OS TRÊS INSTRUMENTOS DA MORTE - Conto Clássico de Mistério - G. K. Chersterton
OS TRÊS
INSTRUMENTOS DA MORTE
G. K. Chersterton
(1874 – 1936)
Tradução de autor anônimo do séc. XX.
Tanto
por causa de sua profissão, como por estar convencido, o padre Brown sabia
melhor do que qualquer de nós que a morte dignifica o homem. Contudo, teve um sobressalto
quando, ao amanhecer, vieram dizer-lhe que Sir Aaron Armstrong tinha sido
assassinado.
Havia
algo de incongruente e absurdo na ideia de que uma figura tão agradável e
popular tivesse a menor ligação com a violência brutal do assassínio. Porque
Sir Aaron Armstrong era amável até ao excesso e sua popularidade era quase lendária.
Parecia uma coisa tão impossível como imaginar-se que “Sunny Jim” se enforcara
ou que o pacífico “Mr. Pickwick”, de Dickens, se matara no manicômio de Hanwell.
Porque, apesar de Sir Aaron, como filantropo que era, ter de conhecer o lado
negro de nossa sociedade, orgulhava-se de fazê-lo da maneira mais brilhante possível.
Seus discursos políticos e sociais eram cascatas de anedotas e risadas; sua
saúde era incomparável, sua ética puro otimismo. E tratava do problema da
embriaguez (seu tópico favorito) com aquela alegria perene, ainda que monótona,
que é muitas vezes o sinal de uma absoluta e proveitosa abstinência.
A
história corrente de sua conversão era muito conhecida nos círculos e púlpitos
mais puritanos: como desde pequeno tinha sido arrastado da teologia escocesa
para o whisky escocês; como se redimira de um e do outro e chegara a ser
— como dizia modestamente — o que era. A verdade é que sua barba branca e
basta, suas faces de querubim, seus óculos faiscantes e os inúmeros banquetes e
congressos a que assistia tornava difícil crer-se que tivesse jamais sido uma criatura
tétrica como um ébrio ou um calvinista. Não, aquele era certamente o mais
alegre de todos os homens.
Vivia
no pitoresco arrabalde de Hampstead, numa bela casa, alta porém não grande; uma
dessas torres modernas tão prosaicas. A mais estreita de suas estreitas
fachadas dava para a verde rampa da estrada de ferro e na casa sentiam-se as
trepidações do trem. Sir Aaron Armstrong, como dizia alegremente, não tinha
nervos. Mas se o trem a miúdo fazia trepidar a casa, naquela manhã trocaram-se
os papéis e foi a casa que fez trepidar o trem. A locomotiva diminuiu a
velocidade e, finalmente. parou justamente diante do lugar onde um ângulo da
casa avançava sobre a grama. Geralmente, as máquinas param pouco a pouco, mas a
causa real daquela parada foi muito rápida. Um homem, rigorosamente vestido de
preto, sem esquecer — como registram as testemunhas — o fúnebre detalhe das
luvas pretas, apareceu no alto do terrapleno diante da máquina e agitou as mãos
negras como asas sinistras dum moinho de vento. Isto não teria bastado para
deter um trem, mesmo muito vagaroso; mas aquele homem deu um grito a que depois
todos se referiam como tendo sido algo inaudito e sobrenatural. Foi um desses
gritos horrivelmente distintos, ainda que não se entendesse o que significava.
As palavras articuladas por aquele homem foram: “Um assassínio!”.
Mas
o maquinista assegura que, mesmo se não tivesse entendido as palavras, teria
parado, ouvindo aquele berro penetrante e horrível.
Uma
vez parado o trem, bastava um olhar para ver as circunstâncias do acidente. O
homem de luto era Magnus, o lacaio de Sir Aaron Armstrong. O baronete, com seu
habitual otimismo, troçava as luvas pretas do seu lúgubre criado; mas, agora,
qualquer troça teria sido inoportuna.
