EU LEVEI A CRUZ DA SANTA COMPANHA - Conto de Terror - Ângelo Brea
EU LEVEI A CRUZ DA SANTA COMPANHA
Ângelo Brea
A Santa Companha é uma lenda da mitologia popular galega e portuguesa. É descrita como uma procissão de mortos ou almas em pena que à noite percorre os caminhos de uma paróquia portando círios, sendo o cheiro a cera o principal sinal de que a Santa Companha anda perto. Sua missão é visitar todas aquelas casas nas quais pronto haverá um passamento ou morte nos próximos dias.
A procissão costuma ir encabeçada por um vivo portando uma cruz e um caldeiro de água benta seguido pelas almas com os círios acesos, nem sempre visíveis, notando-se a sua presença no cheiro a cera e no vento que se ergue quando passa.
O portador da cruz não voltará a cabeça em nenhum momento nem renunciará aos seus cargos precedendo a Santa Companha. Só ficará livre quando encontrar outra pessoa pelo caminho a quem entregar a cruz e o caldeiro, momento no qual esta passará a substituí-lo.
Para se escapulir desta obriga de substituição, a pessoa que veja passar a Santa Companha deve traçar um círculo no chão e se deitar boca abaixo sem olhar para nenhum espírito. A pessoa que leva a cruz e o caldeiro a cada passo adelgaça mais e volve-se mais branco até que possa ceder o caldeiro a outro.
Eu levei a cruz da Santa Companha. Poderá parecer-vos incrível, nestes tempos que correm, com tantos progressos e com tantas novidades, mas é a pura verdade. Lembro que fora aquele ano em que a senhora Helena, a da botica, dera à luz, depois de um parto quase sem dor, um par de formosos gémeos fortes como carvalhos. Lembro-o porque tinha nevado em pleno mês de abril e o gelo e o frio tinham estragado as vides até à raiz, e por isso houve pouco vinho para o ano seguinte.
Eu ainda tenho pesadelos por aquilo que aconteceu, mesmo agora estou a tremer quando escrevo estas linhas. A noite em que começou tudo, deveu ser durante os primeiros dias de maio, tivera muito trabalho. Fora cortar a erva para os animais e a arranjar os campos para começar a sementeira. Voltara a casa ao redor das oito horas da tarde, mas um pouco antes de meia-noite, antes de me ir deitar, lembrei que tinha deixado abertas as portas da corte, e não desejava que lhe acontecesse nada às bestas nem aos apeiros que havia ali. Assim que saí ao campo.
Era uma noite formosa e nem muito menos fria. Ao longe, a um quilómetro da minha casa, alçava-se a planta da pequena capela da nossa freguesia e ao seu lado, desde tempo imemorial, ficava o cemitério. Pareceu-me ver um leve resplendor por aquelas partes, como se alguém tivesse acendido uma fogueira, mas não lhe liguei nenhuma importância.
Encaminhei-me às traseiras e verifiquei que me tinha enganado e que as portas do alpendre estavam fechadas, assim como as da corte. A um lado, observei a forma difusa do palheiro. A Lua produzia uma luz suave, pois estava em quarto crescente. Ainda assim permitia ver com claridade, apesar de que as sombras dançassem no teto do espigueiro.
