O BACILO ROUBADO - Conto Clássico de Ficção Científica - H. G. Wells


 

O BACILO ROUBADO

H. G. Wells

(1866 – 1946)

Tradução de autor anônimo do séc. XX.

 

— Isto — disse o bacteriologista, deslizando uma lâmina de placa de vidro sob o microscópio — é outro preparado do célebre bacilo do cólera.

O pálido visitante curvou-se curiosamente para o instrumento. Evidentemente, não estava habituado a essas coisas. Tapou o olho, que ficava livre, com a mão branca.

— Não estou vendo quase nada — disse.

— Torça o parafuso — replicou o bacteriologista. — Sem dúvida, o microscópio não está graduado para os seus olhos. A vista das pessoas varia muito. Menos uma volta para um lado ou para outro e...

— Ah, agora vejo! — exclamou o outro. — Não há muito o que se ver, afinal. Pequenos filamentos, risquinhos róseos... E esses pequenos animais, esses simples átomos, no entanto, podem multiplicar-se e devastar uma grande cidade! É pavoroso!

Ergueu-se e, retirando a lâmina do instrumento, segurou-a entre os dedos, olhando-a, voltado para a janela.

— Mal se distingue alguma coisa — falou, examinando a cultura.

Hesitou. Depois disse:

— Os bacilos estão vivos? São perigosos neste estado?

— Não, estes foram mortos e pigmentados — respondeu o bacteriologista. — Gostaria muito se pudéssemos pigmentar e matar todos os que existem.

— Penso — continuou o homem do rosto pálido — que vocês preferem não ter ao redor essas bactérias vivas, ou no seu período de inocuidade.

— Não, pelo contrário, somos obrigados a tê-las bem vivas. Olhe, por exemplo...

Atravessou a sala e apanhou entre outras uma ampola lacrada.

— Aqui está o bacilo vivo. É uma cultura das bactérias da epidemia ora reinante... Cólera engarrafado, na verdade.

Uma imperceptível chama de satisfação iluminou rapidamente o rosto do desconhecido.

— É o mesmo que ter em seu poder um veneno mortal — disse, devorando com os olhos o pequeno tubo.

O bacteriologista notou em seu semblante uma expressão de maldosa alegria. Recebera esse homem com uma carta de apresentação de velho amigo e ele o interessava pelas suas atitudes, a que não estava habituado. Seus cabelos negros e lisos, seus olhos cinzentos e profundos, seu ar distraído, seus gestos nervosos, a atenção intermitente e febril, tudo dele fazia um personagem bem diverso dos impassíveis homens de ciência, em cujas discussões estava continuamente envolvido. Era natural, diante de um visitante visivelmente impressionado pela virulência do bacilo, dramatizar um pouco as coisas.

Tomou o tubo com ar pensativo.

— Sim, a praga está bem presa aqui. Quebre um pequenino recipiente destes num reservatório de água potável. Diga a essas minúsculas partículas de vida — tão sutis que, para distingui-las, somos obrigados a examiná-las com os mais poderosos instrumentos —, diga aos bacilos: vão em frente, cresçam e se multipliquem e encham os reservatórios d’água. Então a morte — a morte misteriosa, impalpável, rápida e repelente — seria atirada sobre a cidade, procurando vítimas por toda parte. Aqui, tomaria o marido à esposa, ou o filho à mãe. Ali, roubaria o estadista ao seu dever e o operário à sua oficina. Seguiria pelos encanamentos de água, deslizando ao longo das ruas, escolhendo e punindo esta ou aquela casa onde não fervem o líquido potável, contaminando a salada que se lava, dormindo num pedaço de gelo. Esperaria, prestes a ser bebida pelos cavalos nos tanques e pelas crianças imprudentes nos chafarizes públicos. Ela se infiltraria na terra para reaparecer nas fontes, nos poços, em mil lugares imprevistos. Dê-lhe como ponto de partida uma caixa de água e, antes que a possamos prender e encadear, o bacilo terá dizimado a cidade.

O bacteriologista parou bruscamente.

