VILA VERETON - Conto Insólito - O. Henry

 



VILA VERETON

O. Henry

(1862 – 1910)

Tradução de autor anônimo do séc. XX


Vila Verteon é um conto insólito, que satiriza a rivalidade doméstica após a Guerra da Secessão. De um lado, temos os sulistas — O. Henry o era — ricos, insolentes e grosseiros; do outro, os nordestinos — pobres, arrogantes e usurários. Em tudo, paira, sob a pena ágil do grande contista norte-americano, a ironia, à qual se mescla uma macabra acidez.


 — Você vai, Penelope? — perguntou Cyrus.

É um dever — repliquei. — Considero uma grande missão ir ao Texas para esclarecer na medida do possível a cega população local. Serei bem paga e, se puder transmitir àqueles selvagens um pouco da nossa cultura, sentir-me-ei feliz.

Bem, adeus, então — disse-me Cyrus, estendendo-me a mão.

Nunca o vira agitado por paixão maior.

Minha mão demorou na sua um segundo e depois o trem partiu, levando-me para o meu novo campo de atividade.

Cyrus e eu éramos noivos havia quinze anos. Cyrus era professor de química numa universidade do Leste. Eu recebera uma proposta de quarenta dólares por més para leccionar numa escola particular numa fazenda do Texas — e aceitara-a. Cyrus ganhava vinte dólares por mês. Esperávamos havia quinze anos que as nossas economias nos permitissem casar. Aproveitei aquela oportunidade de ir ganhar mais no Texas, resolvida a viver economicamente; com mais quinze anos, se conservasse a minha situação, poderíamos realizar o nosso matrimônio.

Não teria que pagar hospedagem, pois os DeVeres, uma das mais antigas e aristocráticas famílias do Sul, me ofereciam um lugar m sua casa. Havia inúmeras crianças na fazenda e o desejo de seus donos era manter uma professora competente que as instruísse.

Saltei numa estação chamada Houston e encontrei um carro à minha espera, para me conduzir a Vereton, para onde me destinava, situada a seis milhas dali.

O cocheiro era um homem negro, que se aproximou respeitosamente de mim e me perguntou se o meu nome era Miss Cook. Minha mala foi colocada em um veículo — uma velha carros;a puxada por duas miseráveis mulas — e eu me sentei ao lado do cocheiro, Pete, segundo me disse ele chamar-se.

Em meio à estrada sombreada que íamos percorrendo, Pete prorrompeu subitamente em lágrimas, soluçando como se seu coração estivesse estalando.

Meu amigo — disse-lhe —, não quer me confiar a razão do seu desespero?

Ah, missis — disse ele entre soluços —, olhei por acaso para aquela corrente que ligava os dois vagões e de repente mo lembrei de Master Lincoln, que está no paraíso, coitado, e que nos deu a liberdade, a nós, pobres escravos.

Pete — disse-lhe —, não chore. — No Alto, entre os bem-aventurados, o seu benfeitor o espera. Cantando com os outros hospedes celestes. Abraham Lincoln tem na cabeça a mais faiscante coroa de glória.

E passei com ternura o braço pelos ombros de Pete.

O pobre homem, cuja pele negra revestia um coração puro como a neve, soluçava ainda ao se recordar do martirizado Lincoln e eu o fiz repousar a cabeça em meu seio, tomando-lhe as rédeas e dirigindo as mulas até Vereton.

Vereton era uma residência tipicamente sulista. Eu fora informada de que os DeVeres eram ainda ricos, apesar do que haviam perdido durante a rebelião, e que continuavam vivendo dentro dos moldes habituais de vida da verdadeira aristocracia das plantações.

A casa era quadrangular e tinha dois andares, com a entrada ao centro da fachada ladeada por colunas brancas. Uma grande varanda circundava inteiramente a casa, protegida por densa folhagem de hera e madressilva.

Ao saltar do carro, ouvi um tropel e vi um jumento sair pela porta de entrada afora, afugentado por uma senhora armada de vassoura.

O jumento deitou-se na varanda e a senhora veio ao meu encontro.

É Miss Cook? — perguntou-me, com o sotaque doce e cantante do sul.

