formosura do céu nunca é obscurecida sequer por um instante, provocou lágrimas em sua bela e sensível ouvinte, que, pela primeira vez na vida, lamentou nunca ter saído da casa paterna.

Os dias se sucederam e a cada momento aumentava o fervor dos inexprimíveis sentimentos que o estranho inspirava à moça. Ele nunca falou de amor, mas este transparecia em sua linguagem, em seus modos, nos insinuantes tons de sua voz, na suavidade de seu sorriso; e quando o estranho descobriu que havia conseguido nela incutir os sentimentos favoráveis, uma contorção facial, revestida do mais diabólico significado, exsurgiu por um instante e depois feneceu em seu obscuro semblante. Quando a via na companhia dos pais, mostrava-se ao mesmo tempo respeitoso e submisso, e somente quando estava a sós com ela, no passeio pelos recantos sombrios da floresta, é que assumia o aspecto do mais apaixonado admirador.

Certa tarde, estando o estranho sentado com o barão na sala revestida de madeira da biblioteca, a conversa convergiu a um tema sobrenatural. Durante a discussão, o estranho manteve-se reservado e misterioso. Todavia, quando o barão, jocosamente, negou a existência de espíritos e imitou satiricamente sua aparência, seus olhos brilharam com um fulgor sobrenatural e sua forma pareceu dilatar-se, transbordando-lhe as naturais dimensões.

Quando a conversa cessou, dando lugar uma pavorosa pausa momentânea, ouviu-se um coro de harmonia celestial a ecoar pela floresta sombria. Todos ficaram extasiados de deleite, mas o estranho, então perturbado e sombrio, olhou para seu nobre anfitrião com compaixão e algo similar a uma lágrima cruzou um dos seus olhos. Depois de alguns segundos, a música distante agonizou suavemente e tudo serenou como antes. Pouco depois, o barão deixou sala e foi seguido, quase imediatamente, pelo estranho. Não fazia muito tempo que se ausentara, quando ouviram um barulho horrível, como o de uma pessoa na agonia da morte, e o barão foi encontrado morto e estirado pelos corredores.

 

Seu semblante estava convulsionado de dor, e o aperto de uma mão era visível em sua garganta enegrecida. O alarme foi dado instantaneamente, o castelo foi detidamente examinado em todas as direções, mas o estranho não foi visto novamente. O corpo do barão, entretanto, foi silenciosamente entregue à terra, e a memória da sua horrenda passagem lembrada apenas como algo que sucedera.

*

Após a partida do estranho, que de fato fascinara os seus sentidos, o ânimo da gentil Clotilda evidentemente declinou. Ela adorava caminhar, até tarde pelos caminhos de costume, para recordar-se das últimas palavras do estranho; insistir em doce sorriso; passear por onde falara com ele, certa feita, sobre o amor. A todos ela evitava e nunca parecia feliz, exceto quando estava imersa na solidão do seu quarto.

Foi então que ela deu vazão à sua aflição em lágrimas; e o amor, que seu orgulho de donzela modestamente escondia em público, irrompeu nas horas de privacidade. Tão bela — e ainda tão resignada no seu justo luto — que já parecia um anjo libertado dos entraves do mundo, pronto para voar ao céu.

Numa tarde de verão, estava ela a vagar por um local isolado, que lhe era o favorito, quando passos lentos avançaram em sua direção. Ela se virou e, para sua infinita surpresa, ali descobriu o estranho. Feliz, ele deu um passo para o seu lado e iniciou uma conversa animada.

— Quando foste embora — exclamou alegremente a garota —, pensei que toda a alegria me fugira para sempre; mas, como tu voltaste, não seremos novamente felizes?

—Feliz! — respondeu o estranho, com uma explosão de sarcasmo desdenhoso. — Sem dúvida que eu posso ser feliz novamente. E atribuo tal resultado ao prazer que sinto em nosso reencontro. Oh, tenho tantas coisas a contar-te... Sim! E muitas palavras afetuosas para receber, não é verdade, minha querida? Vem, diz-me a verdade: foste feliz na minha ausência? Não! Vejo nesses olhos fundos, nesse pálido semblante, que o pobre vagabundo pelo menos despertou algum sutil interesse no coração de sua amada. Já vaguei por outros climas, já conheci outras nações, já conheci outras mulheres, lindas e bem-sucedidas, mas encontrei apenas um anjo, e ele está aqui, diante de mim. Aceita esta simples oferta de meu afeto, minha querida — continuou o estranho, arrancando uma rosa de seu caule. — Tu és linda como as flores silvestres, que adornam os teus cabelos, e doce como o amor que te tenho.