Dois
ou três curiosos apearam-se, galgaram a cerca enegrecida pelo fumo, e viram, quase
ao pé do terrapleno, o corpo de um velho com um roupão amarelo forrado de
encarnado vivo. Numa perna via-se um pedaço de corda, enrolado, talvez por ocasião
duma luta. Tinha uma ou duas manchas de sangue; muito poucas. Mas o corpo
estava dobrado numa posição impossível para um corpo vivo. Era Sir Aaron
Armstrong. Pouco-depois, apareceu um homem forte com uma bela barba, em quem
alguns viajantes reconheceram o secretário do morto, Patrick Royce, em tempo
muito célebre na sociedade boêmia e ainda famoso nessa arte. O secretário
mostrou a mesma angústia que o criado, de um modo mais vago, ainda que mais
convincente. Quando, um instante depois, apareceu no jardim a terceira figura
da casa, Alice Armstrong, a filha do morto, vacilante e indecisa, o maquinista
resolveu agir. Ouviu-se um silvo e o trem partiu para pedir socorro na próxima
estação.
E
foi então que. A pedido de Patrick Royce, o enorme secretario, ex-boêmio, bateu-se
à porta do padre Brown. Royce era irlandês por nascimento e pertencia a essa espécie
de católicos que só se lembram da religião nos momentos de angústia. Mas o desejo
de Royce não teria sido tão depressa satisfeito se um dos detectives oficiais,
que se ocuparam do assunto, não fosse amigo e admirador do detetive não oficial
de nome Flambeau... Porque, é claro, não é possível ser-se amigo de Flambeau
sem ouvi-lo contar mil histórias e façanhas do padre Brown. Assim, quando o jovem
detective Merton levava o sacerdote para o campo junto à via férrea, sua
conversa foi mais confidencial do que teria sido entre dois desconhecidos.
—
Pelo que me parece — disse ingenuamente Mr. Merton —, temos que desistir de
desembaraçar esta meada. Não se pôde suspeitar de ninguém. Magnus é um louco solene;
demasiadamente louco para ser assassino. Royce era o melhor amigo do baronete,
há muitos anos. Sua filha adorava-o. Além disto, o caso parece absurdo. Quem
poderia ter empenho em matar este velho tão simpático? Quem queria manchar as
mãos no sangue do senhor dos brindes? Seria o mesmo que matar São Nicolau.
—
Sim. Era um lar muito simpático — concordou o padre. — Pelo menos, foi sempre
assim enquanto viveu. Acha que continuará a ser o mesmo, tão alegre?
Merton,
pasmo, lançou-lhe um olhar interrogador.
—Depois
de ele morto?
—
Sim – continuou, impassível, o sacerdote. — Ele era muito alegre. Mas transmitiria
aos demais sua alegria'? Haveria nesta casa outra pessoa alegre a não ser ele?
Na
mente de Merton, pareceu abrir-se uma janela, deixando penetrar essa estranha
luz de surpresa que nos permite darmo-nos conta do que sempre estivemos vendo.
Estivera a miúdo na casa de Armstrong para executar, nas suas funções policiais,
certos caprichos do velho filantropo. E, agora, pensando nisso, lembrou-se de
que aquela casa era triste. As salas muito altas e frias, com uma mesquinha
decorarão provinciana; os corredores varridos por correntes de ar e iluminados
por uma luz elétrica mais fria do que a Lua. E apesar de, em troca, o rosto
rosado e a barba prateada arderem como fogueiras em todas as salas e
corredores, não deixavam calor atrás de si. Sem dúvida, esse defeito da casa
era mesmo devido à vivacidade e exuberância do seu proprietário. A ele não
fazia falta nem os aquecedores, nem as lâmpadas: levava consigo a luz e o
calor. Mas, recordando as outras pessoas que ali viviam, Merton teve de
confessar que não eram mais do que sombras do seu dono. O extravagante lacaio
com as luvas pretas era um pesadelo. Royce, o secretario, homem forte, um
grande boneco, com barbas e a ampla testa sulcada de rugas prematuras, era de
natural bom, mas sua bondade era triste e lânguida, e tinha esse ar vago dos
que sentem ter fracassado. Quanto à filha de Armstrong, parecia incrível que o
fosse, tão pálida era e de aspecto tão delicado. Era graciosa, porém sofria dum
tremor constante. Merton perguntava-se se aquele tremor era devido ao trepidar
do trem.
—
Vê o senhor — disse o padre num tom de voz modesto — que não é certo ter sido a
alegria de Armstrong comunicativa. Diz o senhor que a ninguém podia ter ocorrido
dar a morte a um homem tão feliz. Não estou muito certo disso: ne nos
inducas in tentationem[1].