Fiz uma reverência.

Eu sou Mrs. DeVere — disse ela. — Entre e tome cuidado com esse desgraçado jumento. Não consigo expulsá-lo de casa.

Entrei para o salão da frente e olhei surpreendida em torno. Era uma peça luxuosamente mobiliada, mas o desmazelo sulista ressaltava ao primeiro exame. A um canto, havia um carrinho de mão com argamassa seca, deixado ali desde que os pedreiros haviam construído a casa. Cinco ou seis galinhas rodeavam o piano e um par de calças pendia do candelabro central.

Mrs. DeVere tinha unia fisionomia pálida e aristocrática, de feições gregas e cabelos alvíssimos, graciosamente arrumados em anéis. Estava vestida de cetim negro e ostentava brilhantes admiráveis nos dedos e no colo. Seus olhos eram escuros e penetrantes, suas sobrancelhas negras. Quando me sentei, ela apanhou um grande pedaço de fumo de rolo de uma salva de prata e tirou uma mascada.

Permite-me? — perguntou sorridente.

Fiz um gesto com a cabeça.

Ora, com os diabos, logo se vê que está assustada! — replicou ela.

Nesse momento, um cavalo se aproximou da varanda — ou galeria, como dizem no Texas — e o cavaleiro desmontou, entrando pouco depois no salão.

Jamais esquecerei o meu primeiro encontro com Aubrey DeVere.

Tinha sete pés de altura e seu rosto era muito belo, a imagem perfeita de S. João de Andrea del Sarto. Seus olhos eram enormes, escuros, profundamente tristes, e a polidez, a finura das feições, o ar altivo denunciavam-no à primeira observação como o descendente de uma longa linhagem de aristocratas.






Vestia um terno do último corte, mas notei que estava descalço e que cada lado da sua boca descia um fio negro de saliva misturada com fumo.

Tinha na cabeça um grande sombrero mexicano. Não usava camisa, mas o casaco, aberto sobre o peito forte, deixava ver um grande brilhante preso por uma linha grossa entre as malhas da fina camiseta.


***


Meu filho Aubrey, Miss Cook, — apresentou languidamente Mrs. DeVere. Mr. DeVere tirou com a mão da boca um chumaço de fumo mastigado e jogou-o para trás do piano.

A senhora que teve a gentileza de vir assumir entre nós a posição de professora, se não me engano — disse em voz de barítono, cheia e musical.

Inclinei a cabeça.

Conheço os seus conterrâneos — observou ele com uma ruga funda na testa ampla. — Ainda se apegam às velhas tradições, à ignorância e aos preconceitos. Que pensa de Jefferson Davis?1

Cruzei o meu com o seu olhar ardente e declarei, sem pestanejar:

Foi um traidor.

Mr. DeVere riu musicalmente e, abaixando-se, tirou uma farpa de um dos artelhos. Depois, acercou-se da mãe e saudou-a com o respeito e a cortesia cavalheiresca que ainda conservam alguns filhos do Sul.

Que teremos para o jantar, mamãe? — perguntou.

O que bem se te dê desejar — respondeu Mrs. DeVere.

Aubrey DeVere esticou a mão ar e pegou uma galinha que subira para cima do piano. Quebrou-lhe o pescoço e atirou o seu seu corpo, em convulsões, sobre o delicado tapete de Bruxelas. Fez um curto passeio de longas passadas e se colocou dante de mim, dominando-me com a sua altura e a sua atitude de deus vingador, um braço erguido, a mão que segurava a cabeça apontado para o galináceo que se debatia nas agonias da morte.

Assim somos no Sul, — tonitruou. — O Sul sangrento e agonizante, segundo Gettysburg. Nesta noite a senhora fará um festim desta carcaça, como vêm fazendo os seus conterrâneos da nossa terra nos últimos trinta anos.

Jogou-me ao rosto a cabeça da golinha, com uma praga tremenda, e, depois, pôs um joelho em terra, inclinando a magnífica cabeça de dominador.

Perdoe-me, Miss Cook — implorou. — Não a quis ofender. Faz hoje vinte e oito anos que meu pai foi morto na batalha de Shiloh.

