OS TRÊS INSTRUMENTOS DA MORTE - Conto Clássico de Mistério - G. K. Chersterton


 

OS TRÊS INSTRUMENTOS DA MORTE

G. K. Chersterton

(1874 – 1936)

Tradução de autor anônimo do séc. XX.

 

Tanto por causa de sua profissão, como por estar convencido, o padre Brown sabia melhor do que qualquer de nós que a morte dignifica o homem. Contudo, teve um sobressalto quando, ao amanhecer, vieram dizer-lhe que Sir Aaron Armstrong tinha sido assassinado.

Havia algo de incongruente e absurdo na ideia de que uma figura tão agradável e popular tivesse a menor ligação com a violência brutal do assassínio. Porque Sir Aaron Armstrong era amável até ao excesso e sua popularidade era quase lendária. Parecia uma coisa tão impossível como imaginar-se que “Sunny Jim” se enforcara ou que o pacífico “Mr. Pickwick”, de Dickens, se matara no manicômio de Hanwell. Porque, apesar de Sir Aaron, como filantropo que era, ter de conhecer o lado negro de nossa sociedade, orgulhava-se de fazê-lo da maneira mais brilhante possível. Seus discursos políticos e sociais eram cascatas de anedotas e risadas; sua saúde era incomparável, sua ética puro otimismo. E tratava do problema da embriaguez (seu tópico favorito) com aquela alegria perene, ainda que monótona, que é muitas vezes o sinal de uma absoluta e proveitosa abstinência.

A história corrente de sua conversão era muito conhecida nos círculos e púlpitos mais puritanos: como desde pequeno tinha sido arrastado da teologia escocesa para o whisky escocês; como se redimira de um e do outro e chegara a ser — como dizia modestamente — o que era. A verdade é que sua barba branca e basta, suas faces de querubim, seus óculos faiscantes e os inúmeros banquetes e congressos a que assistia tornava difícil crer-se que tivesse jamais sido uma criatura tétrica como um ébrio ou um calvinista. Não, aquele era certamente o mais alegre de todos os homens.

Vivia no pitoresco arrabalde de Hampstead, numa bela casa, alta porém não grande; uma dessas torres modernas tão prosaicas. A mais estreita de suas estreitas fachadas dava para a verde rampa da estrada de ferro e na casa sentiam-se as trepidações do trem. Sir Aaron Armstrong, como dizia alegremente, não tinha nervos. Mas se o trem a miúdo fazia trepidar a casa, naquela manhã trocaram-se os papéis e foi a casa que fez trepidar o trem. A locomotiva diminuiu a velocidade e, finalmente. parou justamente diante do lugar onde um ângulo da casa avançava sobre a grama. Geralmente, as máquinas param pouco a pouco, mas a causa real daquela parada foi muito rápida. Um homem, rigorosamente vestido de preto, sem esquecer — como registram as testemunhas — o fúnebre detalhe das luvas pretas, apareceu no alto do terrapleno diante da máquina e agitou as mãos negras como asas sinistras dum moinho de vento. Isto não teria bastado para deter um trem, mesmo muito vagaroso; mas aquele homem deu um grito a que depois todos se referiam como tendo sido algo inaudito e sobrenatural. Foi um desses gritos horrivelmente distintos, ainda que não se entendesse o que significava. As palavras articuladas por aquele homem foram: “Um assassínio!”.

Mas o maquinista assegura que, mesmo se não tivesse entendido as palavras, teria parado, ouvindo aquele berro penetrante e horrível.

Uma vez parado o trem, bastava um olhar para ver as circunstâncias do acidente. O homem de luto era Magnus, o lacaio de Sir Aaron Armstrong. O baronete, com seu habitual otimismo, troçava as luvas pretas do seu lúgubre criado; mas, agora, qualquer troça teria sido inoportuna.