Voltei pelo mesmo caminho que havia um momento percorrera, e foi então que me dei de cara com o Fuco, o dono da taberna. Isso não teria nada de especial, porque nos seus bons tempos o Fuco passava mais tempo fora que dentro da sua casa, mas a razão da minha surpresa era que o Fuco tinha morrido havia mais de dois anos. Estava pálido como um fantasma, com os olhos vermelhos injetados em sangue e com uma auréola quase impercetível ao ser redor, como se uma luz azulada nascesse do seu interior. Senti medo e quis botar a correr, mas uma força invisível me tinha agarrado pelas costas e não me deixava mover. Fuco, o da taberna, portava nas mãos uma cruz de madeira, grande e alta como de dois metros... Pareceu-me tê-la visto antes na igreja e não sabia a razão de que agora a levasse ele. Quis falar, mas não consegui mais que articular um sussurro de espanto. Detrás do Fuco havia duas longas fileiras de seres fantasmais que sustentavam nas mãos velas acesas, mas que não se consumiam. O cheiro a cera quente era penetrante. Agora estava certo, tratava-se da Santa Companha. Assegura-se na aldeia que quem a vê passar de longe morre antes de um ano, e se alguém tem a má sorte de encontrar-se com ela, o infortunado vê-se condenado a levar a cruz todas as noites até morrer desfalecido ou encontrar outra pessoa a quem entregar-lhe a cruz. Ao Fuco deveu-lhe acontecer isso, em alguma das suas noites de borga, porque antes de morrer viu-se como ia esmorecendo, como as vides comidas pelo gelo.
Não podia fugir, mas quando menos podia traçar o risco de Salomão no chão e entrar nele para me proteger. Estava a procurar um pão para traçar o risco, quando uma mão cavernosa pegou na minha mão. Era o Fuco, que me entregou a cruz. Os seus olhos sorriam e lançavam chamas. Depois observei como ia situar-se no final das fileiras, perdendo a sua forma humana e convertendo-se num espectro sem rosto. Doía-me a mão, que ficou como queimada. Mas o peso da cruz causou-me uma grande dor. Todo o braço ficou paralisado e senti estender-se do cotovelo até aos dedos uma friagem de morte.
O que aconteceu aquela noite é como uma névoa na minha mente, mas seguramente percorri toda a aldeia e os seus arredores carregando a cruz e seguido daquela coorte de sombras espectrais às minhas espaldas. Cada vez que queria deter-me ou falar a friagem parecia prosseguir o seu avance pelo braço. Se continuava assim chegaria um momento em que a paralise afetaria a todo o corpo. Não havia que ser demasiado inteligente para saber que aquilo seria a morte.
Acordei aquela manhã completamente frio e esgotado. Como se tivesse passado toda a noite na neve. No entanto, o mais estranho era que a minha mulher não tinha dado na minha falta no leito de casal. Era como se vivesse duas vidas numa vida.
O trabalho daquele dia foi totalmente infrutuoso. Estava tão cansado que quando levei os bois ao campo, depois de lhes pôr o jugo, em vez de arar a terra, deitei-me à sombra de um carvalho e dormi o que não dormira aquela noite. A friagem do braço esquerdo tinha chegado até ao cotovelo. Na direita a paralise afetava só aos dedos e à mão. Isto não quer dizer que não pudesse mover as mãos, era simplesmente que não as sentia.
Aquela tarde cheguei muito cedo à minha casa. Ainda eram seis horas da tarde e o sol estava alto no céu, mas eu queria ocultar-me de todos. Sobretudo daqueles terroríficos espectros. Tentei não ficar dormido, lutar duas horas contra o cansaço e o sono, mas perto da meia-noite senti outra vez como a friagem parecia avançar pelo braço esquerdo e ascender pela mão direita face ao cotovelo. Se me opunha a cair dormido aquilo significaria que a gelidez avançaria sem cessar e isso seria o meu fim. Não se pode lutar contra a Santa Companha. Só há uma possibilidade, e é que possa encontrar outra pessoa que leve a cruz no meu lugar. Assim me livraria daquela condena.
A minha mulher, ignorante de tudo, dormia ao meu lado. Tinha-lhe advertido severamente que não me acordasse durante as horas da noite... Foi então que fui ficando dormido pouco a pouco, como se uma droga ou um poder desconhecido estivesse a vencer-me... Acordei no átrio da igreja da Nossa Senhora, com a cruz já nas mãos. Sabia que o meu corpo ficara em cama, descansando ficticiamente, enquanto o seu espectro se aprestava a fazer a mesma procissão de ontem, mas esta vez saindo diretamente desde a nossa igreja paroquial.
