ESTRANHAS APARIÇÕES - Narrativa Clássica Sobrenatural - Daniel Deföe


 

ESTRANHAS APARIÇÕES

Daniel Deföe

(1660 – 1731)

Tradução de autor anônimo.


Certo fidalgo, senhor de uma avultada fortuna, casou-se com uma dama, também de bons cabedais, de quem teve um filho e uma filha apenas, após o que, anos passados, ela se finou. Em breve, contraiu segundas núpcias; a segunda esposa, posto que de mais baixa condição e menores haveres que a primeira, tomou a peito aborrecer e maltratar os filhos que ele tivera da outra mulher, o que fez a desarmonia da família, tanto no que respeita às crianças, como no que toca ao próprio pai.

O primeiro resultado de tal comportamento da madrasta no seio da família foi o filho, mal principiou a sentir-se homem, ter pedido ao pai que o deixasse viajar por terras estranhas. A madrasta, conquanto desejasse ver-se livre dele, como ele precisava de uma soma considerável para se manter no estrangeiro, opôs-se violentamente, fazendo com que o pai o não deixasse partir, depois de lhe ter dado autorização para isso.

Tão arreliado ficou o rapaz que, depois de haver renovado o seu pedido ao pai, com todo o respeito, quer diretamente, quer por intermédio de alguns parentes, sem ter conseguido o seu intento, encorajado algum tanto por um tio, irmão da sua mãe, primeira mulher do pai, resolveu partir de casa sem licença; e se assim o pensou, melhor o fez.

Por que parte do mundo viajou, não me lembro; parece que o pai se manteve em contato com ele por algum tempo e em condições de lhe fazer chegar às mãos uma razoável pensão para sua mantença, a qual o rapaz mandava receber por meio de cartas de crédito, regularmente pagas; mas, algum tempo depois, governando a casa a madrasta, uma dessas cartas foi recusada e, depois de protestada, devolvida sem aceite; após o que, não mandou mais nenhuma, nem nunca mais escreveu, e o pai nunca mais ouviu falar dele durante quatro anos, pouco mais ou menos.

Desse longo silêncio tirou a madrasta vários benefícios; primeiro, começou por querer convencer o marido de que, tendo o rapaz necessariamente morrido, os bens dele deviam ser dispostos a favor do mais velho dos filhos dela (pois ela tinha vários filhos). O pai opôs-se firmemente a essa proposta, mas a mulher continuou a acossá-lo com importunações; e eram dois os argumentos contra ele, isto é, como quem diz, contra o filho.

Primeiro, se ele tivesse morrido, não havia lugar para objecções, pois o filho dela era o herdeiro legítimo.

Segundo, se ele não tivesse morrido, o seu comportamento para com o pai, a quem não escrevia há muito, era indesculpável, e este devia estar ressentido com isso, e proceder como se o filho tivesse morrido: que nada tão legitimamente o podia desobrigar e que, portanto, ele, seu pai, devia proceder como se ele, seu filho, fosse morto, e tratá-lo em conformidade, porque, quem procedia assim para com o próprio pai, como morto devia ser considerado quanto às suas relações filiais e ser tratado como merecia.

O pai, no entanto, opôs-se por muito tempo, alegando não poder decidir em consciência; que muita coisa podia ter acontecido no mundo que impedisse o filho de escrever; que podia ter sido feito prisioneiro dos turcos e levado como cativo; que podia achar-se entre os persas ou os árabes (o que parecia ser o caso), e, assim não poder enviar novas suas, e que não se conformaria em deserdá-lo antes de verificar se tinha ou não razão para o fazer ou se o filho o tinha ou não ofendido.

Esta resposta, conquanto justa, estava longe de calar as queixas da mulher, queixas tamanhas que não dava descanso ao marido, fazendo a inquietação de toda a família; causava um grande mal-estar e, numa palavra, compelia os filhos a fazerem o mesmo; e o fidalgo via-se tão consumido que uma ou duas vezes esteve a ponto de anuir, mas o coração repontou e ele voltou atrás com a sua palavra, recusando.

Como quer que fosse, o fato de o ter levado tão longe constituiu um encorajamento para ela prosseguir com as suas impaciências e solicitações. Por fim, ele acabou por aceitar um ajuste provisório, pelo qual, se não ouvisse falar do filho durante um certo lapso de tempo, consentiria numa nova distribuição dos bens.