Dois ou três curiosos apearam-se, galgaram a cerca enegrecida pelo fumo, e viram, quase ao pé do terrapleno, o corpo de um velho com um roupão amarelo forrado de encarnado vivo. Numa perna via-se um pedaço de corda, enrolado, talvez por ocasião duma luta. Tinha uma ou duas manchas de sangue; muito poucas. Mas o corpo estava dobrado numa posição impossível para um corpo vivo. Era Sir Aaron Armstrong. Pouco-depois, apareceu um homem forte com uma bela barba, em quem alguns viajantes reconheceram o secretário do morto, Patrick Royce, em tempo muito célebre na sociedade boêmia e ainda famoso nessa arte. O secretário mostrou a mesma angústia que o criado, de um modo mais vago, ainda que mais convincente. Quando, um instante depois, apareceu no jardim a terceira figura da casa, Alice Armstrong, a filha do morto, vacilante e indecisa, o maquinista resolveu agir. Ouviu-se um silvo e o trem partiu para pedir socorro na próxima estação.

E foi então que. A pedido de Patrick Royce, o enorme secretario, ex-boêmio, bateu-se à porta do padre Brown. Royce era irlandês por nascimento e pertencia a essa espécie de católicos que só se lembram da religião nos momentos de angústia. Mas o desejo de Royce não teria sido tão depressa satisfeito se um dos detectives oficiais, que se ocuparam do assunto, não fosse amigo e admirador do detetive não oficial de nome Flambeau... Porque, é claro, não é possível ser-se amigo de Flambeau sem ouvi-lo contar mil histórias e façanhas do padre Brown. Assim, quando o jovem detective Merton levava o sacerdote para o campo junto à via férrea, sua conversa foi mais confidencial do que teria sido entre dois desconhecidos.

— Pelo que me parece — disse ingenuamente Mr. Merton —, temos que desistir de desembaraçar esta meada. Não se pôde suspeitar de ninguém. Magnus é um louco solene; demasiadamente louco para ser assassino. Royce era o melhor amigo do baronete, há muitos anos. Sua filha adorava-o. Além disto, o caso parece absurdo. Quem poderia ter empenho em matar este velho tão simpático? Quem queria manchar as mãos no sangue do senhor dos brindes? Seria o mesmo que matar São Nicolau.

— Sim. Era um lar muito simpático — concordou o padre. — Pelo menos, foi sempre assim enquanto viveu. Acha que continuará a ser o mesmo, tão alegre?

Merton, pasmo, lançou-lhe um olhar interrogador.

—Depois de ele morto?

— Sim – continuou, impassível, o sacerdote. — Ele era muito alegre. Mas transmitiria aos demais sua alegria'? Haveria nesta casa outra pessoa alegre a não ser ele?

Na mente de Merton, pareceu abrir-se uma janela, deixando penetrar essa estranha luz de surpresa que nos permite darmo-nos conta do que sempre estivemos vendo. Estivera a miúdo na casa de Armstrong para executar, nas suas funções policiais, certos caprichos do velho filantropo. E, agora, pensando nisso, lembrou-se de que aquela casa era triste. As salas muito altas e frias, com uma mesquinha decorarão provinciana; os corredores varridos por correntes de ar e iluminados por uma luz elétrica mais fria do que a Lua. E apesar de, em troca, o rosto rosado e a barba prateada arderem como fogueiras em todas as salas e corredores, não deixavam calor atrás de si. Sem dúvida, esse defeito da casa era mesmo devido à vivacidade e exuberância do seu proprietário. A ele não fazia falta nem os aquecedores, nem as lâmpadas: levava consigo a luz e o calor. Mas, recordando as outras pessoas que ali viviam, Merton teve de confessar que não eram mais do que sombras do seu dono. O extravagante lacaio com as luvas pretas era um pesadelo. Royce, o secretario, homem forte, um grande boneco, com barbas e a ampla testa sulcada de rugas prematuras, era de natural bom, mas sua bondade era triste e lânguida, e tinha esse ar vago dos que sentem ter fracassado. Quanto à filha de Armstrong, parecia incrível que o fosse, tão pálida era e de aspecto tão delicado. Era graciosa, porém sofria dum tremor constante. Merton perguntava-se se aquele tremor era devido ao trepidar do trem.

