UMA MACABRA RELÍQUIA - Narrativa Verídica de Horror - Anônimo do Século XIX


 

UMA MACABRA RELÍQUIA

Anônimo do séc. XIX

 

Leu-se no Journal de Ia Nièvre:

Um funesto acidente ocorreu sábado último na estação da estrada de ferro. Um homem, com idade de sessenta e dois anos, o senhor Jardin, saindo do pátio de embarque, foi atingido pelos varais de um tílburi e, algumas horas depois, exalava o último suspiro.

A morte desse homem revelou uma história mais extraordinária, e à qual não daríamos fé se testemunhos verídicos não lhe certificassem a autenticidade. Ei-la tal como nos foi contada:

Jardin, antes de estar empregado no entreposto de tabaco de Nevers, morava no Cherlebourg de Saint-Germain-des-Bois, onde exercia a profissão de alfaiate. Sua mulher sucumbira há cinco anos nessa aldeia, atingida por uma inflamação dos pulmões, quando há oito anos deixou Saint-Germain para vir morar em Nevers. Jardin, empregado laborioso, era de uma grande piedade, de uma devoção que ele levava até à exaltação; entregava-se com fervor às práticas de sua religião; tinha em seu quarto um genuflexório no qual, frequentemente, gostava de se ajoelhar. Sexta-feira à noite, achando-se só com sua filha, anunciou-lhe, de repente, que um secreto pressentimento advertia-o de que seu fim estava próximo.

—Escuta — disse-lhe — minhas últimas vontades: Quando eu estiver morto, tu entregarás ao senhor B... a chave de meu genuflexório para que ele tire o que ali encontrar e o deposite no meu caixão.

Espantada com essa brusca recomendação, a filha de Jardin, não sabendo muito se seu pai falava seriamente, perguntou-lhe o que poderia conter o seu genuflexório. No início, recusou responder-lhe; mas como ela insistia, fez-lhe esta estranha revelação do que se achava no genuflexório: eram os restos de sua mãe! Ensinou-lhe que, antes de deixar Saint-Germain-des-Bois, fora durante a noite no cemitério. Todo o mundo dormia na aldeia; sentindo-se bem só, dirigiu-se para a tumba de sua mulher, e, armado de uma picareta, cavou a terra até o momento em que alcançou o caixão, que continha os restos daquela que fora sua companheira. Não querendo separar-se desse precioso depósito, recolheu os ossos e depositou-os no seu genuflexório.

A essa estranha confidencia, a filha de Jardin, um pouco amedrontada, mas duvidando sempre que seu pai falasse seriamente, prometeu-lhe, no entanto, se conformar com as suas últimas vontades, bem persuadida de que ele queria divertir-se à sua custa, e que no dia seguinte dar-lhe-ia a chave desse fantástico enigma.

No dia seguinte, sábado, Jardin foi para a sua oficina como de costume. Cerca de uma hora, foi enviado à estação de mercadorias para ali receber sacos de tabacos destinados à provisão do entreposto. Apenas saía da estação, e os varais de um tílburi, que não percebera no meio do atravancamento de viaturas que estacionavam no embarcadouro, vieram atingi-lo em pleno peito. Seus pressentimentos não o enganaram. Derrubado por esse choque violento, foi trazido para sua casa privado de sentimento.

 Os socorros que lhe prodigalizaram fizeram-lhe recobrar os sentidos. Então, pediu-se-lhe para deixar levantar sua roupa para examinar suas feridas; ele se opôs vivamente; insistiu-se e ele recusou-se ainda. Mas como, apesar de sua resistência, dispunha-se a lhe tirar a sua roupa, de repente, ele curvou-se sobre si mesmo: estava morto.

Seu corpo foi depositado numa cama, mas qual não foi a surpresa das pessoas presentes quando, depois de despojar Jardin de suas roupas, viu-se, sobre o seu coração, um saco de pele, retido por laços amarrados ao redor do corpo! Um golpe de lanceta, dado pelo médico chamado para constatar o decesso, separou o saco em duas partes: dele escapou uma mão seca!

A filha de Jardin, então, lembrando-se do que o pai lhe dissera na véspera, preveniu- os senhores B... e J..., marceneiros. O genuflexório foi aberto; dele se retirou um chapéu da guarda nacional. No fundo desse chapéu encontrou-se uma cabeça de morto, ainda guarnecida, com seus cabelos; depois, no fundo do genuflexório, percebeu-se, enfileirados sobre as prateleiras, os ossos de um esqueleto: eram os restos da mulher de Jardin.

Domingo último, conduziu-se para a sua derradeira morada os despejos de Jardin. Para conformar-se à vontade do sexagenário, colocaram-se em seu caixão os restos de sua mulher, e sobre seu peito a mão seca que, se podemos assim nos exprimir, durante oito anos, sentira bater seu coração.

 

Fonte: Revista Espírita, maio de 1860.

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