Se alguma vez me tivesse atrevido a matar alguém, teria sido a um otimista — acrescentou
com simplicidade.
—
Como? — exclamou Merton rindo-se. — Parece-lhe que a alegria de um é desagradável
aos demais?
— O riso frequente agrada — respondeu o padre
—, mas não creio que o sorriso perene agrade. A alegria sem humorismo é
fatigante.
Caminharam
por algum tempo pela rampa coberta de grama a da via férrea e, ao chegarem ao
limite da enorme sombra projetada pela casa de Armstrong, o padre Brown disse,
de repente, como quem afasta de si um mau pensamento, não o querendo oferecer
ao seu interlocutor:
—
É claro que a bebida, em si mesma, não é boa nem má. Mas não posso deixar de
pensar que aos homens como Armstrong conviria tomar de tempos em tempos um
trago para entristecer um pouco.
O
chefe de Merton, um detetive muito competente, já grisalho, de nome Gilder,
aguardava junto à via férrea a chegada do médico legista, conversando com Patrick
Royce, cujos largos ombros e cabelos eriçados o dominavam inteiramente. E isto
se notava mais porque Royce sempre andava curvado, entregando-se aos seus
deveres domésticos e secretariais com um ar de pesada humildade, como um búfalo
que arrasta um carro. Vendo o sacerdote, levantou a cabeça com evidente
satisfação e afastou-se com ele alguns passos. Entretanto, Merton dirigia-se ao
seu superior respeitosamente, porém com uma certa impaciência de moço.
—
Pois bem, quando o trem partiu, esse homem partiu também. Um criminoso muito
calmo, não é? Olha que é coragem fugir no mesmo trem que ia avisar a polícia!
—
Mas, tem a certeza de que foi ele que matou o patão?
—
Sim, filho, absoluta. E pela simples razão de ter fugido levando vinte mil
libras em títulos que estavam no escritório do seu amo. Nisto tudo só o que
merece o nome de mistério é a forma como cometeu o assassínio. O crânio parece
ter sido fraturado com a arma pesada, mas essa arma não aparece e não é
provável que o assassino a tenha levado com ele, a não ser que fosse bastante
pequena para não se notar.
—
Ou bastante grande para não ser notada — disse o sacerdote com uma risadinha.
Gilder
voltou-se e perguntou secamente a Brown o que queria dizer.
—
Nada, uma tolice, talvez — respondeu o padre. — Uma coisa que parece incrível.
Mas afigura-se-me que Sir Armstrong foi morto com uma clava gigantesca, uma formidável
clava verde, grande demais para ser notada, e que se chama terra. Em outras
palavras, que fraturou o crânio de encontro a esta mesma relva verde que
estamos pisando.
—
Como? — perguntou vivamente o detetive.
O
padre Brown voltou o rosto para a casa, pestanejando como um desesperado.
Seguindo-lhe
o olhar, os outros viram que, no alto da parede, como um olho único, havia uma janela
aberta.
Gilder
considerou a janela com o cenho carregado e disse:
—
De fato, é possível. Mas não compreende como fala com tanta segurança.
Brown
abriu os olhos pardos vazios.
—
Como? — indagou. — Na perna desse homem há um pedaço de corda enrolada... E não
veem o outro pedaço, lá em cima, no canto da janela?
Naquela
altura, o pedaço de corda parecia um tênue fio, mas o astuto e velho
investigador se satisfez.
—
Está certo, cavalheiro. Creio que acertou.
Nesse
momento, um trem especial, com um só vagão, entrou na curva da linha à esquerda
e, parando, dele apeou-se um outro contingente de policiais, entre os quis aparecia
Magnus, o criado evadido.
—
Com a breca! Prenderam-no! —exclamou Gilder e precipitou-se ao encontro do
grupo. — E o dinheiro? — perguntou a um dos policiais. — Encontraram-no também?
O
policial, com uma expressão regular, respondeu:
—
Não.
E
acrescentou:
—
Pelo menos, nele não.
—
Quem é o inspetor? — perguntou Magnus.
E,
ouvindo-lhe a voz, todos compreenderam que tivesse podido fazer parar o trem.