A mulher não ficou satisfeita com este ajuste condicional, mas, vendo-se incapaz de obter qualquer outro, sentiu-se forçada a aceitá-lo, tal como ele se lhe apresentava; como muitas vezes lhe disse, estava, no entanto, pouco satisfeita com o prazo por ele fixado em quatro anos, como atrás ficou dito.

De tanto ouvir falar na mesma coisa, ele acabou por se enfurecer, respondendo que ela se devia dar por muito satisfeita, pois o tempo era escasso em relação às circunstâncias em que o filho se podia encontrar.

O certo é que ela tanto o atormentou, que acabou por persuadi-lo a reduzir o prazo para um ano; mas, antes de tal consentir, disse-lhe, um dia, num ataque de cólera, que esperava, mais tarde ou mais cedo, que o espectro do filho aparecesse a ele e lhe dissesse que estava morto, e que convinha que fizesse justiça aos seus demais filhos, pois ele nunca mais voltaria para reclamar os seus bens.

Quando, por fim, ele acabou, contra vontade, por consentir na redução do prazo para um ano, disse-lhe esperar que o espectro do filho, posto que o não tivesse por morto, aparecesse a ela, e lhe dissesse estar vivo, antes de o prazo findar.

Por que não hão de as almas injuriadas dos vivos — disse ele — andar por esse mundo como as dos mortos?

Aconteceu que, uma tarde, depois disto, estando numa áspera quezília por causa do mesmo assunto, certa mão surgiu, subitamente, num postigo, como se tentasse abri-lo. Como todos os postigos de ferro usados nesse tempo abriam para fora, embora se fechassem e prendessem por dentro, a mão parecia procurar, debalde, abrir o postigo. O fidalgo não deu por isso, mas a mulher, que viu, ergueu-se repentinamente, como que assustada e, esquecendo a briga, levantou as mãos para o céu.

Valha-me Deus! — disse ela. — Há ladrões no jardim.

O marido correu imediatamente para a porta da sala onde se encontravam e, abrindo-a, espreitou para fora.

Não está ninguém no jardim — disse ele; dizendo o quê, fechou de novo a porta e voltou para o seu lugar.

Tenho a certeza — replicou ela — que vi um homem ali.

Então, era o diabo —disse ele —, pois estou certo de que não há ninguém no jardim.

Eu ia jurar — tornou ela — que vi um homem meter a mão para abrir o postigo, mas, achando-o preso, e, suponho eu — acrescentou —, vendo-nos aqui, fugiu.

É impossível ter fugido — replicou ele. — Não corri eu para a porta imediatamente? Além disso, sabes bem que os muros que cercam o jardim não o deixariam fugir.

Suplico-te! — exclamou ela colericamente. — Não estou embriagada, nem muito menos a sonhar; sei muito bem reconhecer um homem. E não estava escuro: o Sol ainda não se pôs de todo.

Estás apenas assustada com alguma sombra — disse ele (e cheio de maldade). — Coisas destas só costumam acontecer às pessoas que não têm a consciência tranquila; quem sabe se era o diabo?

Não, não!... Eu não me assusto facilmente! — disse ela. — Se era o diabo, era o diabo no espectro do teu filho, que deve ter vindo dizer-te que está no inferno, e por isso deves dar os teus bens ao mais velho dos teus filhos bastardos, já que desprezas o legítimo herdeiro.

Se fosse o meu filho — disse ele —, é que vinha dizer-nos estar vivo, isso te garanto eu, e perguntar como podes ser tão diabólica que o queiras deserdar.

E, dizendo isto, exclamou em voz alta, por duas vezes, erguendo-se impetuosamente da cadeira:

Alexandre, se estás vivo, aparece, e faz com que eu deixe de ser insultado todos os dias por causa da tua morte.

Estas palavras não eram ditas quando o postigo, onde a dama tinha visto a mão, se abriu por si mesmo e Alexandre, em pessoa, fitando a madrasta com um irado semblante, gritou:

Estou aqui!…

E desapareceu no mesmo momento.

A dama, até aí tão senhora de si, soltou um espantoso grito que alarmou toda a casa. A criada dela correu à sala para ver o que tinha acontecido, mas a ama tombara, desmaiada num cadeirão.

Não caíra por terra, porque, estando ali uma grande cadeira, se apoiara a um dos braços dela, onde imediatamente a ampararam; só muito depois, no entanto, recuperou os sentidos.