— És doce, certamente — respondeu Clotilda —, mas tua doçura dura pouco, assim como o amor que um homem manifesta. Que não seja esse o teu carinho. Traz-me, então, a delicada sempre-viva, a doce flor que desabrocha o ano todo, e direi, enquanto a mergulho em meus cabelos: “As violetas floresceram e morreram, as rosas floresceram e murcharam, mas a sempre-viva ainda é jovem, e tal é o amor no meu coração!”. Tu não poderás me abandonar. Eu vivo apenas em ti, já que és a minha esperança, os meus pensamentos, a minha própria existência. E se eu vier a perder-te, perderei tudo de mim. Eu era apenas uma flor silvestre e solitária no selvagem solo da natureza, até que me transplantaste para um solo mais afável, e agora poderás partir o terno coração que antes ensinaras a cintilar apaixonadamente.

— Não fales assim — respondeu o estranho. — Minha própria alma dilacera-se quando te ouço. Deixa-me, esquece-me, evita-me para sempre, ou a tua eterna ruína virá. Sou algo abandonado por Deus e pelo homem, de quem só se vê o coração ferido, que mal bate dentro desta massa móvel e disforme. Deverias escapar de mim, como se eu fosse uma víbora em teu caminho. Aqui está o meu coração, amor. Sente-o e vê como é frio. Ele não tem pulso que afete a tua emoção, porque nele tudo é congelado e morto, como os amigos que conheci.

—Tu está infeliz, amor, e tua pobre Clotilda estará aqui para ajudar-te. Então crês que eu posso abandonar-te em teu infortúnio? Não! Perambularei contigo pelo mundo inteiro e serei tua serva, tua escrava, se assim o desejares. Vou proteger-te das noites frias, para que o vento não sopre furiosamente em tua cabeça desnuda. Defender-te-ei da tempestade que uiva ao teu redor. E mesmo que o mundo releve ao desprezo o teu nome, mesmo que os teus amigos se separem e se juntem tristemente na sepultura, haverá um coração terno que bem te amará em tua desgraça, render-te-á as bênçãos e reconhecerá o teu valor.

Ela parou, com os olhos azuis banhados em lágrimas, voltando-se, radiante de afeição, para o estranho. Mas ele desviou-se daquele olhar e um sorriso sardônico, da mais sombria e mortal malícia, cruzou o seu fino semblante. Num instante, a expressão declinou, o olhar vítreo recuperou a frieza sobrenatural e ele voltou-se novamente à companheira.

— É a hora do crepúsculo! — ele exclamou. — A hora suave, a mais bela! É a hora em que os corações dos amantes estão cheios de alegria e a natureza sorri em harmonia com os seus sentimentos... Mas, para mim, a natura não mais sorrirá. Antes da alvorada, eu estarei muito longe da casa da minha amada, das cenas que meu coração guarda como num túmulo. Mas devo te deixar, querida flor silvestre, para que sejas tragada por um redemoinho, como a vítima da explosão de uma montanha?

— Não, não vamos nos separar — respondeu a apaixonada. — Aonde fores, eu irei; tua casa será minha casa e o teu Deus será o meu Deus.

— Promete-me, promete-me! — O estranho retomou a investida, enquanto, selvagemente, segurava-lhe a mão. — Promete-me pelo horrível juramento que te ditarei.

Mandou, então, que ela se ajoelhasse. Segurando-lhe a mão direita, num gesto ameaçador, em direção ao céu, e jogando para trás suas negras madeixas de corvo, ele exclamou amargas imprecações, com o sorriso hediondo de um demônio encarnado:

— Caso te afastes da promessa, agora feita, de ser minha, que as maldições de um Deus ofendido te persigam e te assombrem; agarrem-se à tua alma, para sempre, na tempestade e na bonança, no dia e na noite, na doença e na tristeza, na vida e na morte. Que os espíritos tenebrosos dos condenados ao Inferno uivem em teus ouvidos os coros malditos dos demônios, que o ar torture o teu peito com as chamas inextinguíveis do Inferno! Que a tua alma seja como o lazareto da corrupção, onde se venera o fantasma do prazer ausente, como num sepulcro onde o verme de cem cabeças nunca morre, onde o fogo nunca se apaga! Que o espírito do mal controle a tua mente e proclame a teu passo: ESTA É A ABANDONADA DE DEUS E DO HOMEM; que os espectros medonho te persigam à noite; que os teus mais queridos amigos desçam ao túmulo dia após dia, e te amaldiçoem em seu último suspiro! Que tudo o que há de mais hediondo na natureza humana, mais solene que a linguagem possa enquadrar ou os lábios possam proferir, que tudo isso, e mais do que isso, seja o teu legado eterno, caso venhas a violar o juramento que aqui me fizeste.