— Vê o senhor — disse o padre num tom de voz modesto — que não é certo ter sido a alegria de Armstrong comunicativa. Diz o senhor que a ninguém podia ter ocorrido dar a morte a um homem tão feliz. Não estou muito certo disso: ne nos inducas in tentationem[1]. Se alguma vez me tivesse atrevido a matar alguém, teria sido a um otimista — acrescentou com simplicidade.

— Como? — exclamou Merton rindo-se. — Parece-lhe que a alegria de um é desagradável aos demais?

 — O riso frequente agrada — respondeu o padre —, mas não creio que o sorriso perene agrade. A alegria sem humorismo é fatigante.

Caminharam por algum tempo pela rampa coberta de grama a da via férrea e, ao chegarem ao limite da enorme sombra projetada pela casa de Armstrong, o padre Brown disse, de repente, como quem afasta de si um mau pensamento, não o querendo oferecer ao seu interlocutor:

— É claro que a bebida, em si mesma, não é boa nem má. Mas não posso deixar de pensar que aos homens como Armstrong conviria tomar de tempos em tempos um trago para entristecer um pouco.

O chefe de Merton, um detetive muito competente, já grisalho, de nome Gilder, aguardava junto à via férrea a chegada do médico legista, conversando com Patrick Royce, cujos largos ombros e cabelos eriçados o dominavam inteiramente. E isto se notava mais porque Royce sempre andava curvado, entregando-se aos seus deveres domésticos e secretariais com um ar de pesada humildade, como um búfalo que arrasta um carro. Vendo o sacerdote, levantou a cabeça com evidente satisfação e afastou-se com ele alguns passos. Entretanto, Merton dirigia-se ao seu superior respeitosamente, porém com uma certa impaciência de moço.

— Pois bem, quando o trem partiu, esse homem partiu também. Um criminoso muito calmo, não é? Olha que é coragem fugir no mesmo trem que ia avisar a polícia!

— Mas, tem a certeza de que foi ele que matou o patão?

— Sim, filho, absoluta. E pela simples razão de ter fugido levando vinte mil libras em títulos que estavam no escritório do seu amo. Nisto tudo só o que merece o nome de mistério é a forma como cometeu o assassínio. O crânio parece ter sido fraturado com a arma pesada, mas essa arma não aparece e não é provável que o assassino a tenha levado com ele, a não ser que fosse bastante pequena para não se notar.

— Ou bastante grande para não ser notada — disse o sacerdote com uma risadinha.

Gilder voltou-se e perguntou secamente a Brown o que queria dizer.

— Nada, uma tolice, talvez — respondeu o padre. — Uma coisa que parece incrível. Mas afigura-se-me que Sir Armstrong foi morto com uma clava gigantesca, uma formidável clava verde, grande demais para ser notada, e que se chama terra. Em outras palavras, que fraturou o crânio de encontro a esta mesma relva verde que estamos pisando.

— Como? — perguntou vivamente o detetive.

O padre Brown voltou o rosto para a casa, pestanejando como um desesperado.

Seguindo-lhe o olhar, os outros viram que, no alto da parede, como um olho único, havia uma janela aberta.

Gilder considerou a janela com o cenho carregado e disse:

— De fato, é possível. Mas não compreende como fala com tanta segurança.

Brown abriu os olhos pardos vazios.

— Como? — indagou. — Na perna desse homem há um pedaço de corda enrolada... E não veem o outro pedaço, lá em cima, no canto da janela?

Naquela altura, o pedaço de corda parecia um tênue fio, mas o astuto e velho investigador se satisfez.

— Está certo, cavalheiro. Creio que acertou.

Nesse momento, um trem especial, com um só vagão, entrou na curva da linha à esquerda e, parando, dele apeou-se um outro contingente de policiais, entre os quis aparecia Magnus, o criado evadido.

— Com a breca! Prenderam-no! —exclamou Gilder e precipitou-se ao encontro do grupo. — E o dinheiro? — perguntou a um dos policiais. — Encontraram-no também?

O policial, com uma expressão regular, respondeu:

— Não.

E acrescentou:

— Pelo menos, nele não.

— Quem é o inspetor? — perguntou Magnus.