Aquelas figuras fantasmais tinham ainda forma humana, mas só a aparência parecia indicar que tinham sido homens e mulheres tempo atrás. A maior parte dos mortos que estavam soterrados no pequeno cemitério da aldeia formavam parte desta terrível assembleia. Sabia que o meu dever era começar a caminhar, ou a friagem da morte continuaria a ascender inexoravelmente pelos membros superiores.
Não lembro demasiado do que aconteceu aquela noite. Quando acordo, a minha mente está em branco e não sei o que ocorreu. Só sei que o caminho deveu assemelhar-se ao que percorremos o primeiro dia, uma volta pela aldeia depois da meia-noite e outra pelas redondezas, pelos campos e as florestas mais próximas…
Ao acordar este segundo dia, pareceu-me que tinha estado todo o tempo fisicamente ao lado da minha mulher, ainda que não a minha alma... A friagem tinha-se estendido ainda mais e chegava agora quase até aos ombros. Não sabia quantos dias poderia continuar assim, mas calculei que, invocando toda a minha força, não iria para além de duas semanas. Sim, duas semanas foi o tempo que o Fuco demorou em morrer, desde que começou a sua enfermidade até à hora final.
A minha mulher deu-se conta de que algo não ia bem. Estranhou-se de que estivesse tão pálido e de que tivesse as mãos e os pés tão frios. "Como o gelo", foram as suas palavras. A ponto estive de lhe contar o que me acontecia, mas uma dor terrível no ombro direito obrigou-me a calar. A paralise tinha chegado já até ali, como se se tratasse de um aviso de que devia ficar calado e de que devia enfrentar-me sozinho ao horror da procissão dos mortos. Quando me olhei no espelho para fazer a barba o coração deu-me um volco. De quem era o rosto que via refletido no espelho? Tinha alguma semelhança com o meu, mas os olhos afundidos nas suas órbitas, os lábios exangues e aquela cadavérica palidez nas bochechas e na face não pressagiavam nada de bom. Um par de lágrimas caíram dos meus olhos a sulcar o rosto cansado...
E o pior não era isso, senão que deveria continuar a levar a Cruz depois de morto até achar outro pobre infeliz que me relevasse em tão triste cometido.
Os dias de cansaço e de terror insofrível e as noites de pesadelo portando a cruz desde a igreja foram passando, e a dor e a friagem aumentavam. Quase tinha paralisados os braços e as pernas e era só questão de dias que chegasse até ao coração, como lhe tinha acontecido ao pobre Fuco. E dizer que eu tinha visto ao Fuco naqueles dias de enfermidade, com os olhos quase totalmente afundidos, o rosto comido pela dor e a fadiga e com ganas de querer pedir ajuda sem poder fazê-lo... E agora me acontecia o mesmo a mim. A mim, que não acreditava nas superstições do meu povo...
Toda aquela semana, desde que comecei a levar a cruz na procissão da Santa Companha, senti como se as minhas forças fossem esmorecendo pouco a pouco. O médico acudiu a ver-me e ficou muito estranhado do meu estado de "debilidade geral" sem aparente explicação, já que não tinha febre, embora tivesse a tensão perigosamente baixa. Receitou-me alguns medicamentos para subir a tensão, que a minha mulher se apressou a comprar, embora eu soubesse que não iam dar resultado. A gelidez da morte tinha começado a ascender pelas pernas, mais acima dos joelhos e a estender-se dos ombros ao peito e ao pescoço. Tinha também dores na espalda e convulsões cada certo tempo. De dia, quando me deitava para descansar da insónia da noite, que eu empregava em vagar com a procissão dos espectros pelas redondezas, tinha medo e ânsias de morrer. Se não me chegava um golpe de sorte, ia ser difícil que pudesse achar de noite qualquer na nossa pequena paróquia, para lhe entregar a cruz que agora tinha de transportar.
Estava desesperado e com a morte assentada já na minha casa. Parecia-me vê-la sentada na cadeira do nosso dormitório, a aguardar, vestida de preto e com a gadanha preparada para segar o fio de prata... Triste fim ia ser o meu!