Quando tocou a sineta do jantar, eu fui convidada a passar para uma sala comprida, sombria, de paredes revestidas de carvalho e iluminada por valas de parafina.

Aubrey DeVere estava sentado ao pé da mesa, trinchando. Tirara o casaco e a camiseta justa revelava os músculos de um dorso tão robusto como o do Gladiador Moribundo2 do Vaticano. O jantar foi caracteristicamente sulista. Batatas doces, couves preparadas de várias maneiras, galinha assada, bolo de frutas, biscoitos quentes, bananas, bacalhau frito, doces em calda, pão fresco, abacaxis, maçãs, uvas.

Pete, o negro que eu conhecia como cocheiro, servia à mesa e, ao passar um prato a Mrs. DeVere, deixou pingar um pouco do molho sobre a toalha. Com um rugido de leão, Aubrey DeVere se ergueu e enterrou a faca até o cabo no peito do pobre homem, que caiu ao chão. Corri para seu lado e amparei a cabeça de carapinha nos meus braços.

Adeus, missis, o velho Pete vai ter afinal um canto que será seu.

Levantei-me e encarei Mr. DeVere:

Monstro desumano! — exclamei. — Assassino!

Ele tocou uma campainha de prata e outro criado apareceu.

Leve esse cadáver e traga-me uma faca limpa — ordenou. — Sente-se, Miss Cook. Como todos os seus conterrâneos, demonstra uma certa inclinação pela carne negra. Mamãe, querida, quer um pedaço escolhido do peito da golinha?

No dia seguinte, travei conhecimento com as quatro crianças da família DeVere, que achei inteligentes e aproveitáveis. Dois rapazes e duas meninas, dos dez aos dezesseis anos. O pequeno prédio da escola ficava a meia milha de distancia da casa, em meio a um gramado florido. Tinha quinze alunos ao todo e, com exclusão de pequenos detalhes, a minha vida em Vereton teria sido ideal. No primeiro mês economizei quarenta e dois dólares. Meu ordenado era de quarenta dólares e fiz os restantes dois dólares emprestando em ocasiões diversas pequenas somas aos meus alunos, deles recebendo juros que variavam de dez a vinte e cinco cêntimos.

Interessava-me muito o tupo curioso de Aubrey DeVere. Era uma das naturezas mais nobres e magnânimas que eu conhecera, mas havia a tal ponto sofrido a influência das tradições e dos costumes da terra que muito pouco da sua bondade inata transparecia ainda.

Havia recebido uma sólida instrução na Universidade de Virgínia, sendo apreciável como orador, musicista e pintor. Em criança, no entanto, fora habituado a dar expansão a todos os seus impulsos, de maneira que como homem não tinha nenhum controle.

Uma noite, estava tocando Shubert no salão de música do andar de cima, quando Aubrey DeVere entrou. Ultimamente, por algum capricho, tornara-se mais cuidadoso no modo de trajar.

Vestia só uma camisa aberta sobre o peito e um casaco de veludo enfeitado de galão dourado, formando um curioso desenho. As mãos estavam metidas em luvas de pelica branca e reparei que seus pés, que se recusava terminantemente a calçar, haviam sido lavados recentemente. Estava em veia de grande sarcasmo e amargura e foi logo fazendo tiradas arrasantes contra Grant, Lincoln, George Francis Train e outros heróis da União. Sentou-se à mesa do centro e se pôs a coçar um tornozelo com o dedo grande do outro pé, coisa que sabia que me irritava.

Resolvida a não me deixar exaltar, continuei tocando. De súbito, ele disse:

Perdão, Miss Cook, mas tocou uma nota errada nessa escala descendente.

Acho que não — repliquei.

Mentirosa! Tocou uma nota natural, quando devia tocar um bemol.

Ouvi que qualquer coisa sibilava. E logo um bolo mascado de fumo se achatou num mi bemol do teclado. Levantei-me do banco, trêmula mas sorridente.

