ERRO - Conto de Ficção Científca - Belén Fernández Crespo

 


ERRO

Belén Fernández Crespo

Tradução de Paulo Soriano

 

Os artefatos encontrados causaram uma enorme agitação.

A imprensa, agitada, reunia-se à frente da escavação arqueológica, tentando ludibriar o cordão policial para tirar fotografias do achado.

A descoberta ocorrera fortuitamente, quando começaram as obras de abertura das fundações de um arranha-céu. A “cápsula”, como era popularmente chamada, uma construção votiva semiesférica, havia sido enterrada a sete metros abaixo da atual cidade ao longo de milênios. O radar geológico indicou que continha um objeto, preservado graças às imbatíveis condições de temperatura e umidade da construção.

Randi Sanders, a renomada arqueóloga, estava no local supervisionando os trabalhos de escavação: tentavam traspassar a porta de acesso à construção, mas sem destruí-la. Eles usavam um nanocabo dotado não apenas de sofisticados sistemas de detecção, senão igualmente, de um transmissor de vídeo e áudio que enviava as imagens gravadas para o posto de comando. A engenhoca rastejava como um verme através de uma abertura milimétrica feita na passagem de pedra. 

Os pesquisadores prenderam a respiração.

Demorou alguns segundos para a nanocâmera neutralizar a escuridão da cabine com sua câmera de visão noturna... Os cientistas exalaram uma exclamação. Diante de seus olhos assomava a mais importante descoberta da história da Humanidade.

Recebiam as imagens do que parecia ser uma estátua que, ao contrário do que se esperava, não era feita de pedra, mas de um estranho material translúcido. Não demorou muito para perceberem que se tratava, na verdade, de um dispositivo mecânico.

Impossível.

Datou-se em três milhões de anos a esférica construção, o que coincidia com o aparecimento do Homem no planeta. Ou cometeram um erro de cálculo ou foram vítimas de uma piada cruel.

Era imprescindível estudar o achado.

Depois de inúmeras horas de esforço para não danificar a construção, os técnicos conseguiram deslizar a porta o suficiente para abrir uma fresta que lhes permitisse chegar ao habitáculo. Randi se equipou com uma cinta, um capacete com lanterna e um walkie-talkie. Realizaria uma avaliação do achado com o fim de comprovar a sua autenticidade. A depender das conclusões alcançadas, a obra seria paralisada ou a peça arqueológica seria extraída.

A arqueóloga esgueirou-se, como um alpinista em descenso, pelo estreito conduto que descia até a cápsula. As paredes desprendiam um intenso olor de umidade. A cada salto, a luz de seu capacete tremeluzia sobre o poço escuro, que, para Randi, parecia uma mandíbula pronta a devorá-la. Depois de pousar os pés no leito de terra, a arqueóloga se despojou da cinta. Ergueu a cabeça e iluminou a “cápsula”. A equipe mal havia desenterrado a entrada da câmara, uma massa esférica de pedra, na qual se embutia uma porta decorada com intrigantes sinais gráficos... O resto da construção ainda permanecia enterrado nas areias do tempo. Randi se perguntou que aspecto teria. Antes de entrar, colocou a máscara e as luvas que guardava no bolso direito da calça: tinha que proteger o conteúdo do prédio de qualquer tipo de contaminação.

—Cheguei ao fundo... câmbio — informou pelo walkie-talkie pendurado à cintura.

— Estamos no aguardo... câmbio e desligo — respondeu uma voz da sala de comando.

Randi teve de pôr-se de lado, encolher os ombros e inclinar a cabeça para introduzir-se através da estreita abertura que haviam obtido empurrando a pesadíssima pedra.

Dentro do habitáculo, elevava-se um estranho cheiro empoeirado.

O fecho de luz do capacete de Randi perfurava a terrível escuridão da câmara. Eximia como as partículas de pó espalhavam-se pelo espaço, entre as paredes abauladas que formavam a meia esfera. No centro exato do habitáculo, a figura que haviam tomado por uma engenhoca. Media aproximadamente um metro de altura e não pesaria mais que vinte quilos. Tinha aspecto humanoide. Dotava-o um par de olhos exageradamente grandes. A abertura, que Randi supunha tratar-se de uma boca, era uma fina linha negra. Sua pele, que deixava entrever um feixe de fiação, que percorria o tronco e as extremidades, parecia extremamente dúctil. Randi pousou cuidadosamente seu dedo indicador sobre um dos “braços”...  O toque transmitiu à arqueóloga a sensação de turgência vegetal. Deu a volta em torno do humanoide, procurando qualquer detalhe que pudesse dar-lhe uma pista.

Justamente sob a nuca havia uma pequena ranhura USB.

Estava tudo acabado. Sua promissora descoberta convolara-se repentinamente num artefato paracientífico objeto de adoração dos defensores da teoria de que o planeta havia sido colonizado por alienígenas ancestrais. Randi seria a chacota da comunidade arqueológica... Suspirou. Perguntava-se quem teria se dado ao trabalho de montar aquele circo. No entanto, não deveria adiantar os acontecimentos. O humanoide haveria de ser minuciosamente estudado para verificar-se se não seria uma grosseira falsificação. Solicitou, pelo walkie-talkie, a presença de um perito em Informática.