Mal ciente do que ela fazia, ele parou. A jovem, cheia de pavor, anuiu para com o abjeto juramento, e prometeu fidelidade eterna àquele que, desde então, seria o seu senhor.

— Os espíritos dos condenados agradecem a tua ajuda — gritou o estranho. — Cortejei bravamente a minha linda noiva. Ela é minha, minha para sempre. Sim, corpo e alma são meus, meus na vida e meus na morte. Por que choras, minha doçura, antes que tenha chegado a lua-de-mel? Por quê? Certamente, tens motivos para chorar; mas, em breve, quando nos encontrarmos novamente, deveremos assinar o nosso contrato nupcial.

Então ele imprimiu um beijo frio no rosto de sua jovem noiva e, abafando os horrores indescritíveis de seu semblante, ordenou-lhe que o encontrasse às oito horas daquela mesma noite na capela adjacente ao castelo Hernswolf. Ela virou-se para o estranho com um ardente suspiro, como se implorasse sua proteção, mas o cavalheiro já havia sumido.

Ao entrar no castelo, a jovem viu-se afetada pela mais profunda melancolia. Em vão, os seus parentes se esforçaram por descobrir a causa de sua angústia, mas o tremendo juramento que ela havia feito paralisou completamente suas faculdades, restando-lhe o medo de denunciar-se mesmo pela menor entonação de voz ou pela mínima alteração em seu semblante.

Finda a noite, todos retiraram-se ao descanso. Clotilda, todavia, não conseguindo dormir, dada a agitação do seu espírito, pediu para ficar sozinha na biblioteca contígua ao seu quarto.

Já era noite profunda e, há muito tempo, os servos haviam se recolhido ao repouso. O único som que se ouvia era o lamento sombrio do cão de guarda, uivando para a Lua. Clotilda permaneceu na biblioteca em atitude de profunda meditação.

A lâmpada, que ardia sobre a mesa junto à qual se sentara, fenecia, mergulhando o ambiente na semiescuridão. O relógio da extremidade setentrional do castelo bateu a meia-noite, e o som ecoou tristemente na solene quietude da noite.

De repente, a maçaneta da porta de carvalho, no outro extremo do cômodo, levantou-se suavemente, e uma figura pálida, vestida com roupas tumulares, avançou lentamente pela sala. Nenhum som antecipou sua aproximação, enquanto ela se movia com passos silenciosos em direção à mesa onde permanecia a jovem mulher. A princípio, a dama não a percebeu, até sentir uma mão, fria como a morte, agarrar rapidamente a sua. Então, ouviu uma voz solene murmurar em seu ouvido:

— Clotilda!

Ela ergueu os olhos. Uma sombria figura estava parada ao seu lado. Tentou gritar, mas sua voz não estava à altura do esforço necessário. Seu olhar fixou-se, como num passe de mágica, na maneira como ele lentamente retirava o pano que ocultava o seu rosto, revelando os olhos lívidos e a forma esquelética de seu pai. Ele, que parecia contemplá-la piedosamente, cheio de sentimentos, exclamou, com voz melancólica:

— Clotilda, as roupas e os criados estão prontos, o sino da igreja já tocou e o sacerdote está no altar... Mas onde está a noiva compromissada? Há um recanto para ela no sepulcro, e ela, amanhã, estará comigo.

— Amanhã? — hesitou a jovem, distraída.

— Os espíritos do inferno registraram tudo isto e amanhã o enlace deve ser cancelado.

A figura parou, retirou-se lentamente, e logo se perdeu na escuridão.

Chegou a manhã; veio a tarde. E quando o relógio da sala bateu oito horas, Clotilda estava a caminho da capela. Era uma noite escura. Massas espessas de nuvens sombrias navegavam no firmamento, e o rugido do vento ecoava horrivelmente entre as árvores da floresta. Ela chegou ao seu destino. Uma figura, que a aguardava, avançou. A dama vislumbrou as feições do estranho.

— Por quê...?

— Está tudo bem, noiva minha — exclamou ele com uma risada sardônica —, e vou recompensar o teu carinho. Segue-me.

Caminharam juntos, em silêncio, pelas naves ventosas da capela, até chegarem ao cemitério adjacente. Aqui pararam por um momento, e o estranho, em tom suave, disse-lhe:

— Só mais uma hora e a luta terminará. E mesmo este coração de malícia encarnada pode ter sentimentos quando um espírito tão jovem, tão puro, é consagrado ao túmulo. Mas deve, deve ser —continuou ele — como se a lembrança do amor passado invadisse a sua mente, porque o demônio, a quem obedeço, assim o desejou. Pobre menina, eu te conduzo às tuas núpcias, mas o sacerdote estará morto, seus pais serão os esqueletos decompostos que se desfazem em pilhas ao redor, e as testemunhas de nossa união serão os vermes preguiçosos que se regozijam nos ossos carcomidos dos defuntos. Vem, minha jovem noiva, o sacerdote está impaciente por sua vítima.