Bem lhe diziam que a retórica era a sua fraqueza.

— Mas o flagelo, aqui, está bem guardado. Completamente seguro.

O estranho de rosto pálido aquiesceu com a cabeça. Seus olhos brilharam. Tossiu.

— Esses miseráveis anarquistas — disse — são imbecis e cretinos servindo-se de bombas, quando têm essas coisas ao seu alcance. Imagino...

Bateram à porta com a ponta dos dedos. O bacteriologista foi abrir.

— Um minutinho, meu amigo, um minutinho — ciciou sua mulher.

Quando reentrou no laboratório, o visitante olhava o relógio.

— Eu não fazia ideia de que eu o fiz perder uma hora de seu tempo. São doze para as quatro e eu deveria ter partido às três e meia. Mas o que o senhor me mostrou é realmente muito interessante... Não... Positivamente, não posso ficar mais nem mais um minuto. Tenho um encontro marcado para as quatro horas.

E saiu, renovando seus agradecimentos. O bacteriologista, após tê-lo acompanhado até a porta, voltou pensativo pelo corredor ao laboratório. Refletia sobre as características étnicas do seu visitante. Certamente, esse homem não tinha o tipo saxão, nem o latino comum.

— De qualquer forma — disse o bacteriologista a si mesmo —, ele me causa receio. Como ele gostou dessas culturas de germes patogênicos!

Então, uma ideia perturbadora lhe veio ao espírito. Voltou à mesinha fixada perto da estufa; depois, depressa, à mesa de trabalho. Mergulhou as mãos nos bolsos e, de repente, precipitou-se para a porta.

— Talvez eu o tenha deixado na mesa do vestíbulo... Minnie! — gritou roucamente, na antecâmara.

— Pronto, querido! — respondeu uma voz afastada.

— Eu não tinha algo na mão, quando lhe falei há pouco, querida?

 Silencio.

— Não. Nada, que eu me lembre...

— Maldição! — explodiu o bacteriologista.

Incontinente, correu à porta da rua e desceu os degraus da escada como doido.

Minnie, ouvindo a porta bater violentamente, precipitou-se muito inquieta para a janela. Ao longe, na rua, um homem magro entrava num coche. O bacteriologista, sem chapéu, de chinelos de feltro, corria na direção dele, gesticulando loucamente. Perdeu até uma sandália, sem parar.

— Enlouqueceu — pensou Minnie. — Foi a sua abominável ciência!...

Abrindo a janela, ia chamá-lo. De repente, o homem magro pareceu atingido, olhando em volta de si, pela mesma desordem mental. Com gesto breve, apontou com o dedo o bacteriologista, disse qualquer coisa ao cocheiro, a capota do cabriolé fechou-se, o chicote estalou, saiu chispas das ferraduras do cavalo e, num ápice, o cientista e o cabriolé perderam-se de vista, para além da esquina.

Minnie ficou um minuto curvada para fora da janela. Depois, recolheu a cabeça, assombrada.

— Ele é realmente um excêntrico — pensava, enquanto voltava para o quarto. — Porém, correr pelas ruas de Londres, em plena estação elegante, de chinelos!

Teve uma boa ideia. Em dois momentos, pôs o seu chapéu, apanhou os sapatos do marido, foi ao vestíbulo tomar o sobretudo e o chapéu do cientista, saiu e chamou um táxi, que, felizmente, passava.

— Leve-me até o fim da rua e dobre à esquerda do Havelock Crescent. Vamos procurar um senhor que corre, sem chapéu, com um casaco de veludo.

— Casaco de veludo e sem chapéu, muito bem, minha senhora.

O cocheiro tocou o cavalo e partiu rapidamente, como se diariamente levasse gente a semelhante endereço. Alguns minutos mais tarde, cocheiros e desocupados, reunidos ao redor do ponto de parada de Havrstock Hill, ficaram surpresos quando viram passar um cabriolé puxado por um magro alazão, em desabalada carreira. Calaram-se à sua aproximação e, depois que se afastou, o gordo pai Tootles perguntou:

— É Harry Hicks. Que bicho o mordeu?

