O ALQUIMISTA - Narrativa Clássica Sobrenatural - Pu Songling


 

O ALQUIMISTA

Pu Songling

(1640 - 1715)

 

Certa feita, em Ch'ang-ngan, o erudito Chia Tzŭ-lung viu um desconhecido que lhe pareceu muito cortês. Perguntando sobre ele, soube que se tratava de um certo Sr. Chen, recentemente instalado naquela cidade.

No dia seguinte, Chia procurou-o, mas não o viu; por acaso, o Sr. Chen estava ausente naquele momento. Deixou-lhe, contudo, o seu cartão de visitas. Por três vezes, sucedeu-se o mesmo incidente.

Por fim, Chia contratou alguém para vigiar a casa e avisá-lo quando o Sr. Chen lá estivesse. No entanto, mesmo assim, o Sr. Chen não apareceu para recebê-lo. Chia, então, teve que entrar por si mesmo.

Os dois homens começaram a conversar e logo ficaram mutuamente encantados.  Ao longo do encontro, Chia enviou um criado para trazer-lhes vinho de uma venda vizinha.

O Sr. Chen provou ser um companheiro agradável e, quando a bebida estava quase acabando, foi até uma caixa e dela tirou algumas taças e um grande vaso de jade, no qual ele derramou uma única taça de vinho. De repente, aquele vaso estava cheio até a borda!

Os homens serviram-se do vaso; mas, por mais que o entornassem, o conteúdo nunca parecia diminuir. Surpreso, Chia implorou ao Sr. Chen que lhe contasse como aquilo era possível.

— Ah —respondeu o Sr. Chen —, tentei evitá-lo apenas por causa de seu único defeito:  a avareza. A arte que pratico é um segredo somente conhecido pelos Imortais: como posso participar-lhe tal arte?

— O senhor não procede corretamente ao atribuir-me a avareza — respondeu Chia.  — Os avarentos, na verdade, são sempre pobres-diabos.

O senhor Chên riu e os homens se despediram. Mas, desde então, estiveram constantemente juntos, e, entre eles, toda cerimônia foi deixada de lado.

Sempre que Chia precisava de dinheiro, o Sr. Chen trazia uma pedra preta e, murmurando umas palavras mágicas, esfregava-a numa telha ou num tijolo, que, imediatamente, transformava-se em prata, que era dada a Chia, justamente no montante que ele realmente precisava. E, se Chia pedisse mais, o Sr. Chen invocava o tema da avareza.

Finalmente, Chia resolveu apossar-se daquela pedra. Certa feita, quando o Sr. Chen dormia, curando-se de uma bebedeira, Chia cuidou de furtar a pedra de suas roupas.

Chen, contudo, percebeu imediatamente aquele furto, e declarou que, a partir de então, ele e Chia não poderiam ser mais amigos. No dia seguinte, Chen abandonou definitivamente aquele lugar.

 

 


 

Cerca de um ano depois, Chia vagava pela margem do rio, quando viu uma bela pedra, maravilhosamente parecida com aquela que estava em posse de Senhor Chen. Tomou-a prontamente e a levou para casa. Alguns dias se passaram e, de repente, o Sr. Chen apresentou-se em sua casa, explicando-lhe que a pedra em questão — que lhe fora ofertada, há muitos anos, por um sacerdote taoísta, a quem ele seguira como discípulo — tinha o poder de transformar qualquer coisa em ouro.

— Infelizmente — acrescentou ele —, fiquei embriagado e a perdi. Mas, com o emprego das artes divinatórias, soube onde estava a pedra. Se você me devolver a preciosidade, terei o cuidado de retribuir sua gentileza.

— Você previu corretamente — respondeu Chia. — A pedra está comigo. Mas lembre-se, por favor, de que o indigente Kuan Chung compartilhou a riqueza de seu amigo Pao Shu[1].

A essa insinuação, o Sr. Chen disse que daria a Chia cem onças de prata; ao que este último respondeu que aquela era uma oferta justa, mas que preferiria que o Sr. Chên lhe ensinasse a fórmula oral que empregava quando esfregava a pedra em qualquer coisa, prometendo-lhe experimentá-la apenas uma vez.

O Sr. Chen receava satisfazer àquele desejo.

— Você é um Imortal — gritou-lhe Chia. — E deve saber muito bem que eu nunca enganaria um amigo.

Desta maneira, Chia convenceu o Sr. Chen a ensinar-lhe as palavras mágicas.

Chia teria tentado executar a magia sobre o imenso bloco de pedra, que estava por perto, se o Sr. Chen não lhe tivesse agarrado o braço e implorado para que ele não fizesse nada tão ultrajante.

Chia tomou, então, meio tijolo e colocou-o na tábua de lavar, dizendo ao Sr. Chen:

— Esse pedacinho não é demais, não é mesmo?

Assim, o Sr. Chen afrouxou o seu controle e deixou Chia prosseguir.

Chia ignorou prontamente o meio tijolo e esfregou rapidamente a pedra na tábua de lavar.

O Sr. Chen ficou pálido ao vê-lo fazer aquilo. Correu para tomar-lhe a pedra. Mas era tarde demais: a tábua de lavar já era uma massa sólida de ouro, e Chia devolveu-lhe calmamente a pedra.

— Ai de mim! ai de mim! — gritou o Sr. Chen, desesperado. — O que fazer agora? Por ter conferido, de forma irregular, riqueza a um mortal, o Céu certamente me punirá. Oh, se quer me salvar, doe aos pobres cem caixões[2] e cem ternos usados!

— Meu amigo — respondeu Chia —, o meu objetivo, ao arranjar dinheiro, não era o de acumulá-lo como um avarento.

O Sr. Chen ficou encantado com isso. E, durante os três anos seguintes, Chia dedicou-se ao comércio, tendo o cuidado de cumprir rigorosamente a promessa feita ao Sr. Chen.

Decorrido este período, o próprio Sr. Chen reapareceu e, segurando a mão de Chia, disse-lhe:

—Digno e nobre amigo, quando nos separamos pela última vez, o Espírito da Felicidade me acusou diante de Deus[3], e o meu nome foi apagado da lista dos anjos. Mas, agora que você atendeu ao meu pedido, aquela sentença foi revogada. Continue como começou, sem parar.

 Chia perguntou ao Sr. Chen que cargo ele ocupava no Céu; ao que este respondeu que era apenas uma raposa que, por uma vida sem pecado, tinha finalmente alcançado aquela clara percepção da Verdade que leva à imortalidade.

Trouxeram, então, o vinho. Os dois amigos divertiram-se como antigamente. E mesmo quando Chia já tinha ultrapassado a idade de noventa anos, aquela raposa continuava a visitá-lo ocasionalmente.

 

Versão em português de Paulo Soriano, a partir da tradução inglesa de Hebert Giles (1845 – 1935).

 



[1] Kuan Chung e Pao Shu eram amigos exemplares chineses. Eram dois estadistas de considerável habilidade, que floresceram no século VII a.C. (Nota do Tradutor original.)

[2] Fornecer caixões a pessoas pobres sempre foi considerado um ato de mérito transcendente. O tornado em Cantão, em abril de 1878, no qual se perderam vários milhares de vidas, proporcionou uma oportunidade admirável para o exercício dessa modalidade de caridade — uma oportunidade que foi largamente aproveitada pela gente benevolente.  (Nota do Tradutor original.)

[3] Por usurpar sua prerrogativa, ao permitir que Chia obtivesse riqueza não autorizada. (Nota do Tradutor original.)

 

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