À medida que avançavam, uma tênue luz azul se movia rapidamente diante deles, revelando, nos confins do cemitério, os portais de uma cripta. Estava aberta e eles entraram em silêncio. O vento cavernoso precipitava-se pela lúgubre residência da morte, e por todos os lados os restos decompostos dos féretros se amontoavam, caindo pedaço por pedaço na umidade.

 

 


  

Cada passo que davam era por sobre um corpo morto, e os ossos esbranquiçados rangiam horrivelmente sob seus pés. No centro da abóbada erguia-se uma pilha de esqueletos insepultos, sobre os quais estava sentada uma figura tão hedionda que escapava à mais sombria das imaginações. À medida que dela se aproximavam, a abóboda oca ecoou uma gargalhada infernal, e cada cadáver em decomposição parecia dotado de uma vida profana.

O estranho fez uma pausa e, ao agarrar a sua vítima, um suspiro brotou de seu coração. Uma lágrima resplandeceu em seus olhos. Foi apenas por um instante, mas suficiente a que, diante daquela vacilação, a figura hedionda franzisse terrivelmente a testa e o convocasse com a mão descarnada.

O estranho avançou, fez certos círculos místicos no ar, articulou palavras misteriosas e parou, dominado pelo terror. De súbito, ele levantou a voz e exclamou descontroladamente:

— Noiva do espectro das trevas, alguns momentos ainda são teus, para que saibas a quem te entregaste. Sou o espírito imortal do miserável que amaldiçoou o seu Salvador na cruz. Ele me olhou na hora final de sua existência, e esse olhar ainda permanece, porque eu sou o ente mais amaldiçoado em toda a Terra. Estou eternamente condenado ao Inferno e devo satisfazer o paladar do meu mestre até que o mundo esteja ressequido como um pergaminho e os Céus e a Terra tenham perecido. Sou aquele sobre quem deves ter lido e de cujas façanhas ouviste falar. Um milhão de almas o meu mestre me condenou a capturar, e quando minha penitência estiver cumprida, poderei conhecer o repouso de uma sepultura. És milésima alma que eu condenei. Eu te vi em tua hora de pureza e imediatamente te assinalei para a minha vivenda. Eu matei o teu pai por sua ousadia e lhe permiti que a avisasse de teu destino. E eu mesmo fui seduzido por tua inocência. Ah! O feitiço trabalha briosamente, e logo tu o verás, minha querida, a quem acorrentaste o teu destino eterno. Enquanto as estações seguirem seu curso natural, enquanto os relâmpagos refulgirem e os trovões rugirem, a tua penitência será eterna. Olha para baixo e vê a que estás destinada.

Ela olhou. A abóbada esfacelou-se em mil direções, a terra se abriu em pedaços e ouviu-se o rugido de águas poderosas. Sob a jovem dama, um oceano vivo de magma cintilou no abismo e, misturando-se aos gritos dos condenados ao Inferno e aos uivos triunfantes dos demônios, o horror tornou-se inimaginável.

Dez milhões de almas contorciam-se nas chamas ardentes e — à medida que as ondas ferventes as atiravam violentamente contra as rochas rígidas e enegrecidas — lançavam maldições, em desesperadas blasfêmias. E cada maldição expelida ecoava como um trovão.

O estranho correu em direção à sua vítima. Por um momento, ele a segurou diante daquela visão flamejante. Olhando-lhe ternamente a face, o estranho soluçou como se fosse uma criança. Mas isto foi apenas um impulso momentâneo; agarrando-a novamente pelos braços — violentamente, cheio de fúria —, arremessou-a na borbulha. E, enquanto o olhar de despedida mesclava-se à bondade em seu rosto, ele vociferou:

— O crime não é meu, mas da religião que tu professas. Pois não é dito que há um fogo eterno preparado para as almas dos ímpios, e tu não sucumbiste aos teus tormentos?

Ela, a pobre menina, não o ouviu, não deu atenção aos gritos do blasfemador. Sua forma delicada saltava de rocha em rocha, sobre as ondas e sobre a espuma. Enquanto caía, o oceano esbatia-se, em triunfo, por receber a sua alma; e, enquanto ela afundava naquele poço ardente, dez mil vozes reverberavam do abismo incomensurável:

— Espírito do mal! Há, aqui, uma eternidade de tormentos para ti, pois cá o verme nunca morre e o fogo nunca se apaga!

 

Versão em português de Paulo Soriano.

Imagem da portada: PS/Copilot.

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