O marido tinha corrido imediatamente para a porta do salão, e, abrindo-a, saiu para o jardim, onde não viu ninguém; depois, dirigiu-se à outra porta praticada diretamente sobre o jardim e, em seguida, a outras duas que conduziam para fora dele, uma ao pátio da cavalariça e outra ao campo, que se estendia para além da cerca. Todas estavam bem fechadas e trancadas. Vendo a um canto o jardineiro, em companhia de um rapaz que arrastava um cilindro de pedra, perguntou-lhes se alguém ali tinha estado, ao que eles responderam muitas vezes que não, que só eles ali se encontravam, cilindrando o passeio junto da casa.

Depois disso, voltou para dentro, sentou-se outra vez, e não disse palavra por muito tempo. As mulheres e os criados andavam numa azáfama, fazendo quanto podiam para reanimar a senhora

Algum tempo depois, ela veio a si o bastante para poder falar; e as primeiras palavras que proferiu foram:

Valha-me Deus! Que foi isto?

Nada — disse o marido. — Naturalmente foi o Alexandre.

Ao ouvir isto, acometeu-a um ataque e pôs-se a soltar gritos e ais cada vez mais medonhos.

O marido, sem saber que é que a tinha levado àquilo, procurou aplacá-la, dizendo-lhe que não era nada; mas nada conseguiu, tendo-se visto obrigado a conduzi-la à cama e a mandar chamar o médico; durante alguns dias, esteve muito mal.

Fosse como fosse, graças a isto, durante um certo tempo, não voltou a referir-se à conveniência de deserdar o enteado.

Mas o tempo, que endurece o espírito em coisas ainda piores, foi lentamente consumindo a lembrança do ocorrido, e ela acabou por fazer reviver a mesma questão outra vez, embora, de princípio, com menos ardor do que antes.

No entanto, o marido usou para com ela de uma certa má vontade também, e sempre que a questão vinha à baila, tapava-lhe a boca ou dizia-lhe que, se ela pronunciasse mais alguma palavra sobre o caso, ele pediria outra vez ao Alexandre que abrisse o postigo.

Isto agravou muito as coisas; e, se é certo tê-la atemorizado durante algum tempo, a verdade é que, por fim, o exaspero dela era tamanho que lhe disse estar certa de que ele tinha pacto com o diabo, a quem se vendera apenas com o intuito de lhe meter medo.

O marido pôs-se a brincar com ela, dizendo que qualquer esposo se sentiria grato para com o diabo que lhe calasse a mulher turbulenta, e que se considerava muito feliz por ter encontrado maneira de o conseguir, embora isso lhe custasse.

Tão exasperada ela ficou que o ameaçou, caso voltasse a fazer uso das suas artes diabólicas, de o denunciar como feiticeiro e homem de tratos com o demônio, “coisa bem fácil de provar”, disse, pois a verdade é que ele tinha conjurado o diabo de propósito para a intimidar.

A disputa acabou nessa noite com palavras ruins e explosões de mau gênio, mas ele nunca pensou que a mulher pusesse em prática a sua ameaça; de modo que, no dia seguinte, tudo esquecera e estava de tão bom humor, como se nada tivesse ocorrido.

A mulher, porém, apareceu-lhe pesarosa e mui atormentada, toda ressentida, ameaçando-o com o que resolvera fazer.

Como quer que fosse, ele pouco pensou que ela tentasse pôr em prática a maldade que tinha em mente, e propôs-lhe conversarem amistosamente; ela, todavia, repeliu-o com desdém, dizendo estar disposta a levar por diante o que dissera, pois não queria viver com um homem que mandava o diabo entrar em sua própria casa, sempre que lhe apetecia, com intenção de a matar.

O marido procurou apaziguá-la com boas palavras, replicando-lhe a ela falar sério. Numa palavra, o caso tornou-se grave, pois a verdade é que a dama se dirigiu à justiça, onde declarou, sob juramento, que o marido tinha pacto com o demônio e que a vida dela corria perigo, obtendo assim um mandato de captura contra ele.

Resumindo: trouxe para casa a dita ordem de captura, mostrou-a ao marido, e disse-lhe que a não tinha confiado à autoridade por lhe querer conceder a liberdade de se apresentar voluntariamente ao juiz de paz, esperando que lhe participasse quando estava pronto para isso, pois ela o estava também, tendo tenção de pedir a alguns amigos seus que a acompanhassem.

