A AMADA REDIVIVA - Narrativa Clássica Fúnebre - Anônimo do início do século XX


 A AMADA REDIVIVA

Anônimo do início do século XX



No tomo VIII da curiosa obra Causas Célebres e Interessantes1, encontramos a curiosa história em que a verdade vale mais do que os mais trágicos episódios criados pela imaginação dos romancistas.

Dois negociantes da rua Saint Honoré (em Paris) eram amigos íntimos. Um tinha um filho, outro uma filha, quase da mesma idade. Como era natural, os dois adolescentes amavam-se. Essa inclinação recíproca era alimentada pela convivência, que os pais autorizavam, porque eram os primeiros a desejar o casamento de seus herdeiros. Mas eis que um homem, já maduro e muito rico, um banqueiro, veio perturbar esse doce idílio, fazendo a corte à moça e pedindo sua mão. A perspectiva de uma bela fortuna modificou instantaneamente os sentimentos do pai, que abandonou por completo os planos de matrimônio da moça com o filho de seu velho amigo. A própria moça, seduzida pelo fausto que o novo pretendente lhe oferecia, não se fez rogar para esquecer o primeiro noivo.

Fez-se o casamento. A moça rompeu totalmente relações com seu companheiro de infância. Entretanto, verificou-se mais uma vez a verdade do provérbio: a fortuna não faz a felicidade. Aborrecida, nostálgica, no meio da riqueza, a moça tornou-se anêmica, neurastênica — doente de langor, como se dizia nesse tempo. Começou a ter síncopes e desfalecimentos. Um dia, não conseguiram reanimá-la. Julgaram-na morta. Os médicos autorizaram o enterro, que se fez no dia seguinte.

O noivo desprezado, que conservara o mesmo amor incurável, ao saber da morte da ingrata, recordou-se de que, já uma vez, ela, em criança, tivera um longo ataque letárgico. Teve, então, a esperança de que a sempre amada não estivesse verdadeiramente morta.

À noite, foi ao cemitério, seduziu o coveiro com uma recompensa em dinheiro. Desenterrou a moça, que não dava o menor sinal de vida. Ainda assim, o rapaz quis levá-la para casa e o coveiro consentiu, julgando que vendia um cadáver a algum estudante de medicina.

Passados dois dias, os esforços do pertinaz apaixonado foram coroados de êxito. A morta reanimou-se.

Imaginem seu espanto ao despertar em uma casa estranha e conhecer o caso de sua morte. Agradecida à fidelidade do companheiro de infância, resolveu deixar que toda a gente continuasse a julgá-la morta e partiu com o antigo noivo para a Inglaterra.

Mas a história não terminou aí. Teve um epílogo dramático e singular. Dez anos depois desse exílio voluntário, arrastados pelo desejo de tornar a ver a pátria, voltaram a Paris, sem tomar precauções, tão convencidos estavam de que ninguém mais pensaria na morta.

Quis o acaso que o banqueiro encontrasse sua antiga esposa. Julgou reconhecê-la, seguiu-a, informou-se, obteve a certeza e deu queixa à polícia, pretendendo que os juízes obrigassem a rediviva a voltar ao domicílio conjugal.

Mas o processo prolongou-se, a ex-morta conseguiu fugir e voltar a Inglaterra.

O banqueiro teve que pôr luto novamente.



Fonte: “Eu Sei Tudo”, edição de setembro de 1920.


Nota:

1 De autoria de François Gayot de Pitaval (1673 – 1743). 

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