Era um homem feio, de cabelos pretos estirados, rosto sem cor, a quem os olhos
e a boca que eram umas verdadeiras fendas, davam um certo aspecto oriental. Sua
origem e seu nome foram sempre um mistério. Sir Aaron o tinha tirado do lugar
de criado num hotel de Londres e, segundo as más línguas, de outras ocupações piores.
Sua voz era tão viva quanto sua cara era morta. Quer fosse devido ao esforço
para bem pronunciar uma língua que não era a sua, quer fosse devido ao seu amo
ter sido um pouco surdo, sua voz adquirira uma sonoridade, uma estranha
penetração. Quando falava, todos estremeciam.
—
Sempre receei isto — disse em voz alta. — Meu pobre amo ria-se de meu traje de
luto e eu sempre me dizia que, assim, estava preparado para seus funerais.
E
fez uns gestos com mãos enluvadas de preto.
—
Sargento! — disse o inspetor, olhando furioso para aquelas mãos negras. — Como
é que não algemou este indivíduo, que parece tão perigoso?
— Senhor — respondeu sargento, desconcertado —,
não sei se devo fazê-lo.
—
Como assim? Não foi senhor quem o prendeu?
Pela
fenda, que era a boca do criado, passou uma careta desdenhosa e o silvo do trem
que se aproximava pareceu comentar oportunamente a intenção burlesca
O
sargento replicou gravemente.
—
Nós o prendemos quando saía do posto policial de Highgate, onde acabava de
depositar todo o dinheiro do seu amo nas mãos do inspector Robinson.
Gilder
contemplou, pasmo, o lacaio.
—
E por que fez isso? — perguntou-lhe.
—
Porque havia de ser! Para pôr o dinheiro fora do alcance do criminoso —
respondeu, placidamente, Magnus.
—
O dinheiro de Sir Aaron estava seguro nas mãos da família — observou-lhe o
inspetor.
O
final desta frase pareceu perder-se com o ruído do trem que chegava, barulhento
e chiando. Mas, dominando o ruído infernal a que aquela triste mansão estava
sujeita periodicamente, ouviram-se as palavras claras e cortantes de Magnus.
—Tenho
razões para desconfiar da família Armstrong.
Todos,
apesar de imóveis, sentiram vagamente a presença de um recém-chegado. Merton
voltou-se e não se surpreendeu, deparando com o rosto pálido da filha do
assassinado, que assomava por cima do ombro do padre Brown. Era jovem e bela,
mas seus cabelos castanhos eram tão baços e sem matizes que, na sombra, à
primeira vista, pareciam grisalhos.
—
Contenha-se — murmurou Royce. — Vai assustar Miss Armstrong.
—
Creio que sim — disse o da voz forte.
A
moça retrocedeu. Todos olharam-na surpresos, e ele continuou:
—
Já estou acostumado aos tremores de Miss Armstrong. Tenho-a visto tremer muitas
vezes por muitos anos. Uns diziam que tremia de frio; outros, de medo; mas eu
sei que tremia era de ódio e de perverso rancor... Esta manhã, os diabos
estiveram em festa. A não ser por mim, a estas horas, ela estaria longe, em
companhia de seu amante e com todo o dinheiro de meu amo. Desde que meu pobre
amo proibiu-a de casar-se com esse bêbado...
—Basta!
— disse Gilder, com energia — Não nos importam suas suspeitas ou imaginações. Enquanto
não apresentar provas irrefutáveis, sua na opinião...
— Oh, fique descansado, que apresentarei
provas evidentes! — interrompeu Magnus, com sua voz estridente. — O senhor terá
que chamar-me para depor, senhor inspetor, e eu terei de dizer a verdade. E a
verdade é esta: um momento depois que este ancião foi atirado pela janela,
entrei correndo no quarto e encontrei a senhorita desmaiada por terra com um
punhal ensanguentado na mão. Permita-me, também, entregá-lo à autoridade
competente.
E
tirou de dentro do casaco uma comprida faca com uma mancha vermelha, adiantando-se
para entregá-la respeitosamente ao sargento. Depois retrocedeu e as fendas dos
olhos desapareceram da cara numa enorme careta chinesa.
