AMOR DIVINO - Conto Fantástico - Emilio Vilaró
Estive
muito apaixonado uma vez,
eu não
consegui viver menos
e não
pude fazê-la viver mais.
AMOR
DIVINO
Emilio
Vilaró
Tradução
de Paulo Soriano
— O Sr. é o Deus
que estuda a história do nosso Universo?
Virei-me
lentamente e um pouco surpreso. De uma pequena colina, contemplava um precioso
vale com o seu ondulante rio. Estava tão concentrado que não tinha reparado em
mais ninguém por ali.
Enquanto eu me
virava, ela prosseguiu:
— Espero não o
ter assustado! Sou a dona destes campos. Estava levando as vacas pelo outro lado
da colina quando o vi.
Enquanto
preparava a minha resposta, compreendi que eu me apaixonara por aquela mulher.
— Sim, o meu
nome é Destosa. Espero não a estar incomodando.
— Claro que não.
O senhor é bem-vindo. Mas eu não entendo o que o Sr. pode estudar sobre
história neste lugar.
— Pensei em
passar uns dias no campo. Neste preciso local, há muito tempo, iniciou-se a
arte e a técnica da escrita. É um fato que me apaixona como historiador. A
capacidade de escrever e de falar foi o que mais uniu e separou a humanidade. A
comunicação entre as pessoas é a conquista mais importante da nossa
civilização.
— É curioso que ninguém na aldeia tenha ouvido
falar deste importante acontecimento por aqui ocorrido.
Ela riu
maliciosamente. O meu argumento não estava no caminho certo, por isso...
preferi mudar de assunto.
—Sabe de algum
alojamento barato nas redondezas?
— Sim — repetiu, agora rindo descaradamente. —
Sei da sua reputação, mas aqui estamos habituados a pagar pelos serviços
prestados, já que não somos deuses.
Fiquei um tanto
irritado.
— Estou
habituado a pagar quando me pedem e quando não sou convidado. O meu salário de
Deus, financiado pelo Governo do Reino-Universal, apesar de ser razoável, não me
permite extravagâncias. E eu não vim aqui como Deus, mas como historiador.
— Comigo, o Sr.
não terá dificuldades — disse ela, rindo do meu sufoco. — Por aqui, somente eu
tenho uma estalagem, com dois quartos, um dos quais já está ocupado. Se estiver
interessado, pode usar o outro em troca de cortar lenha durante duas horas por
dia. Quatro, se quiser pensão completa.
— Fico com a pensão
completa — respondi.
— Venha comigo,
que eu lhe mostrarei o seu quarto, se quiser descansar. Não se preocupe com o seu
vizinho; ele é um viajante, usa-o para guardar as suas amostras e não vem
dormir todos os dias. O que é que o Sr. come?
— Como pouco,
mas provo as coisas típicas dos lugares para onde viajo. Não serei um peso.
— Sou uma boa cozinheira
e conheço alguns pratos típicos daqui e do lugar onde nasci.
* * *
Eu cortava lenha
durante um par de horas de manhã e outro par de horas à tarde. Passava os dias
sem querer esconder nada, nem dela nem dos vizinhos, que sorriam sempre que eu
passava. Dediquei-me a ajudá-la, ou melhor, a acompanhá-la na sua vida
quotidiana: ordenhar, alimentar as vacas e os animais do seu curral.
O que isto tem a
ver com o meu trabalho sobre a história do Universo? Bem, para mim, enquanto
estivesse com ela, muito.
No início,
tentei impressioná-la, contando-lhe as minhas viagens interestelares, as
revoluções das espirais verdes, as minhas escapadelas para o futuro, as visitas
a impérios longínquos e as amizades com sábios geniais.
Ela me
perguntava como havia dormido, o que queria fazer à tarde. Pedia-me para lhe
apanhar flores de manhã. Falava-me dos seus pontos de vista sobre a aldeia
vizinha e das notícias da região. E, se eu me tornasse demasiado impertinente,
pedia-me um balde de água do poço, apontando-me o dedo (para me fazer ir
embora).
Nunca me deixou
agir ou vangloriar-me de ser um Deus, e, com os seus amigos, nunca se referiu a
mim como um.