Grande foi a surpresa dele, pois nunca pensara que ela tivesse falado a sério, e pôs-se a apaziguá-la o melhor que sabia; mas ela viu que o tinha assustado deveras, o que era verdade, pois, malgrado aquilo nada tivesse em si de condenável, era óbvio que seria um escândalo, e contrariava-o a ideia de se dar em espetáculo; eis por que usou para com ela de todos os rogos de que era capaz, pedindo-lhe que não fizesse tal coisa.

Quanto mais ele se humilhava, porém, maior era o triunfo dela. A insolência foi tanta que ela lhe disse que justiça seria feita, como o advertira, pois estava certa de o fazer castigar se continuasse obstinado, e que não estava disposta sujeitar-se a encantamentos e feitiçarias, pois a verdade era ignorar até onde ele seria capaz ir.

Para abreviar a história: tão grande ascendência ganhou sobre ele, que o marido acabou por propor que o caso fosse apresentado a pessoas imparciais, amigos das duas partes, os quais, convocados umas poucas de vezes, nunca chegaram a qualquer conclusão. Os amigos dele diziam que aquilo não tinha importância e que ele não devia intimidar-se; o ato de ele chamar pelo filho e alguém abrir o postigo e gritar: “Estou aqui!” não era prova de feitiçaria, e insistiam em que ela nada podia fazer contra ele.

Os amigos dela comportavam-se altivamente, por ela instigados, alegando que ela estava pronta a jurar que ele a tinha ameaçado com o fantasma do filho; porque ele fizera aparecer um espectro, chamando pelo rapaz, evidentemente já falecido, e o fantasma aparecera imediatamente; que ele não poderia ter pedido ao diabo que lhe apresentasse o filho se ele próprio não tivesse pacto com o demônio e se não falasse com os espíritos, e que isto era de graves consequências para ela.

Perante tudo isto, o fidalgo carecia de coragem para resistir, sendo grande o seu receio de um escândalo: eis por que parecia dolorosamente perplexo, sem saber que fazer.

Quando ela percebeu que ele já estava suficientemente humilde, disse-lhe que, se lhe queria fazer justiça (como quem diz, dispor da herança a favor do filho dela), ela estava pronta a renunciar a tudo o mais, com a condição de ele lhe prometer não a tornar a assustar com o diabo.

Esta parte da proposta exasperou-o de novo, e lançou-lhe em rosto que aquilo não passava de uma calúnia, que estava pronto a afrontá-la e que ela podia provocar a sua própria desgraça.

Assim, quebrou o acordo e ela outra vez o começou a ameaçar. Como quer que fosse, persuadiu-o, finalmente, a condescender, entregando-lhe ele um documento escrito pelo seu próprio punho, feito na presença de alguns amigos dela, no qual prometia cumprir o desejo da mulher, se o filho não chegasse nem desse novas dentro de quatro meses.

A dama ficou satisfeita com isto e voltaram a ser amigos como dantes, tendo-lhe ele confiado o dito documento; mas, quando lho entregou, na presença de duas testemunhas, tomou a liberdade de lhe dizer, numa espécie de discurso, grave e solene:

Escuta — disse ele —, tanto me atormentaste com o teu impaciente gênio, que fizeste com que eu assinasse este contrato contrário à justiça, à moral, e à razão; no entanto, embora dependente dele, estou certo de que nunca o executarei.

Uma das testemunhas disse:

Por quê, senhor? Então isto não serve para nada. Se estais resolvido a não cumprir o contrato, para que o assinais? Para que prometeis o que não tendes a intenção de fazer? Isto apenas servirá para acender nova disputa quando o prazo expirar.

Porque, no meu foro íntimo — disse ele —, estou convencido de que o meu filho está vivo.

Vamos, vamos — disse a mulher para o fidalgo que discutia com o marido —; deixai-o assinar o contrato e eu me encarregarei de o obrigar a cumpri-lo.

Está bem — disse o marido —; terás o contrato, mas depois hás de me deixar em paz. Estou convencido de que nunca me pedirás para o cumprir. Mas, no entanto, não sou um feiticeiro — acrescentou ele —, como tu maldosamente insinuaste.

A dama replicou que podia provar que ele tinha pacto com o diabo, pois bastava que chamasse pelo nome do filho para surgir uma alma penada. E pôs-se a contar a história da mão e do postigo.

