O SEGREDO DA GÓRGONA - Conto de Terror - Paulo Soriano
O SEGREDO DA
GÓRGONA
Paulo Soriano
Para Annabel
O
velho professor extraiu um vigoroso trago de seu havana antes de prosseguir.
—
Não sabemos tudo. E isto é um ultimato: estamos muito longe de saber toda a
verdade — foi o que disse o ancião, dirigindo-se outra vez para a confortável
poltrona, onde afundou definitivamente o seu corpo seco e miúdo, que quase
desaparecia na névoa densa e olorosa do tabaco.
—
O que ousamos saber são poucos fragmentos de verdade, que aqui e ali se
encaixam como uma mão numa luva, mas que, no conjunto, têm um quê de
inverossimilhança.
—
Um exemplo, professor. Eu gostaria imensamente de um exemplo. Um exemplo de
como as lendas nos chegaram deturpadas, ou mesmo mutiladas em sua essência,
como o senhor há pouco se referiu.
À
intervenção de Ambrosius, o professor Anastácio enrugou mais ainda o cenho e
pareceu meditar por um instante. Na verdade, eu sei que o professor não estava
meditando. Estava se recordando. Era incrível a memória daquele homem
octogenário, seco como um caniço, mas ainda ágil e esperto como um felino.
—
Narrar-lhes-ei, até onde a memória me permitir, um texto que escrevi há muitos
anos, baseado num manuscrito de Teófilo de Alexandria, que eu mesmo recuperei,
mas que nunca levei à publicação, porque o papiro desapareceu para sempre, em
circunstâncias tão insólitas, tão singulares e inacreditáveis que não convém
relatar. Sempre tive medo de cair no ridículo e jamais levaria a público algo
que não pudesse provar. Mas o certo é que as górgonas eram mais terríveis do
que se pensa hoje. O seu malefício transcendia à mera transformação de suas
vítimas em estátuas pétreas. Ouçam-me, e vocês concordarão comigo.
O
professor depôs as cinzas de seu charuto num cinzeiro e pediu água. Puxamos as cadeiras,
dispostas em círculo, para mais próximo do ancião erudito, a fim de ouvi-lo
melhor.
—
Conta Teófilo que existiam em Éfeso duas pequenas graciosidades: as gêmeas
Helena e Desdêmona. Filhas de um sacerdote de Hefesto, bem que poderiam gozar de
uma reputação à altura de sua condição social, especialmente porque, com os
seus cabelos ruivos e as suas peles alvas, eram duas beldades magníficas. E
tanto é assim que serviram de modelo às Gêmeas de Éfeso, que muitos atribuem a
Fídias, hoje desaparecidas, e das quais somente remanescem algumas poucas
descrições. Infelizmente, as descrições divergem nos detalhes, mas convergem no
fato de que as esculturas eram maravilhosas. E que reproduziam, quando postas
em confronto, uma cena de mútuo fratricídio. Mas as gêmeas atraíam a repulsa de
todos, porque o que havia de beleza nos seus rostos e corpos magníficos, havia
também de fealdade em seus sombrios corações. Isto mesmo. As gêmeas
compartilhavam da mesma fisionomia graciosa, tinham os mesmos gostos, gestos e
sentimentos; e, para consumar a tendência que acode à maioria dos gêmeos
idênticos, eram iguais o caráter e as inclinações de cada uma.
Ambas
eram famosas pela arrogância e petulância. Irascíveis, desprezavam tudo e a todos. Emulavam em tudo. Por tudo disputavam e competiam, sem razão plausível.
E nutriam, amargamente, entre si, um ódio profundo, um inabalável e infinito
desprezo. E esse ódio, que as consumia terrivelmente, crescia exponencialmente
dia a dia, especialmente porque a proximidade física entre as duas jovens irmãs
era uma fatalidade irremovível. O rancor recíproco acentuou-se sobremaneira
quando as gêmeas adolescentes — sem que uma soubesse o que perpassava o coração
da outra — caíram de paixão pelo mesmo homem, o sábio e belo Aristarco de
Corinto.