E, ouvindo-lhe a voz, todos compreenderam que tivesse podido fazer parar o trem. Era um homem feio, de cabelos pretos estirados, rosto sem cor, a quem os olhos e a boca que eram umas verdadeiras fendas, davam um certo aspecto oriental. Sua origem e seu nome foram sempre um mistério. Sir Aaron o tinha tirado do lugar de criado num hotel de Londres e, segundo as más línguas, de outras ocupações piores. Sua voz era tão viva quanto sua cara era morta. Quer fosse devido ao esforço para bem pronunciar uma língua que não era a sua, quer fosse devido ao seu amo ter sido um pouco surdo, sua voz adquirira uma sonoridade, uma estranha penetração. Quando falava, todos estremeciam.

— Sempre receei isto — disse em voz alta. — Meu pobre amo ria-se de meu traje de luto e eu sempre me dizia que, assim, estava preparado para seus funerais.

E fez uns gestos com mãos enluvadas de preto.

— Sargento! — disse o inspetor, olhando furioso para aquelas mãos negras. — Como é que não algemou este indivíduo, que parece tão perigoso?

 — Senhor — respondeu sargento, desconcertado —, não sei se devo fazê-lo.

— Como assim? Não foi senhor quem o prendeu?

Pela fenda, que era a boca do criado, passou uma careta desdenhosa e o silvo do trem que se aproximava pareceu comentar oportunamente a intenção burlesca

O sargento replicou gravemente.

— Nós o prendemos quando saía do posto policial de Highgate, onde acabava de depositar todo o dinheiro do seu amo nas mãos do inspector Robinson.

Gilder contemplou, pasmo, o lacaio.

— E por que fez isso? — perguntou-lhe.

— Porque havia de ser! Para pôr o dinheiro fora do alcance do criminoso — respondeu, placidamente, Magnus.

— O dinheiro de Sir Aaron estava seguro nas mãos da família — observou-lhe o inspetor.

O final desta frase pareceu perder-se com o ruído do trem que chegava, barulhento e chiando. Mas, dominando o ruído infernal a que aquela triste mansão estava sujeita periodicamente, ouviram-se as palavras claras e cortantes de Magnus.

—Tenho razões para desconfiar da família Armstrong.

Todos, apesar de imóveis, sentiram vagamente a presença de um recém-chegado. Merton voltou-se e não se surpreendeu, deparando com o rosto pálido da filha do assassinado, que assomava por cima do ombro do padre Brown. Era jovem e bela, mas seus cabelos castanhos eram tão baços e sem matizes que, na sombra, à primeira vista, pareciam grisalhos.

— Contenha-se — murmurou Royce. — Vai assustar Miss Armstrong.

— Creio que sim — disse o da voz forte.

A moça retrocedeu. Todos olharam-na surpresos, e ele continuou:

— Já estou acostumado aos tremores de Miss Armstrong. Tenho-a visto tremer muitas vezes por muitos anos. Uns diziam que tremia de frio; outros, de medo; mas eu sei que tremia era de ódio e de perverso rancor... Esta manhã, os diabos estiveram em festa. A não ser por mim, a estas horas, ela estaria longe, em companhia de seu amante e com todo o dinheiro de meu amo. Desde que meu pobre amo proibiu-a de casar-se com esse bêbado...

—Basta! — disse Gilder, com energia — Não nos importam suas suspeitas ou imaginações. Enquanto não apresentar provas irrefutáveis, sua na opinião...

 — Oh, fique descansado, que apresentarei provas evidentes! — interrompeu Magnus, com sua voz estridente. — O senhor terá que chamar-me para depor, senhor inspetor, e eu terei de dizer a verdade. E a verdade é esta: um momento depois que este ancião foi atirado pela janela, entrei correndo no quarto e encontrei a senhorita desmaiada por terra com um punhal ensanguentado na mão. Permita-me, também, entregá-lo à autoridade competente.

E tirou de dentro do casaco uma comprida faca com uma mancha vermelha, adiantando-se para entregá-la respeitosamente ao sargento. Depois retrocedeu e as fendas dos olhos desapareceram da cara numa enorme careta chinesa.