— Ah, ele está caprichando no chicote! Sim, está indo fundo no açoite — interveio o moço de estrabaria.

— Uau! — disse o pobre velho Tommy Byles. — Temos aqui um outro perfeito lunático passando.

— É o velho George — disse o pai Tootles. — E está correndo como um lunático, como você disse. Só falta voar fora do cabriolé. Acho que vai no encalço de Hary Hicks.

O grupo em redor do refúgio dos cocheiros agitou-se.

— Vamos, George! É uma corrida. Estale este chicote!

— Essa égua é mesmo uma corredora! — exclamou o cavalariço.

— Ah, raios me partam! — gritou o velho Tootles. — Aí vem outro maluco! Será que todos os cocheiros de Hampstead enlouqueceram esta manhã?...

— Desta vez é uma senhora — fez notar o cavalariço.

— Está seguindo o marido — disse o pai Tootles. — Ordinariamente, acontece o contrário.

— O que tem ela na mão?

— Parece uma cartola.

— Que comedia será essa? Aposto três contra um que o velho George ganha a disputa — disse o rapaz de estrebaria. — Lá vem ela!

Minnie passou no meio de uma tempestade de aplausos. Porém, não gostou. Tinha consciência de cumprir seu dever e continuou a descer por Haverstock Hil e pela grande rua de Camder Town, com os olhos sempre fixos nas costas agitadas do velho George, que lhe raptava daquela insólita maneira seu marido louco.

O homem da primeira carruagem se encolhera a um canto, de braços cruzados, segurando preciosamente na mão o pequeno tubo que continha tão poderosos germes de destruição. Seu estado de espírito era um misto singular de medo e exultação. Tinha medo sobretudo de ser capturado antes de cumprir o seu objetivo. Todavia, no fundo, sentia um vago, conquanto considerável, medo da enormidade de seu crime. A exultação era maior que o pavor. Nenhum anarquista, antes dele, tivera ideia comparável à sua. Ravachol[1], Vailant[2], todos os personagens distintos, cuja gloria às vezes invejava, eram uns pobres coitados diante dele. Bastava-lhe achar um reservatório de água e nele lançar o conteúdo do pequeno tubo. Com que habilidade combinara seu plano, fabricara a carta de apresentação, penetrara no laboratório! Com que ousadia aproveitara a oportunidade! Enfim, o mundo ouviria falar dele! A morte! A morte! A morte! Ah! Sempre o haviam tratado como homem de bem pouca importância. O mundo inteiro conspirava para abafá-lo. Agora ensinaria o que é isolar um homem. Que rua era aquela? Conhecia-a bem. Era, sem dúvida, a grande Rua de Santo André! Onde estavam os perseguidores? Pôs a cabeça fora do carro: o bacteriologista vinha apenas a 50 metros atrás. Mau negócio! Ia ser preso e os seus projetos estariam frustrados!

Procurou dinheiro no bolso: só achou meio soberano[3]. Pela escotilha do cabriolé, mostrou-o ao cocheiro:

— E mais outros — gritou — se escaparmos!

O cocheiro arrancou-lhe a moeda e disse:

— Muito bem!

A escotilha fechou-se e o chicote estalou em todo o comprimento sobre o dorso luzidio do cavalo. O carro pulou. Meio levantado, o anarquista, a fim de conservar o equilíbrio, segurou-se à capota com a mão em que tinha o tubo de vidro. Ouviu-o estalar e sua metade quebrada caiu no fundo da carruagem. Ele escorregou para os coxins do fundo com uma praga e olhou, horrorizado, as duas ou três gotas do líquido respingados sobre a capota. Tremeu.

— Bem, serei a primeira vítima! Ufa! Em todo o caso, morrerei mártir! Já é alguma coisa... Mas é, no fundo, uma morte imunda. Eu me pergunto se dói tanto quanto eles dizem.

De súbito veio-lhe uma ideia. Procurou, às apalpadelas, entre os pés, o fragmento de tubo. Uma pequena gota ficara no fundo do vidro partido. Bebeu-a para certificar-se do efeito. Valia mais estar certo. Assim, não falharia.