Vamos — disse o fidalgo para o amigo —, dai-me a pena: em toda a minha vida nunca tive pactos senão com um diabo, e esse diabo está aqui sentado — disse, virando-se para a mulher — e acabo de fechar com ela um contrato que mulher alguma, a não ser o diabo, seria capaz de obrigar o próprio marido a assinar, e eu assino-o. Mas também vos garanto, dai-me a pena, que nem ela nem todos os diabos do inferno serão capazes de mo fazer cumprir; lembrai-vos do que vos acabo de dizer.

Ela começou a protestar, preparando-se uma nova disputa, mas os fidalgos entrepuseram-se e o marido, assinando o escrito, pôs fim à quezília por aquela vez.

Ao fim dos quatro meses, ela exigiu o cumprimento do contrato, tendo sido designado um dia para isso, e os dois amigos, que tinham servido de testemunhas, foram convidados para jantar nessa ocasião, crendo que o marido cumpriria as cláusulas do contrato; e, de acordo com isso, os escritos foram todos apresentados e lidos por inteiro, bem como alguns velhos contratos, assinados no ato do casamento pelos curadores, que foram exibidos para serem cancelados, de maneira a ela ficar quite na mesma parte da herança, no que dizia respeito ao filho. O marido foi convidado ou por modos pacíficos ou à força, talvez por estar de humor, antes por modos pacíficos, a executar as cláusulas do contrato, deserdando o filho, sendo-lhe dito que, se na verdade ele tivesse morrido, isso não o prejudicaria, e, se estivesse vivo, o fato de lhe não dar novas suas por um tão longo espaço de tempo era prova de desobediência e grosseria.

Além disso, alegaram que, se ele viesse a aparecer depois disto, o pai (cuja riqueza muito tinha prosperado) podia dar-lhe outros bens como justa satisfação pela perda que ele teria de sofrer na parte dos bens paternos.

Perante tais considerações, o pobre pusilânime marido estava quase a anuir, ou, pelo menos, quer tivesse anuído ou não, as coisas iam-se fazer de acordo com o que tinha sido causa daquela reunião.

Quando acabaram de discorrer acerca de todas estas particularidades e, como acima ficou dito, lidas as novas cláusulas, ela ou o marido pegou nos velhos documentos para os cancelar; creio que a história diz que, indo a mulher, não o marido, rasgar os selos, se ouviu, subitamente, um ruído no salão onde estavam, exatamente como se alguém tivesse penetrado pela porta que comunicava com o átrio e entrasse na sala, a caminho da porta do jardim, que estava fechada.

Todos se mostraram surpreendidos, pois isto foi perfeitamente notório, mas nada viram. A dama empalideceu, cheia de pavor. No entanto, como nada descortinara, reanimou-se um pouco, mas para começar, de novo, a implicar com o marido.

Quê? — disse ela. — Tramaste nova conspiração para que os diabos tornassem a aparecer?

O marido permaneceu sereno, embora, no seu foro íntimo, não pouco surpreendido também.

Um dos dois fidalgos disse-lhe:

Que quer isto dizer?

Garanto-vos, senhor — disse ele —, que sei tanto do que se trata como vós.

Então, que será? — disse o outro fidalgo.

Não faço a mais pequena ideia — replicou o marido. — Não percebo absolutamente nada destas coisas.

Não ouvistes dizer nada do vosso filho? — perguntou o fidalgo.

Nem uma só palavra — respondeu o pai; não, nem a menor palavra durante estes últimos cinco anos.

Haveis-lhe mandado dizer alguma coisa — voltou o fidalgo — acerca deste contrato?

Nem uma palavra — disse ele —; não sabia para onde escrever-lhe.

Senhor — disse o fidalgo —, tenho ouvido falar muito de aparições, mas nunca vi nenhuma na minha vida, nem nunca acreditei que houvesse qualquer verdade nisso; com efeito, continuo sem nada ver agora mesmo; mas não há dúvida de que passou algum corpo, algum espírito ou coisa que o valha por esta sala: ouvi distintamente. Estou certo de que há aqui qualquer coisa invisível, tão certo como se a visse.

Ainda mais —disse a outra testemunha —; eu senti o ar deslocar-se quando passou por mim. Dizei-me, peço-vos — disse ele, voltando-se para o marido —, estais vendo alguma coisa?

Não, pela minha honra —replicou ele —; absolutamente nada.

Contaram-me — disse a primeira testemunha — e li algures que uma aparição pode ser visível para umas pessoas e invisível para outras, embora todas juntas na mesma sala.

Como quer que fosse, o marido protestou solenemente, perante todos os presentes, que nada tinha visto.

