O LOBO DE CARLOS III - Narrativa Clássica Sobrenatural - Anônimo do Séc. XX


 O LOBO DE CARLOS III

Anônimo do séc. XX





O campanário do palácio real acabava de soar seis horas, que o eco repetiu ao longe, abafado pela neblina, e os serviçais apuraram o ouvido por trás da pesada cancela, esperando a cada instante o ruído das pesadas carruagens de Sua Majestade.

Ali estavam, para a recepção, segundo o cerimonial, um chefe de quarto, com seu candelabro de prata e dois moços-fidalgos com archotes, todos com libré de aparato, escoltados por um pelotão de alabardeiros, com tricórnio e espada.

Um pouco além, em respeito à hierarquia, o oficial de serviço passeava isolado, sem perder de vista o chefe dos porteiros, que se mantinha alerta junto ao limiar. Esse grupo agaloado e brilhante completava bem o cenário do grande pátio de mármore, com sua balaustrada de colunas, tendo por base leões faustosamente esculpidos. Os servidores enganavam o aborrecimento da espera falando em voz baixa das intrigas da corte e especialmente da paixão do rei pela caça, paixão tão intensa e constante que com ele só havia um meio de ser bem-visto: cheirar a pólvora.

Mas já se ouvem os coches. O porteiro brada com voz sonora: “O rei!”. Os cotos das alabardas retinem nos lajedos; os moços-fidalgos acendem os archotes e os quatro veículos monumentais penetram no pátio, trazendo Carlos III1, o príncipe das Astúrias e o embaixador de Nápoles, convidado naquele dia.

Entrando em seu quarto, o rei dirigiu-se alegremente ao velho criado que o acompanhava havia desde os primeiros anos da mocidade:

Vamos! Depressa! Muda-me toda a roupa, que a chuva nos apanhou pouco além da Zarzuela e não trago um fio enxuto.

O criado apressou-se em torno dele, mas foi logo dizendo:

Veio um correio do governador del Pardo com uma notícia importante. Pelo menos, disse ele que era importante. O papel ali está sobre a mesa.

Carlos III continuou a mudar de roupa com calma. Mas, quando, já vestido, aproximou-se da mesa, e abriu o papel, teve um alvoroço.

Hilário, Hilário! — bradou. — Sabes o que me anuncia o governador? Apareceu um lobo no Pardo… Depressa! Manda chamar o monteiro-mor.... Ainda há tempo para tomar todas as providências e amanhã mesmo poderei forçá-lo.

Senhor — balbuciou timidamente o camareiro… — Amanhã…

Que tem amanhã?

É Quinta-feira Santa.

Por São Januário, tinha-o esquecido.

Dois dias apenas em todo o ano o rei dava tréguas a coelhos e javalis, lobos e perdizes: Quinta e Sexta-feira Santas. Fora desses, nem trovoadas nem neve conseguiam privá-lo de andar por montes e vales de arcabuz ao ombro. Maldito lobo! Em que dia se lembrava de aparecer…

Em todo caso — murmurou o rei, afinal —, em todo caso, manda avisar ao monteiro. Ficarão tomadas providências e eu terei paciência…

*

Mas a expressão de seu rosto denunciava que não saberia tê-la. A manhã do sábado de gloria amanheceu senão radiante pelo menos com algum sol, surgindo entre as últimas nuvens, como se o tempo quisesse compensar ao rei a privação de seu prazer favorito durante dois dias. Manda a verdade dizer que ele passara essas quarenta e oito horas em um estado de irritação, que fez tremer toda a corte e tirou em grande parte o brilho das cerimônias religiosas.

Mas, no sábado, o rosto do rei amanheceu como o céu, cheio de luz. A ideia de ir em busca do lobo punha-o alegre como uma criança.

Ainda bem não tinha rompido o dia, já ele, com o príncipe das Astúrias e o duque de Medina Celli, partia no coche puxado por seis briosas mulas, a caminho da floresta del Pardo, onde se postaram de arcabuz em punho no ponto indicado pelo monteiro, diante da vereda, onde, acossado pelos guardas, o lobo teria de passar.

Não tardou muito. Apenas três horas tiveram de esperar. A fera surgiu, esguia, com os olhos em fogo. Veio direto ao rei e parou diante dele, tão quieta e séria, que o soberano até hesitou em disparar um tiro tão fácil.

Mas o lobo parecia desafiá-lo com sua imobilidade hierática; o rito partiu, com estrondo e fumarada.

Carlos III não esperou sequer que o ar ficasse limpo e precipitou-se bradando:

Com este são mil cento e trinta.

Porque ele anotava zelosamente, desde muitos anos, os lobos que abatia e tinha tanto orgulho da importância dessa lista como da extensão de seus Estados.

Mas suas mãos não encontraram o corpo exânime e sangrento que esperavam. Deu alguns passos para um e outro lado. O ar estava agora inteiramente livre da fumaça, que se perdera nas alturas: o chão estava também unido e perfeito: nem marcas de sangue tinha. Em torno, os fidalgos e monteiros asseguravam que o animal não fugira.

O assombro foi geral, imenso, e ninguém pôs em dúvida a palavra do arcebispo de Toledo, quando sua Eminência afirmou que o lobo viera apenas, por ordens do Alto, experimentar a piedade do rei, oferecendo-lhe a tentação de romper o respeito devido aos dias da Paixão do Senhor.



Tradução de autor desconhecido.

Fonte: “Eu Sei Tudo”, edição de setembro de 1920.



Nota:

1 Carlos III (1716 – 1788) foi rei da Espanha ente 1759 e 1788.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

A MULHER-FANTASMA - Conto Clássico Fantástico - Brian Hayes

LADRÕES DE CADÁVERES - Narrativas Verídicas de Horror - Henry Frichet