Merton
sentiu-se nauseado com aquela careta e disse ao ouvido de Gilder:
—T
emos que ouvir de Miss Armstrong o que tem a dizer contra esta acusação, não
acha?
O
padre Brown levantou, de súbito, um rosto tão absurdamente fresco como se
acabasse de lavá-lo.
—
Sim — disse com alegre candura. — Mas miss Armstrong dirá algo contra a acusação?
A
moça deixou escapar um grito curto e estranho. Todos se voltaram para ela, que
estava rígida, como se paralisada. Somente na moldura de seus cabelos castanhos
ressaltava um rosto animado pela surpresa. Dir-se-ia que acabavam de enforcá-la.
—
Este homem — disse Mr. Gilder gravemente —, acaba de declarar que encontrou a
senhorita empunhando uma faca e desmaiada, momentos depois do assassínio.
—
Disse a verdade — respondeu Alice.
Todos
quedaram pasmos e, por fim, viram que Patricio
Royce avançava sua enorme cabeçorra e dizia estas palavras singulares:
—
Mas não me hão de levar antes de ter um gosto.
E,
erguendo os largos ombros, descarregou um murro de ferro na cara mongólica de
Magnus, derribando-o chato como uma coisa inerte.
Dois
ou três policiais puseram, no mesmo instante, as mãos sobre Royce.
—
Mr. Royce — gritou Gilder, com autoridade—, está preso por agressão!
—
Não — respondeu o secretario com uma voz como um gongo. — Terá que prender-me
por homicídio.
Gilder
olhou, alarmado, para o homem caído, mas, como este estava se levantando, e não
sofrera grande dano, perguntou secamente:
—
Que quer o senhor dizer?
—
Que é verdade o que disse esse homem — explicou Royce. — Que Miss Armstrong
caiu desmaiada com um punhal na mão. Mas não o empunhara para matar seu pai, e
sim para defendê-lo.
—
Para defendê-lo? — repetiu Gilder gravemente. — De quem?
—
De mim — foi a resposta.
Alice
olhou-o com uma expressão singular e desconcertada. Depois, disse-lhe em voz
fraca:
—
Depois de tudo, alegro- me, vendo que é valente.
—
Subamos — disse Patricio Royce, em voz surda. — E lhes mostrarei como se passou
esta coisa horrível.
O
quarto em cima, que era o aposento particular do secretário — uma célula
diminuta para tão corpulento eremita —, apresentava, de fato, sinais de ter
sido teatro de uma cena violenta. No centro, estava um revólver e, ao lado,
rolara uma garrafa de whisky, aberta, mas não completamente vazia. O plano
da pequena mesa caíra e estava pisado. E uma corda, igual à que estava presa ao
pé do morto, pendia da janela. Na chaminé, havia dois vasos quebrados e um
outro sobre o tapete.
—
Eu estava embriagado — disse Royce, e esta simples confissão daquele homem
prematuramente abatido tinha todo o patético do primeiro pecadilho infantil. —
Todos me conhecem — continuou em voz rouca. — Todos sabem como comecei a vida e
parece-me que vou acabá-la do mesmo modo. Em outros tempos, diziam que eu era inteligente
e podia ter sido feliz. Armstrong salvou da taverna este despojo de cérebro e
de corpo, e, a seu modo, o pobre homem foi sempre bondoso comigo. Somente não
queria deixar-me casar com Alice, e todos dirão que tinha razão. Os senhores
podem tirar as conclusões que quiserem e não é preciso que eu entre em
detalhes. Ali está a garrafa de whisky meio vazia; sobre o tapete, meu revólver,
completamente descarregado. A corda que se encontrou no cadáver é a corda de
minha mala, e o corpo foi arrojado de minha janela. Não é preciso que os
detectives se entreguem a conjecturas; tudo está esclarecido. Entrego-me à
forca e basta, por Deus!
A
um sinal discreto, a polícia rodeou o robusto secretário para levá-lo preso;
mas esta operação foi interrompida pela muito estranha atitude do padre Brown.
Este, de gatas no tapete junto da porta, parecia entregue a esquisitas orações.
Como não se incomodava que reparassem no que fazia, voltou a larga cara
radiante, como se fosse um quadrúpede com cabeça humana.