Peço-vos, senhor — disse a primeira testemunha —, que nos diga se haveis visto alguma coisa já noutra ocasião; se haveis ouvido ruídos ou vozes; ou se haveis tido algum sonho acerca disto.

É certo — disse ele — que tenho sonhado muitas vezes que meu filho está vivo e que falo com ele, e uma vez que lhe perguntei por que era tão desobediente, e me desprezava tanto que me deixava sem notícias durante tanto tempo, sabendo, como sabia, que eu o podia deserdar.

Muito bem, e que respondeu ele?

Nunca os meus sonhos duraram tanto que ele me pudesse responder; acabei sempre por acordar.

E que pensais de tudo isso? —disse a testemunha. — Pensais que ele tenha morrido?

Não, nunca — disse o pai. — Penso, no fundo da minha consciência, que ele está vivo, tão vivo como eu próprio, e eis-me prestes a praticar um ato tão iníquo como homem algum ainda praticou.

Na verdade — disse a segunda testemunha —isto principia a incomodar-me; não sei que hei de pensar destas coisas; não me quero intrometer mais neste assunto, pois me desagrada compelir um homem a praticar um ato contrário à sua consciência.

Ao ouvir isto, a mulher, que, como eu disse, se reanimara algum tanto e se sentia particularmente animada por nada ter visto, ergueu-se repentinamente.

A que propósito vêm todos estes discursos? —disse ela. — Pois ainda não está tudo regularizado? Que é que nós aqui viemos fazer?

Além disso — disse a primeira testemunha —, penso que não nos encontramos aqui para discutir o que se passa, mas para dar cumprimento às cláusulas do contrato. Por que estamos nós assustados?

Não estou assustada —disse a mulher. —Eu não! Vamos — disse ela para o marido, altivamente —, assina o documento; seria capaz de cancelar as escrituras antigas, mesmo que estivessem quarenta diabos dentro da sala.

E, dizendo isto, pegou num dos documentos, pronta a rasgar o selo.

Naquele instante, o tal postigo abriu-se de novo, malgrado estivesse fechado por dentro, exatamente como da outra vez, e viu-se a sombra de um corpo, que parecia estar fora no jardim, com a cabeça metida no postigo, o rosto voltado para a sala, fitando diretamente a dama, com um severo e irado semblante.

Alto! —disse o espectro, como se se dirigisse a ela, e imediatamente o postigo se fechou, desaparecendo o fantasma.

Impossível descrever o estado de desalento em que esta segunda aparição lançou toda aquela gente; a dama, que até aí se tinha mostrado tão corajosa, capaz de rasgar os selos, mesmo que quarenta demônios entrassem na sala, soltou um grito semelhante ao de uma mulher com um ataque, deixando cair os documentos das mãos; as duas testemunhas estavam extraordinariamente assustadas, embora não tanto como os demais; mas uma delas pegou na sentença que ambas tinham assinado e onde o marido era compelido a cumprir o contrato dispondo dos bens do filho.

Atrevo-me a afirmar — disse ele —, quer se trate de um bom, quer de um mau espírito, que é seu desejo que isto não se chancele.

Dito isto, riscou o nome da sentença, no que foi seguido pela outra testemunha, e ambas se ergueram dos seus lugares dizendo que nada mais tinham a fazer ali.

O mais inesperado de tudo, porém, foi o próprio marido ter desfalecido de susto, não obstante tudo ser a seu favor, como era evidente.

Isto pôs ponto final a toda aquela questão, não só naquele momento, mas para sempre, como depois vim a saber.

A história tem muitas outras particularidades, longas de mais para que eu vos enfade com elas; mas duas há que não posso omitir, a saber:

1) Que, dentro de cinco meses, pouco mais ou menos, a contar desta segunda aparição, o rapaz voltou das Índias Orientais, para onde embarcara em Lisboa, num navio português, havia quatro anos.

2) Que, tendo sido particularmente interrogado acerca de todas estas coisas, e em especial sobre se tivera tido algum conhecimento delas, ou se alguma aparição, vozes, ou qualquer intimação lhe tinham dado a conhecer o que ocorrera em Inglaterra, ele afirmou repetidamente que de nada tivera notícia, salvo uma vez ter sonhado que o pai lhe escrevera uma carta colérica, ameaçando-o, caso não voltasse para casa, de deserdá-lo, não lhe deixando um único xelim. Mas acrescentava que nunca tinha recebido em sua vida carta alguma do pai ou de qualquer outra pessoa.


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