Somente uma vez ela
quis saber alguma coisa sobre o meu trabalho. Perguntou-me se era verdade aquilo
que ouvira: o nosso Universo havia nascido de uma Grande Explosão, de um
"Big Bang", dito em outro idioma. Fui apanhado tão desprevenido, tão
fora de jogo, que lhe disse, movendo e agitando dois dedos, que sim, mas que,
para ser mais preciso, tinha sido bem mais como um "bang, bang, bang,
bang, bang...", gerado pelo ato de amor dos pais deste Universo ao
engendrá-lo. O nosso Universo, como todos sabemos, é um ser humano muito grande
e em crescimento. E nós vivemos dos elétrons dos seus átomos. Ela não deve ter
gostado da resposta, já que não falou comigo durante uma semana.
***
O que mais me
aprazia era acompanhá-la até o prado alto (o local onde nos conhecemos), quando
ela levava as suas três vacas pela manhã.
Bem, na verdade,
duas, pois a mais velha permanecia no terreno mais abaixo. Quando nos
afastávamos, ela berrava para que não a deixássemos sozinha; depois, seguia-nos
até que a inclinação se tornasse excessiva às suas energias. Depois, começava a
comer na parte mais plana da encosta. Continuamos a nossa subida até os campos
superiores, onde a relva é mais fresca, mais alta e mais abundante.
Recusou-se a
casar comigo, não precisava daquilo.
— No dia em que te cansares de mim, podes ir
embora, mas te peço que não me faças de tola.
O mais
surpreendente de nossa relação era a relação em si mesma; ela me queria não como
aquilo que eu sou — um Deus —, mas como um ser humano qualquer. Durante muito
tempo, deixei de apreciar os seres humanos como indivíduos; eu só me
interessava por eles como coletivo (o que tinham conseguido com a sua união e
organização era admirável). Por isso, mudei de mentalidade quando vi que,
individualmente, como parte desse todo, nem mesmo eram maus. Também abdiquei do
uso de meus poderes: por um lado, porque ela não se interessava por eles e, por
outro, porque não me serviam de nada, nem impressionavam a ninguém.
A verdade é que
eu estava tão apaixonado por ela, pelos pequenos e encantadores modos com os
quais lidava comigo e com os outros, que compreendi que devia apequenar-me para
pôr-me ao seu nível natural, para apreciá-la e sentir-me cômodo com ela e com
os seus companheiros. Consegui.
* * *
Já tínhamos sete
vacas e cinco novilhos. Quando necessário, um vizinho proporcionava-nos um
touro.
***
Muita gente nos
visitava. Alguns eram amigos seus ou vizinhos do povoado; outros vinham
adquirir os seus produtos: ovos, leite e um queijo muito forte, que ela mesma
fazia, mas do qual eu não gostava. Ou chegavam curiosos, querendo ver como
conviviam um historiador-deus e uma humana. Assim, quase sem querer, aprendi
muito sobre o elemento humano individual, embora este jamais tenha sido o
fundamento de meu estudo. Mas, a partir desta relação, sempre dele desfrutei.
Creio que o meu
maior sucesso consistiu em que todas as pessoas do vilarejo deixaram de me ver
como um deus. Pediam favores como o fariam a qualquer vizinho. Por vezes, eu me
surpreendia com o fato de que eles pudessem supor que eu sabia consertar uma bomba
d’água ou trocar a roda de um trator.
Mas eu tentava.
***
Um dia, ela me
disse que iríamos a uma festa da aldeia. Durante um bom tempo, estivemos
sentados em uma das mesas que alugáramos com um grupo de amigos para o evento.
Nunca a tinha visto com tal mau-humor como naquela noite. Tudo se resolveu
quando uma de suas amigas me sussurrou, dizendo-me que ela estava esperando (e
todos os demais presentes) que eu a tirasse para dançar. Pedi a honra e obtive
o que todos desejavam... o desastre. Como é possível dançar tão mal, quantos
risos dela, do público e meus... Por deus (com letra minúscula), que desastre!
Bem, no fim da festa eu bailava um pouco melhor, até dancei com uma de suas
amigas, que me pediu a honra.