Passados uns minutos, um adolescente magricela e sua mochila de náilon negro deslizaram pela abertura da porta. Randi ergueu as sobrancelhas dubitativamente... Tentava não julgar as pessoas pela aparência, mas não pôde deixar de pensar que aquele garoto deveria estar em sua escola secundária, em vez de perder tempo.

—Eu sou Ike — disse ele, apertando sua mão de maneira profissional.

— Randy.

— Eu já sabia — ele sorriu sarcasticamente.

—Pode me chamar de louca, mas este artefato tem uma entrada USB justamente na nuca — exortou Randi.

O adolescente não vacilou. Com a ajuda de uma lanterna, inspecionou o artefato durante alguns minutos.

— Eu nunca havia visto esta espécie de robô — afirmou.

— Robô? Então, tudo isso foi uma burla...

—Não creio que tenha sido fabricado por ninguém deste planeta. Tem músculos artificiais que lhe permitem contorcer-se e adaptar-se melhor ao ambiente ao se movimentar ou realizar qualquer tipo de tarefa — afirmou.

— Randi guardou o silêncio durante alguns segundos.

—Você pode extrair algum tipo de informação através da entrada de USB — perguntou.

— Posso tentar ligá-lo.

—Ligá-lo? Rand não acreditava no que estava ouvindo.

— Isto mesmo — respondeu Ike, enquanto manipulava a nuca do robô.

A arqueóloga duvidava que o técnico, por melhor que fosse, conseguisse ligar um robô que, supostamente, ali estivera por milhões de ano. Não entendia como a simples ideia de aquilo funcionar não parecia absurda ao garoto. Talvez o humanoide tivesse alguma bateria de sobra. Randi conteve uma risada. Estava começando a achar aquela situação hilária.

Com um suave zumbido, o androide abriu seus brilhantes olhos negros.

Parecia estar prestes a mover-se ou falar. A fiação sob a pele emitia uma suave luz. Impresso sob os globos oculares, aparecia uma mensagem: “error2k38.Timeout”.

Este foi o auge da gozação.

—O fato de estar escrito em nosso idioma mostra que fomos enganados — bufou a irritada Randi.

— Acredite em mim quando lhe digo que isto não é nenhuma falsificação — respondeu Ike. — Repito que é impossível que alguém, neste planeta, tenha fabricado este robô... Porém, por estranho que pareça, estou familiarizado com este código de erro e creio que posso facilmente resolvê-lo. O contador temporal de 32 bits desbordou. Ou seja, ficou sem segundos a mais para somar e alcançou um valor negativo, o que faz com processe os dados incorretamente. Tenho que migrá-lo cuidadosamente para 64 bits para não sobrecarregar os arquivos.

Pelo menos aquele garoto parecia saber o que estava fazendo... Randi não estava certa de que ele era um gênio da Informática ou um maluco. Enquanto o adolescente trabalhava no robô com um cabo e um periférico que tirara da mochila, a arqueóloga estudava as paredes do habitáculo. À medida que as examinava com sua lanterna, surgiam alguns desenhos estranhos, que Randi interpretava como animais quiméricos, situados em continentes e mares estranhos. Será que teriam encontrado o reduto de uma civilização perdida? Seria o humanoide um ser de outro planeta? Impossível! Certamente, no momento mais inesperado, apareceriam algumas câmeras de televisão gritando: “Tolinha!”.

—Quando levarmos o robô para a sede, eu poderei obter mais informações. Preciso de tempo para estudar essa tecnologia... Porém, consegui acessar uma pasta de vídeos.

Randi não podia acreditar no que estava ouvindo. Certamente, aquele seria o momento em se desvelaria que tudo havia sido uma brincadeira e lhe seria entregue um buquê de flores. Randi estava furiosa, pois abandonara os seus demais projetos de pesquisa por uma semana inteira... Contudo, teria que encarar a situação com humor. A raiva não funcionava bem diante das câmeras.

O expert em Informática utilizou os olhos do robô para projetar um filme holográfico que mostrava um planeta devastado pela poluição e pela exploração excessiva de seus recursos. Narrava como, para salvar a sua raça da extinção, milhões de embriões foram enviados para um exoplaneta habitável, situado a quatro anos-luz de distância, utilizando uma nave espacial alimentada por velas de fótons. Assim que a nave chegou a Exo1, o planeta que Randi e Ike habitavam, o robô humanoide ficou encarregado de germinar os embriões e criar os espécimes.

Quando Ike clicou em um dos ícones que apareciam na tela holográfica, um detalhado mapa do DNA humano foi exibido junto com as coordenadas que localizavam a Terra, seu planeta de origem, no cosmos... A vida em Exo1 não havia surgido de acordo com um processo milagroso e inexplicável! A espécie humana que o habitava provinha de outro lugar do universo!

O final da história era detalhado nos afrescos que adornavam as paredes da cápsula. Quando o humanoide ficou completamente avariado, os nômades espaciais erigiram aquela construção votiva em honra do único ponto de união com a sua cultura, seu passado e seu planeta de origem. Aquele robô fora o único pai que conheceram.

Os teóricos dos alienígenas ancestrais sempre tiveram razão.

 

Este conto foi publicado originariamente, em português e espanhol, na revista Relatos Fantásticos. Para acessá-la, clique AQUI.

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