Merton sentiu-se nauseado com aquela careta e disse ao ouvido de Gilder:

—T emos que ouvir de Miss Armstrong o que tem a dizer contra esta acusação, não acha?

O padre Brown levantou, de súbito, um rosto tão absurdamente fresco como se acabasse de lavá-lo.

— Sim — disse com alegre candura. — Mas miss Armstrong dirá algo contra a acusação?

A moça deixou escapar um grito curto e estranho. Todos se voltaram para ela, que estava rígida, como se paralisada. Somente na moldura de seus cabelos castanhos ressaltava um rosto animado pela surpresa. Dir-se-ia que acabavam de enforcá-la.

— Este homem — disse Mr. Gilder gravemente —, acaba de declarar que encontrou a senhorita empunhando uma faca e desmaiada, momentos depois do assassínio.

— Disse a verdade — respondeu Alice.

Todos quedaram pasmos e, por fim, viram que Patricio Royce avançava sua enorme cabeçorra e dizia estas palavras singulares:

— Mas não me hão de levar antes de ter um gosto.

E, erguendo os largos ombros, descarregou um murro de ferro na cara mongólica de Magnus, derribando-o chato como uma coisa inerte.

Dois ou três policiais puseram, no mesmo instante, as mãos sobre Royce.

— Mr. Royce — gritou Gilder, com autoridade—, está preso por agressão!

— Não — respondeu o secretario com uma voz como um gongo. — Terá que prender-me por homicídio.

Gilder olhou, alarmado, para o homem caído, mas, como este estava se levantando, e não sofrera grande dano, perguntou secamente:

— Que quer o senhor dizer?

— Que é verdade o que disse esse homem — explicou Royce. — Que Miss Armstrong caiu desmaiada com um punhal na mão. Mas não o empunhara para matar seu pai, e sim para defendê-lo.

— Para defendê-lo? — repetiu Gilder gravemente. — De quem?

— De mim — foi a resposta.

Alice olhou-o com uma expressão singular e desconcertada. Depois, disse-lhe em voz fraca:

— Depois de tudo, alegro- me, vendo que é valente.

— Subamos — disse Patricio Royce, em voz surda. — E lhes mostrarei como se passou esta coisa horrível.

O quarto em cima, que era o aposento particular do secretário — uma célula diminuta para tão corpulento eremita —, apresentava, de fato, sinais de ter sido teatro de uma cena violenta. No centro, estava um revólver e, ao lado, rolara uma garrafa de whisky, aberta, mas não completamente vazia. O plano da pequena mesa caíra e estava pisado. E uma corda, igual à que estava presa ao pé do morto, pendia da janela. Na chaminé, havia dois vasos quebrados e um outro sobre o tapete.

— Eu estava embriagado — disse Royce, e esta simples confissão daquele homem prematuramente abatido tinha todo o patético do primeiro pecadilho infantil. — Todos me conhecem — continuou em voz rouca. — Todos sabem como comecei a vida e parece-me que vou acabá-la do mesmo modo. Em outros tempos, diziam que eu era inteligente e podia ter sido feliz. Armstrong salvou da taverna este despojo de cérebro e de corpo, e, a seu modo, o pobre homem foi sempre bondoso comigo. Somente não queria deixar-me casar com Alice, e todos dirão que tinha razão. Os senhores podem tirar as conclusões que quiserem e não é preciso que eu entre em detalhes. Ali está a garrafa de whisky meio vazia; sobre o tapete, meu revólver, completamente descarregado. A corda que se encontrou no cadáver é a corda de minha mala, e o corpo foi arrojado de minha janela. Não é preciso que os detectives se entreguem a conjecturas; tudo está esclarecido. Entrego-me à forca e basta, por Deus!

A um sinal discreto, a polícia rodeou o robusto secretário para levá-lo preso; mas esta operação foi interrompida pela muito estranha atitude do padre Brown. Este, de gatas no tapete junto da porta, parecia entregue a esquisitas orações. Como não se incomodava que reparassem no que fazia, voltou a larga cara radiante, como se fosse um quadrúpede com cabeça humana.