— Vamos — disse com amável simplicidade. —
Isto se complica. A princípio, senhor inspetor, o senhor dizia que não aparecia
arma alguma, mas agora estamos encontrando muitas. Temos já a faca para
apunhalar, a corda para estrangular e o revolver para atirar; e, contudo, temos
que concordar que o pobre senhor partiu o crânio caindo da janela. Isto não vai
bem. Não tem nexo.
E
sacudiu a cabeça junto do chão, como um cavalo pastando. O inspector Gilder
abriu a boca, com a intenção de dizer alguma coisa muito séria, mas, antes que
pudesse articular uma palavra, a figura grotesca no chão dizia com a maior
placidez:
—
E estas três coisas inexplicáveis! Primeiro, estes buracos no tapete, por onde
entraram os seis tiros. Quem teria a ideia de disparar contra o tapete? Um ébrio
dispara contra o inimigo que gesticula diante dele. Mas não se preocupa com
seus pés, nem lhe ataca as chinelas. E depois a corda.
E,
tendo acabado de examinar o tapete, ergueu-se, metendo as mãos nos bolsos, mas
conservando-se ajoelhado.
—Em
que grau de embriaguez é possível a um homem atar a corda ao pescoço do seu
inimigo, para depois desatá-la e amarrá-la na perna? Royce não estava tão ébrio
que fizesse esse disparate, porque então estaria agora dormindo como uma pedra.
E, finalmente, a garrafa de whisky, o que é o mais claro de tudo: quer
fazer-nos crer que aqui houve uma luta de dipsômano para apoderar-se do whisky,
que o senhor conseguiu tomar a garrafa e que depois atirou-a a um canto,
deixando derramar-se metade e não ligando ao resto. E isto parece-me pouco natural
num viciado.
Levantou-se
ligeiro e disse ao pressuposto assassino:
—
Sinto muito, meu bom senhor, mas isso que nos conta é uma sandice.
—
Senhor — disse Alice Armstrong ao sacerdote. — Posso falar-lhe a sós um
instante?
Este
pedido obrigou o sacerdote a retirar-se para o quarto ao lado; e, antes de interrogá-la,
a moça disse-lhe com patética precisão.
—
O senhor é um homem inteligente e procura salvar Patricio, compreendo-o. Mas é
inútil. Este caso é muito sombrio e, quanto mais indícios encontrar, menos
possibilidade haverá de salvação para o infeliz a quem amo.
—
Por quê? — perguntou o padre.
—
Porque eu mesma o vi cometer o crime!
—
Ah! — disse Brown, impassível.
—
E o que fez ele?
—
Eu estava neste quarto — explicou ela. — Esta e aquela porta estavam fechadas.
De repente, ouvi repetirem diversas vezes: “Inferno, inferno!”, e, pouco depois,
as duas portas vibraram com a primeira detonação do revolver. Seguiram-se mais três
detonações antes que eu pudesse abrir uma e outra porta. O quarto estava cheio
de fumaça e o revolver fumegava na mão do meu pobre e louco Patrick. E eu o vi
com meus próprios olhos dar o ultimo tiro assassino. Depois, saltou sobre meu pai,
que, cheio de terror, estava trepado na janela, e, segurando-o, tratou de estrangulá-lo
com a corda, passando-lha pela cabeça, mas deslisou pelos ombros e foi cair,
enrolando-se-lhe na perna. Patrick puxou-a como um louco, e eu, apanhando uma
faca que estava no chão, menti-me entre eles, logrando cortá-la antes de cair
desmaiada.
—
Estou compreendendo — disse o padre, com a mesma cortesia impassível. — Muito
obrigado.
E,
enquanto ela desfalecia ao invocar aquelas recordações, o sacerdote
apressava-se a voltar para onde estavam os outros. Ali encontrou Gilder e
Merton a sós com Patrick Royce, que estava sentado e algemado, e, dirigindo-se
ao inspetor, perguntou-lhe:
—
Posso falar ao preso na sua-presença? E permite que lhe tirem as algemas por um
instante?
—
É um homem muito forte — disse Merton em voz baixa. —Para que quer que as tire?
—
Porque quero ter a honra de dar-lhe um aperto de mão — respondeu humildemente o
sacerdote.
