A ESCOLHA - Conto Trágico - Paulo Soriano


 

A ESCOLHA

Paulo Soriano

 

 Anos quarenta.

 O primeiro emprego.

 Um retorno às origens.

 Era a sua primeira semana de trabalho no posto de saúde da cidadezinha mineira onde, há vinte anos, nascera.

O médico, pago pelos cofres públicos — mas dado ao álcool e os ricos —, não dera as caras.

Na enfermaria, padeciam dois pacientes recentes em estado grave. Um era um jovem belo, de reluzentes cabelos anelados e porte atlético; o outro, um homem velho, muito velho, quase sem lábios...  Sobre o traço exangue do que lhe seria a boca, recaía a sombra repulsiva de um nariz aquilino, pontilhado de rubras ulcerações. Ambos os pacientes sucumbiam ao mesmo mal, facilmente debelável — graças a Deus! — por uma boa dose de penicilina. 

Apreensiva, a enfermeira correu à farmácia. Gelou. Havia, milagrosamente, o antibiótico; mas apenas o suficiente para resgatar, da morte certa, um — e tão somente um — de seus enfermos. O que fazer?  A quem salvar com o toque de mágica do Dr.  Fleming? A quem deixar-se morrer, relegado aos nefastos cuidados da morte crua e inevitável? Par ou ímpar? Cara ou coroa?

O velho homem já conhecera a vida em todos os seus aspectos e meandros. Já desfrutara deste amargo néctar por longos anos. Decerto que a morte, o bálsamo que remove democraticamente todas as dores e todas as alegrias, era-lhe uma necessidade inexorável. Quanto ao rapaz, quiçá mais jovem que a enfermeira recém-formada, abria-se a possibilidade de uma vida longa, talvez feliz, talvez dolorosa, mas que não mais esmoreceria numa mera probabilidade, pois a penicilina já circulava plenamente em suas veias, após uma súbita deliberação, decerto impensada, de sua cuidadora. Afinal, a beleza do rapaz era estonteante!

O rapaz recuperou-se bem; o cadáver do homem velho, metido num ataúde roxo escuro, seguiu a Belo Horizonte.

Em verdade, ter a bolsa furtada, ainda no hospital, pelo rapaz cuja vida salvara — em contraponto ao sacrifício do decrépito ancião —, não lhe causara grande comoção. O abalo fora-lhe outro, muito maior, tão penetrante e asfixiante quanto um remorso persistente e dolorosamente convulso, talvez epiléptico.

Soube a enfermeira, pouco depois da alta do belo larápio, que o idoso havia sido o médico que, num parto laborioso, a trouxera, semimorta, ao mundo... E que, na ocasião, salvara a sua mãe — uma velha amiga de bons tempos — de uma morte quase certa, resultante de um profundo e desesperador estado eclâmptico.

O médico, ciente da merecida conquista da jovem enfermeira, retornara à cidadezinha, no meio do nada, depois de tantos anos, já doente, somente para parabenizá-la...

 

Conto originalmente pulicado na Folha de Ponte Nova, edição de 29 de março de 2024.

Imagem: Pixabay/whitedaemon.

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