 — Vamos — disse com amável simplicidade. — Isto se complica. A princípio, senhor inspetor, o senhor dizia que não aparecia arma alguma, mas agora estamos encontrando muitas. Temos já a faca para apunhalar, a corda para estrangular e o revolver para atirar; e, contudo, temos que concordar que o pobre senhor partiu o crânio caindo da janela. Isto não vai bem. Não tem nexo.

E sacudiu a cabeça junto do chão, como um cavalo pastando. O inspector Gilder abriu a boca, com a intenção de dizer alguma coisa muito séria, mas, antes que pudesse articular uma palavra, a figura grotesca no chão dizia com a maior placidez:

— E estas três coisas inexplicáveis! Primeiro, estes buracos no tapete, por onde entraram os seis tiros. Quem teria a ideia de disparar contra o tapete? Um ébrio dispara contra o inimigo que gesticula diante dele. Mas não se preocupa com seus pés, nem lhe ataca as chinelas. E depois a corda.

E, tendo acabado de examinar o tapete, ergueu-se, metendo as mãos nos bolsos, mas conservando-se ajoelhado.

—Em que grau de embriaguez é possível a um homem atar a corda ao pescoço do seu inimigo, para depois desatá-la e amarrá-la na perna? Royce não estava tão ébrio que fizesse esse disparate, porque então estaria agora dormindo como uma pedra. E, finalmente, a garrafa de whisky, o que é o mais claro de tudo: quer fazer-nos crer que aqui houve uma luta de dipsômano para apoderar-se do whisky, que o senhor conseguiu tomar a garrafa e que depois atirou-a a um canto, deixando derramar-se metade e não ligando ao resto. E isto parece-me pouco natural num viciado.

Levantou-se ligeiro e disse ao pressuposto assassino:

— Sinto muito, meu bom senhor, mas isso que nos conta é uma sandice.

— Senhor — disse Alice Armstrong ao sacerdote. — Posso falar-lhe a sós um instante?

Este pedido obrigou o sacerdote a retirar-se para o quarto ao lado; e, antes de interrogá-la, a moça disse-lhe com patética precisão.

— O senhor é um homem inteligente e procura salvar Patricio, compreendo-o. Mas é inútil. Este caso é muito sombrio e, quanto mais indícios encontrar, menos possibilidade haverá de salvação para o infeliz a quem amo.

— Por quê? — perguntou o padre.

— Porque eu mesma o vi cometer o crime!

— Ah! — disse Brown, impassível.

— E o que fez ele?

— Eu estava neste quarto — explicou ela. — Esta e aquela porta estavam fechadas. De repente, ouvi repetirem diversas vezes: “Inferno, inferno!”, e, pouco depois, as duas portas vibraram com a primeira detonação do revolver. Seguiram-se mais três detonações antes que eu pudesse abrir uma e outra porta. O quarto estava cheio de fumaça e o revolver fumegava na mão do meu pobre e louco Patrick. E eu o vi com meus próprios olhos dar o ultimo tiro assassino. Depois, saltou sobre meu pai, que, cheio de terror, estava trepado na janela, e, segurando-o, tratou de estrangulá-lo com a corda, passando-lha pela cabeça, mas deslisou pelos ombros e foi cair, enrolando-se-lhe na perna. Patrick puxou-a como um louco, e eu, apanhando uma faca que estava no chão, menti-me entre eles, logrando cortá-la antes de cair desmaiada.

— Estou compreendendo — disse o padre, com a mesma cortesia impassível. — Muito obrigado.

E, enquanto ela desfalecia ao invocar aquelas recordações, o sacerdote apressava-se a voltar para onde estavam os outros. Ali encontrou Gilder e Merton a sós com Patrick Royce, que estava sentado e algemado, e, dirigindo-se ao inspetor, perguntou-lhe:

— Posso falar ao preso na sua-presença? E permite que lhe tirem as algemas por um instante?

— É um homem muito forte — disse Merton em voz baixa. —Para que quer que as tire?

— Porque quero ter a honra de dar-lhe um aperto de mão — respondeu humildemente o sacerdote.

Os dois detectives se entreolharam surpresos e o padre Brown acrescentou:

— Cavalheiro, não quer dizer-lhes como tudo aconteceu?