Então, pareceu-lhe inútil fugir do bacteriologista. Na Wellington Street, fez parar o táxi e desceu. Escorregou no degrau e sentiu-se diferente. Era, na verdade um rápido veneno, o cólera. Com a mão fez um sinal de adeus ao cocheiro — supremo adeus, por assim dizer —, e ficou no passeio, braços cruzados ao peito, esperando a chegada do cientista. Havia em sua atitude qualquer coisa de trágico. A sensação da morte próxima dera-lhe certa dignidade. Saudou o bacteriologista com um riso de desafio.

Vive l'Anarchie![4] Você chegou muito atrasado, meu amigo. Eu bebi! O cólera está desencadeado!

Do seu carro, o bacteriologista olhou-o curiosamente, através dos óculos.

— Você bebeu! É um anarquista. Compreendo agora.

Ia acrescentar qualquer coisa, mas deteve-se. Um sorriso aflorou-lhe no canto dos lábios. Abriu a porta do carro, como que para descer. Então, o anarquista enviou-lhe um adeus dramático e correu na direção da ponte de Waterloo, tendo o cuidado de esfregar o corpo contaminado no maior número de pessoas possível.

O bacteriologista ficou tão aterrorizado com esse espetáculo que não manifestou a menor surpresa ao ver a sua mulher aparecer com o chapéu, os sapatos e o sobretudo.

 — Que amabilidade a sua em trazer-me tudo isto!

E ficou perdido na contemplação do anarquista, que se afastava.

— É melhor você entrar no coche e voltar — disse ele, olhando sempre o fugitivo.

Minnie ficou persuadida que ele estava maluco e deu ordem ao cocheiro de conduzi-lo à casa.

— Pôr os sapatos? Certamente, querida — acrescentou ele, no momento em que o carro, começando a rodar, não lhe permitia mais avistar o ponto negro, que era o anarquista, ao longe.

Então, de repente, uma ideia grotesca feriu o espírito do bacteriologista e ele começou a rir. Depois, falou:

— É sério... Sabe este homem que veio visitar-me? Pois bem, é um anarquista... Não vale a pena você ficar surpresa, senão não lhe posso contar o resto. Não sabendo quem era, quis assustá-lo. Tomei uma cultura dessa bactéria nova, de que há pouco tempo falei, que é um veneno e produz, penso, manchas azuladas em diversas espécies de macacos e, como um imbecil, disse que era o cólera asiático. Meu visitante fugiu com um tubo para envenenar a água de Londres e sem dúvida ia fazer mudar de cor a pele de todos os habitantes desta cidade civilizada. Ele acabou de engolir a droga. Evidentemente, não posso prever o que acontecerá. Mas você viu como a gata ficou azul e viu as manchas produzidas nos filhotes. Ah, e o azul brilhante do pardal?! O pior é que tenho de preparar à minha custa outra cultura.

“Pôr sobretudo com este calor! Por quê? Porque podemos encontrar a senhora Jabber?[5] Querida, a senhora Jabber não me constipará. E para que um sobretudo, com este calor, só por causa daquela senhora... Está bem, não insisto”.

Fonte: “Vida Policial”, edição de 17 de julho de 1926.

Este conto foi publicado originariamente, em português e espanhol, na revista Relatos Fantásticos. Para acessá-la, clique AQUI.



[1] François Claudius Koënigstein, dito Ravachol (1859 — 1892), foi um dos mais famosos anarquistas franceses, reputado um dos maiores terroristas do séc. XIX.

[2] Auguste Valliant (1861 — 1894), anarquista francês, protagonizou o atentado a bomba à Câmara de Deputados francesa em 9 de dezembro de 1893.

[3] Meia libra esterlina.

[4] “Viva a Anarquia!”, em francês, no original.

[5]Tootles e Jabber são uma sutil referência a Trottle e Jarber, personagens de “A House to Let”, de Charles Dickens, Wilke Collins, Elizabeth Gaskell e Adelaide Anne Procter.

 

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