Os
dois detectives se entreolharam surpresos e o padre Brown acrescentou:
—
Cavalheiro, não quer dizer-lhes como tudo aconteceu?
O
homem algemado balançou negativamente a cabeça hirsuta e, então, o sacerdote
declarou impaciente:
—
Pois direi eu. A vida particular é mais importante do que a reputação pública.
Vou salvar o vivo e deixar que os mortos enterrem os mortos.
Dirigiu-se
à janela fatal e, debruçando-se, disse:
—
Disse que havia aqui muitas armas para uma só morte. Agora devo retificar: aqui
não houve armas porque não foram empregadas para causar a morte. Todos estes
instrumentos terríveis: o nó corrediço, o punhal sangrento, o revólver,
serviram só como instrumentos da mais estranha caridade. Não foram empregados
para matar Sir Aaron, e sim para salvá-lo.
—
Para salvá-lo? — exclamou Gilder.
—
E de quê?
—
Dele próprio — respondeu o padre. — Tinha a mania do suicídio.
— O quê? — perguntou Merton, incrédulo.
—
E sua Religião da Alegria?...
—
É uma religião cruel — replicou o sacerdote, olhando pela janela. — Não pôde
chorar um pouco como choraram seus pais! Sua mente se endureceu, suas opiniões
se tornaram cada vez mais frias. Sob a máscara alegre escondia-se o espirito
vazio do ateu. Finalmente, para conservar diante do público essa alegria profissional,
voltou ao vício da embriaguez, que abandonara havia tanto tempo. Mas as bebidas
alcoólicas são terríveis para um abstêmio sincero, porque lhe proporcionam
visões desse inferno psicológico, contra o qual trata de pôr os outros em
guarda. O pobre Sr. Armstrong encontrou-se mergulhado nesse inferno. E, esta
manhã, estava em tal estado que se sentou aqui, gritando que estava no inferno,
e com a voz tão transtornada que sua própria filha não a reconheceu. Assaltou-o
a loucura da morte e, com agilidade de macaco, própria dos maníacos, rodeou-se
de instrumentos de morte: o laço corrediço, o revolver de seu amigo e a faca.
Royce, entrando casualmente, compreendeu o que se passava e tentou intervir.
Atirou a faca no chão, arrebatou-lhe o revólver e, sem tempo para tirar-lhe as
balas, disparou os seis tiros para o chão. O suicida viu, ainda, outra
possibilidade de morte e quis atirar-se pela janela. O salvador fez, então, a
única coisa possível: segurou-o e tratou de amarrá-lo por uma perna com a
corda. A princípio, ele arranhou o pulsos de Royce e é esse todo o sangue que aparece.
Porque, suponha que os senhores notaram que, apesar de seu punho ter deixado
sangue na cara do criado, não o feriu. E a pobre moça, antes de desmaiar,
conseguiu cortar a corda, sustendo seu pai, que saiu por esta janela para a
eternidade.
Fez-se
silencio e depois ouviu-se o estalido metálico quando Gilder abriu as algemas
de Patricio Royce, a quem disse:
—
Devo dizer-lhe quanto sinto, cavalheiro. O senhor e essa moça valem mais do que
o suicídio de Armstrong.
—
Que o diabo leve Armstrong! — gritou brutalmente Royce. — Não compreendem que
era preciso que ela não soubesse?
—
Que não soubesse o quê? —perguntou Merton.
—
Como o quê? Que foi ela quem matou o pai! — rugiu o outro. — Se não fosse ela,
estaria vivo e, se souber, enlouquecerá.
— Não o creio — observou Brown apanhando o
chapéu. — Ao contrário, creio que devo dizer-lhe. Nem o mais funesto engano
envenena tanto a vida como um aleive. E creio, também, que, mais para diante, o
senhor e ela poderão ser felizes. E vou-me embora: tenho que ir à Escola dos
Surdos-Mudos.
Quando saiu, um conhecido de Highgate deteve-o
para dizer-lhe:
—
O médico acaba de chegar. Vai começar o exame.
—
Tenho que ir à Escola dos Surdos-Mudos — disse o padre. — Sinto muito, mas não
posso assisti-lo.
Fonte: A Cigarra/RJ,
edição de junho de 1940.
Ilustração de Sydney
Seymour Lucas (1878 - 1954).
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