LENDA DA MULHER MARINHA - Conto Clássico Fantástico - Padre Manuel Bernardes


 

LENDA DA MULHER MARINHA

Padre Manuel Bernardes

(1644—1710)



Em Sicília, certo mancebo robusto e animoso, e grande nadador, saíra à prima noite a banhar-se no mar, por despicar-se, com este refrigério, das calmas do dia. Começou pois a brincar lascivamente com as ondas, e a lavar-se porventura com menos temperança do que pedia a presença de Deus, que um cristão em toda a parte deve trazer diante dos olhos. Eis aqui à luz da Lua, cujos serenos raios parecia estarem também brincando com o trêmulo espelho das águas, viu que atrás de si vinha nadando outra pessoa, e que pegando dele o procurava mergulhar como por zombaria, do modo que o costumam fazer os muchachos quando andam travesseando uns com outros nas líquidas campanhas de Tétis. Lançando-lhe pois a mão aos cabelos, a foi levando à toa para terra; onde saindo reconheceu que era mulher, e por extremo formosa. Com que os perigos chegavam a meia dúzia; ócio, noite, solidão, sexo, forma, desnudez; atirando todos a converter o nadar em danar. Assentados ambos na praia, mas ele sem soltar os cabelos, perguntou-lhe:

Quem és? — Não respondeu.

Como te chamas? —Não respondeu.

Donde vieste, e quem veio aqui contigo?

Perseverava muda.





Instou com outras várias perguntas, molificadas com carinhos; mas não teve nem aquela diminuta satisfação que pôde dar uma parede, ou um monte com os ecos que dele resultam. E ainda que este mesmo silêncio era suficiente resposta para se entender que o empenho neste caso não era seguro, todavia cegou-se a razão; e a mesma razão dita que tomemos aqui a empréstimo o silêncio, de quem ocasionou a ruína. Levou-a depois para casa, coberta com a sua capa (deixemo-lo, que depois saberá o que leva); e não se contentando com menos que com recebê-la por sua mulher; achando que sobre a sua rara formosura, bem raro era também o dote de saber calar, e não lhe conhecerem parentes. E a seu tempo teve dela um filho mui lindo. Com que vivia contente da eleição que fizera, e já não reparava no perpétuo silêncio de sua consorte, atribuindo a defeito natural com que havia nascido.

Sucedeu pois que um dia, vindo a visitá-lo um amigo seu, homem douto e prudente, lhe perguntou, a propósito do que se conversava, de que pátria e geração era sua mulher.

Até agora — respondeu ele —, não o sei, porque a pesquei do mar, como enguia.

Sorriu-se o amigo, parecendo-lhe que gracejava.

Há tantos anos — prosseguiu o marido — que vivemos bem-casados, e ainda está por ouvir-se a primeira palavra da sua boca.

Que dizeis! — tornou o amigo. —É encarecimento ou verdade lisa?

Dir-vos-ei o que passou —respondeu ele; e contou-lhe o caso todo. De que admirado, o amigo, rompeu dizendo:

Pelo que eu vejo, essa não é mulher, mas demônio em figura dela. Não estranho porém tanto a sua malícia, como a vossa demência. Eu havia de estar assim com esse peixe-mulher, sem obrigá-la a romper tão obstinado silêncio? Temos aqui as deusas Tácita e Muda, que a gentilidade dizia ser mãe dos Lares; ou outra Angerona, que pintavam com o dedo sobre a boca? Ah! Bons açoutes nela, e logo o tirará fora, e veremos claro o embuste.

O pobre marido, ouvindo estas palavras, ficou como quem começa a acordar de um pesado sonho. E logo, entrando em cólera, pegou de uma adaga nua, e ameaçou a mulher, mandando-a que falasse. E murmurando ela entre dentes umas semipalavras bárbaras, que se não deixavam entender, ele lhe intimou que, se não respondesse claramente, lhe havia de apunhalar o filho diante de seus olhos. Então se abriu mais, dizendo:

Ai de ti, miserável! Que por obrigar-me a falar, perdes uma mulher que te estava bem. Contigo ficava, se permitisses que observasse o silêncio que me encarregaram; mas já agora não me verás mais!…

Acabar estas palavras, e desaparecer, desfeita em vento, foi o mesmo. Deixa-se à nossa ponderação o assombro com que este homem ficou e viveu dali por diante.

Mas do filhinho, que faria? Não quis negá-lo por seu, uma vez que em suas ações mostrava não ser fantasma, mas de sua mesma espécie. É de crer que neste ponto se aconselharia com o mesmo amigo, que foi quem o tirou a ele de outro mar de enganos, pegando-lhe por outros cabelos de seus pensamentos comunicados; o qual lhe poderia dizer que este caso era estupendo sim, porém não singular; e que os tais, procedidos de demônio incubo, ou súcubo, não eram verdadeiramente filhos seus, senão daqueles que concorrem com os princípios da geração humana, suposto que o demônio administrasse o mais que se requeria para fomento e nutrição da criatura. Deixou contudo alguma duvida, se era ou não era este filho outro demônio em corpo aparente o caso que depois lhe sucedeu. E foi que, crescendo em anos, e seguindo os costumes do pai, quando um dia andava nadando com outros, veio de repente aquela mesma sereia, e á vista de todos o levou consigo, onde nunca mais foi visto.


Imagens: PS/Perchance.



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