O homem algemado balançou negativamente a cabeça hirsuta e, então, o sacerdote declarou impaciente:

— Pois direi eu. A vida particular é mais importante do que a reputação pública. Vou salvar o vivo e deixar que os mortos enterrem os mortos.

Dirigiu-se à janela fatal e, debruçando-se, disse:

— Disse que havia aqui muitas armas para uma só morte. Agora devo retificar: aqui não houve armas porque não foram empregadas para causar a morte. Todos estes instrumentos terríveis: o nó corrediço, o punhal sangrento, o revólver, serviram só como instrumentos da mais estranha caridade. Não foram empregados para matar Sir Aaron, e sim para salvá-lo.

— Para salvá-lo? — exclamou Gilder.

— E de quê?

— Dele próprio — respondeu o padre. — Tinha a mania do suicídio.

 — O quê? — perguntou Merton, incrédulo.

— E sua Religião da Alegria?...

— É uma religião cruel — replicou o sacerdote, olhando pela janela. — Não pôde chorar um pouco como choraram seus pais! Sua mente se endureceu, suas opiniões se tornaram cada vez mais frias. Sob a máscara alegre escondia-se o espirito vazio do ateu. Finalmente, para conservar diante do público essa alegria profissional, voltou ao vício da embriaguez, que abandonara havia tanto tempo. Mas as bebidas alcoólicas são terríveis para um abstêmio sincero, porque lhe proporcionam visões desse inferno psicológico, contra o qual trata de pôr os outros em guarda. O pobre Sr. Armstrong encontrou-se mergulhado nesse inferno. E, esta manhã, estava em tal estado que se sentou aqui, gritando que estava no inferno, e com a voz tão transtornada que sua própria filha não a reconheceu. Assaltou-o a loucura da morte e, com agilidade de macaco, própria dos maníacos, rodeou-se de instrumentos de morte: o laço corrediço, o revolver de seu amigo e a faca. Royce, entrando casualmente, compreendeu o que se passava e tentou intervir. Atirou a faca no chão, arrebatou-lhe o revólver e, sem tempo para tirar-lhe as balas, disparou os seis tiros para o chão. O suicida viu, ainda, outra possibilidade de morte e quis atirar-se pela janela. O salvador fez, então, a única coisa possível: segurou-o e tratou de amarrá-lo por uma perna com a corda. A princípio, ele arranhou o pulsos de Royce e é esse todo o sangue que aparece. Porque, suponha que os senhores notaram que, apesar de seu punho ter deixado sangue na cara do criado, não o feriu. E a pobre moça, antes de desmaiar, conseguiu cortar a corda, sustendo seu pai, que saiu por esta janela para a eternidade.

Fez-se silencio e depois ouviu-se o estalido metálico quando Gilder abriu as algemas de Patricio Royce, a quem disse:

— Devo dizer-lhe quanto sinto, cavalheiro. O senhor e essa moça valem mais do que o suicídio de Armstrong.

— Que o diabo leve Armstrong! — gritou brutalmente Royce. — Não compreendem que era preciso que ela não soubesse?

— Que não soubesse o quê? —perguntou Merton.

— Como o quê? Que foi ela quem matou o pai! — rugiu o outro. — Se não fosse ela, estaria vivo e, se souber, enlouquecerá.

 — Não o creio — observou Brown apanhando o chapéu. — Ao contrário, creio que devo dizer-lhe. Nem o mais funesto engano envenena tanto a vida como um aleive. E creio, também, que, mais para diante, o senhor e ela poderão ser felizes. E vou-me embora: tenho que ir à Escola dos Surdos-Mudos.

 Quando saiu, um conhecido de Highgate deteve-o para dizer-lhe:

— O médico acaba de chegar. Vai começar o exame.

— Tenho que ir à Escola dos Surdos-Mudos — disse o padre. — Sinto muito, mas não posso assisti-lo.

 

Fonte: A Cigarra/RJ, edição de junho de 1940.

Ilustração de Sydney Seymour Lucas (1878 - 1954).



[1] Não nos deixeis cair em tentação.

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