Ofendeu-se — disse ele com ironia. — Não gosta das nossas maneiras sulistas. Considera-me um mauvais sujet3. Acha que nos falta aplomb e savoir4 faire. Com a sua cultura bostoniana, está certa de que pôde notar uma falsa nota nas nossas atitudes, uma falta de finura e de requinte nas nossas maneiras. N5o negue.

Mr. DeVere — retruquei friamente —, o que pense não me interessa. Estou aqui para cumprir uma função. Em sua própria casa, tem perfeita liberdade de agir como bem queira. Quer afastar a perna para me deixar passar?

Mr. DeVere ergueu-se repentinamente e tomou-me nos braços possantes.

Penelope — gritou numa voz formidável —, amo-te! Sua secarrona, desbotada, de olhos sem cor, faces encovadas, convencida, angulosa mestre-escola yankee… Amei-te desde o primeiro momento em que te vi. Queres casar comigo?

Debati-me, procurando me libertar.

Ponha-me no chão! — gritei. — Oh, se Cyrus estivesse aqui!

Cyrus! — repetiu Mr. DeVere, em voz de trovão. — Quem é Cyrus? Cyrus nunca te terá, juro!

Ergueu-se acima da cabeça e atirou-me pela janela ao gramado que havia fora. Depois, jogou todo o mobiliário atrás de mim, peça por peça, o piano por último. Ouvi-o então descer as escadas e senti que um líquido corria por entre a mobiliá até mim. Reconheci o cheiro do querosene, percebi que um fósforo era riscado, que chamas crepitavam subitamente; senti um calor abrasador e perdi os sentidos…

Quando voltei a mim, estava deitada em meu leito, Mrs. DeVere a meu ado, abanando-me.

Procurei me levantar, mas estava muito fraca.

Não se mova,— advertiu Mrs. DeVere, carinhosamente. —Há duas semanas que está na cama. Peço-lhe que desculpe meu filho… Receio que ele a tenha assustado. Ama-a tanto, mas é muito impulsivo.

Onde está ele? — perguntei.

Foi buscar Cyrus e não deve tardar.

Como foi que me salvei daquela pavorosa fogueira?

Aubrey salvou-a. Depois que amainou o surto da paixão, afastou os moveis incendiados e carregou-a pelas escadas acima.

Pouco depois, ouvi passos e logo Aubrey DeVere e Cyrus Potts apareceram diante de mim.

Cyrus! — exclamei.

Como vai, Penelope? — replicou Cyrus.

Antes que eu pudesse responder, explodiu uma confusão tremenda, a porta de entrada foi arrombada e doze homens mascarados penetraram na casa e no meu quarto.

Ouvimos dizer que está aqui um desgraçado yankee e queremos linchá-lo!

Aubrey DeVere tomou uma mesa por um pé e matou todos os homens do grupo invasor.

Cyrus Potts! — tonitruou depois. — Beije essa mestre-escola ou esfrangalho-o, como fiz a esses camaradas.

Cyrus atirou um beijo gelado, nas pontas dos dedos, em minha direção.


***


Uma semana depois, Cyrus e eu partimos para Boston. Seu ordenado havia sido aumentado para vinte e cinco dólares mensais e eu economizara duzentos e dez dólares.

Aubrey DeVere levou-nos até o trem. Levava sob um braço um quilo de pólvora de explosão. Quando o trem ia se afastando, ele se sentou sobre o pacote de pólvora e passou-lhe fogo.

Um dos seus grandes dedos do pé veio cair em meu colo, pela janela aberta do vagão.

Cyrus não é de temperamento ciumento e eu conservo esse dedo grande num vidro de álcool sobre a minha escrivaninha. Estamos casados, e nunca mais farei outra viagem ao Sul.

A gente do Sul é demasiado impulsiva.


Fonte: “A Cigarra”/SP, edição de março de 1937.

Ilustrações: Allan Foster e Andrea del Sarto (1486 – 1535).


Notas:



1Presidente dos Estados Confederados da América duranta a Guerra Civil Norte-americana.

2Estátua romana, esculpida em mármore entre 230 e 220 a.C. Seria uma cópia de uma escultura helenística, hoje perdida. Na verdade, está no Museu Capitolino, em Roma.

3Canalha.

4Prumo e perícia. 


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