“Helena
procurou o oráculo; Desdêmona fez o mesmo. Mas ficaram sabendo, cada uma à sua
vez, que das vísceras das aves abatidas vinha um vaticínio terrível. O jovem
Aristarco seria de outra pessoa. E as irmãs — notem bem isso, cavalheiros —
estavam condenadas, conforme assim anunciou o oráculo infalível, a conviverem e
a se odiarem por toda a eternidade.
“Cada
uma das irmãs, isoladamente, remoía a suspeita de que era a outra gêmea a
eleita de Aristarco. E vinha, então, à superfície da alma, uma inveja de
densidade insuportável, tão profunda e pesada que cada uma das irmãs passou a
conspirar contra a outra. E tão semelhantes eram aqueles espíritos soturnos
que, desafiando as Moiras, urdiram separadamente — fio a fio — o mesmo plano
assassino.
“Por
essa época, a cidade de Éfeso caiu em desgraça. Enviado pelos deuses, um ser
abominável — uma górgona — passeara pelos campos desolados e transpusera
sorrateiramente os muros da cidade. Até hoje não se sabe por que, a mando de
Fórcis, Euríale viera a Éfeso, com seus olhos medonhos e sua fronte ondulante
de víboras, para realizar os seus hediondos prodígios. Mas sabe-se que era
sobre as casas dos sacerdotes que a górgona deitava a sua espreita, e que foram
muitos os que choraram pela sina dos entes terrenos que mais amavam.
“Numa
noite chuvosa de plenilúnio, quando o céu se contorcia aos abalos dos trovões,
decidiram as irmãs pôr em prática o plano que engendraram. Cada uma portava um
punhal, e se fazia acompanhar de uma escrava — sobre a qual recairia toda a
culpa. Buscaram, reciprocamente, o quarto, onde imaginavam que a outra dormia a
sono solto. Mas se encontraram, surpresas, no centro do adro aberto.
Lançaram-se
as irmãs furiosamente uma contra outra, como serpentes enlouquecidas. Então
veio do firmamento um raio que tudo clareou.
Antes
de mergulharem a adaga no peito que a outra estufava, viram, com horror, que
seus olhares eram desviados para os olhos de Euríale. Então, toda a cena se
congelou para todo o sempre, porque as irmãs já não eram mais de carne e osso.
Convolaram-se em mármore instantaneamente.
“Até
aqui, senhores, nada que já não seja conhecido. Vem, agora, o meu segredo.
“Não
morreram, as duas formosuras. Decerto que o mármore frio lhes serviu de túmulo.
Mas suas almas e suas consciências foram transpostas para o corpo da górgona e
agora são, do ente monstruoso, um prolongamento terrível, porque enraizado na
carne e nutrido pelo mesmo sangue e pelo mesmo plasma que circulam em toda
aquela hediondez.
“Convertidas
ad aeternum em serpentes e plenamente cientes da nova condição, Helena e
Desdêmona grudaram-se, pelas caudas, ao crânio da abominável criatura,
agitando-se e deslizando sobre e sob o corpo escorregadio de uma miríade de
víboras outras, pegajosas e ferozes, que um dia já foram entes humanos como
elas, e de cujos corpos só restam estátuas pavorosas.
“Até
hoje se contorcem as irmãs, eriçam os seus capuzes de naja em meio a sibilos
rancorosos. Ciciam vinganças repugnantes. Ensaiam botes traiçoeiros. Projetam
suas presas peçonhentas para morderem-se e esquivarem-se sub-repticiamente. E
se picam mutuamente as duas beldades, cheias de ódio e sem descanso, como sói
ocorrer com todas as serpentes iracundas.”
O
professor extraiu uma baforada de seu charuto e nos sorriu o seu sorriso de
triunfo.
Imagem da portada: PS/Copilot. Primeira imagem do miolo: Gian Lorenzo Bernini (1598 - 1860).
eu já conheço esse conto mas vou reler, e essas ilustrações do conto, meu Deus, essas IAs vão avançar tanto que no futuro não muito distante a gente poderá fazer HQs com elas. Que legal, isso.
ResponderExcluircontinuando...o curioso é que essas IAs censuram alguns promptas mais terroríficos, aí tem que saber descrever bem. Eu achei interessante o Elon Musk ser contra essa censura nos prompts, ele inclusiva está fazendo uma IA chamada Grok que será mais livre e sem o politicamente correto. Ele curte livros de FC mais pro lado do humor.
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