Que noite
maravilhosa, como eu a amo, que caminhada deliciosa de regresso à sua pousada.
***
Ela nunca me
disse nada quanto aos gastos domésticos. De vez em quando, eu me
responsabilizava pela despesa de algum reparo custoso, ou pela compra de algum
animal a ser incorporado ao nosso rebanho, já que isto se fazia necessário
devido ao incremento das vendas. Tendo em vista que a maior parte no aumento de
negócios devia-se à minha presença, os gastos ficavam, assim, equilibrados. É
assim que eu sou! Um pouco atrevido. E sim... nós deuses também vamos ao banco,
depositamos o que ganhamos e eles nos pagam alguns poucos juros.
****
Nosso rebanho já
era de doze vacas e sete novilhos. Nunca tivemos filhos, ela jamais os quis.
Não queria criar-me uma obrigação. Dizia que, se os tivéssemos, eu estaria
preso àquele lugar por toda a minha vida e até depois de sua própria morte, já
que, por não morrer, eu me sentiria obrigar a cuidar dos filhos, netos,
bisnetos e tataranetos.
***
Um dia, fui
visitar um amigo, um deus que se dedica a curar os doentes — sim, esse
maravilhoso ser que tem uma imensa e infinita fila de pacientes que se forma
diante de sua casa e que não tem fim. Quando me viu, convidou-me à sua breve
refeição.
Ao final, não me
atrevi, não ousei perguntar-lhe ou pedir-lhe se sabia, como médico, se havia
alguma possibilidade de estender a vida dela, para prolongar a minha
felicidade. Ou que as horas se passassem mais lentamente, que os dias se
pudessem repetir. Que o Sol não se pusesse, ou nunca houvesse um amanhecer.
Ele devia saber
o motivo de minha viagem, nada me disse, mas se despediu com um “desfruta do
que tu tens; de toda a história deste nosso Universo, estes momentos são o que
de melhor irás recordar”. Despedi-me e lhe deixei um par de queijos, embora não
lhe tenha dito que deles eu não gostava.
Ao sair,
contemplei a comprida fila que ansiosamente o esperava; depois, voltei-me para
olhá-Lo.
Ele sorriu.
— O próximo! —
disse ele.
***
Nossas vacas já
eram um pequeno rebanho e continuávamos a subi-las, quase todos os dias, ao
monte alto.
Um dia, ela me
perguntou se eu me recordava do mais precioso momento de nosso relacionamento.
Eu garanti a ela
(é claro) que, para mim, eram todos.
Disse-me que,
para ela, fora o segundo dia, quando a acompanhei, pela primeira vez, no
passeio com as vacas. Ela pusera a mão nas costas de uma delas; eu pus a minha
ao lado da sua e a toquei, suavemente, com um dedo. Percebendo o toque, ela
retirou a mão e a pôs sobre outra parte da vaca, mas eu já tinha para lá levado
a minha (é uma vantagem para um deus saber de tudo), e, desta vez, ela não
retirou a sua.
***
Eu conhecia
alguns deuses que haviam compartilhado a sua vida com humanos, e mesmo deixado
descendentes. Não quis visitá-los para aconselhar-me ou para ver como as coisas
lhe tinham corrido. Achei que, como não poderia ser mais feliz do que já era,
não precisava mais daquilo.
***
Ela me pediu que
a levasse ao prado alto, onde nos conhecemos: queria morrer ali.
Construí uma
espécie de alpendre para nos proteger um pouco do vento e do frio enquanto estivéssemos
lá.
Muitas vacas nos
acompanharam. Um dia, ao pôr do Sol, ela fechou os olhos e, assim, encerrou a
fase mais feliz da minha vida.
Nunca pensei que
partir daquela maneira pudesse ser tão belo. Finalmente compreendi o valor de
todo o processo de nascer, viver e morrer.
Eu
estive apaixonado uma vez.
Sim, ela
conseguiu cativar-me,
mas não
me foi possível
que ela
me pudesse seguir.
Imagem: Geralt/Pixabay
Este conto foi publicado
originariamente, em português e espanhol, na revista Relatos Fantásticos.
Para acessá-la, clique AQUI.
Amei. Muito lindo.
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