Aproveitei a segunda semana para redigir o meu testamento, no que lhe deixava todos os meus bens à minha mulher, exceto algumas outras cousas não demasiado valiosas aos meus dois irmãos e a um afilhado ainda novo que tinha. O noveno dia veio à minha casa o sacerdote. Eu já não me levantei, por primeira vez na minha vida. Estava tão fraco e tão pálido que o senhor cura levou uma terrível impressão. Deveu pensar que era uma coisa de menos importância, mas ao dia seguinte administrou-me a extrema-unção. Já não viam remédio para mim. Levava dez dias saindo com a horrível procissão dos mortos pelas ruas e as leiras da nossa aldeia e pouco faltava já para morrer. Aquele dia ordenei à minha mulher que limpasse um pouco o panteão que a minha família tinha no cemitério e que levasse flores aos nossos mortos. Ela acendeu algumas velas, pela sua conta e risco, na capela de Santa Rita, a advogada dos impossíveis.
Preparei a minha alma para a morte. Já nem era eu. O meu cabelo tinha encanecido e ao meu rosto pareceu que se lhe vieram em cima vinte anos de golpe. Caíram-me dois dentes, as pernas estavam tão fracas que já não podiam ter-me em pé. Finalmente comecei a ter hemorragias nasais.
Entrei no undécimo dia da minha desgraça. A minha mulher e eu choramos como havia tempo não o fazíamos. Ela sabia que eu estava condenado, mas fazia-me comer um pouco de sopa quente, mas era como se não comesse nada. Ao cair a noite daquele dia, como sempre, senti aquele sopor doce que me invadia. Adverti à minha mulher, como todas as noites desde que isto começou, que não tratasse de acordar-me. Seria perigoso e talvez ficasse no sítio. À meia-noite estava eu frente à nossa igreja paroquial, a segurar a cruz. Os espectros fizeram rapidamente, pois estavam bem treinados, as duas fileiras que me precediam e acenderam aquelas velas que nunca se apagam e que dão um aspeto tão sinistro à nossa marcha. Começamos a caminhar, como sempre o fazíamos, em direção às primeiras casas da aldeia. Depois contornaríamos a pequena ponte sobre o rio Sor e de ali a um pouco entraríamos nos campos cultivados, para acabar dando uma volta pelos bosques vizinhos antes de regressarmos ao ponto de partida. Não podia fazer nada. Cada vez que me detinha, sentia que a gelidez se estendia mais e mais por todo o corpo, a empeçonhentar o sangue.
Foi então, quando já perdera as últimas esperanças, que, ao contornar a casa da tia Henriqueta e ao entrar na Travessa Nova, me dei de cara com uma mulher entrada em anos, mas que ainda não era velha. Reconheci-a ao instante. Era a senhora Maria, a de Ambossores, uma aldeia que fica ao outro lado do Sor, ao cruzar a ponte. Ficou tão morta de medo que em menos que canta um galo já lhe tinha eu entregado a cruz. Deu-me um pouco de pena, porque a senhora Maria, a de Ambossores, estava casada e tinha dois filhos, já maiores. Um deles trabalhava na Corunha, e o outro creio que emigrara a Suíça ou a Alemanha, não sei ao certo. Ela não disse nem uma palavra, mas percebi como a friagem da morte começava a se estender pelas suas mãos rígidas, enquanto fugia das minhas. Não me lembro de mais nada, exceto que acordei outra vez no meu leito, ao lado da minha mulher desvelada e atenta a qualquer gesto meu. Quase não acreditou quando decidi erguer-me e ir à cozinha a dar-me um banquete real de chouriços, queijo e pão. A minha mulher dava graças a Deus, ainda que eu, que sabia que a minha pesada carga passara a outras mãos menos fortes do que as minhas, não tinha muitos motivos para me alegrar.
A senhora Maria, a de Ambossores, morreu duas semanas depois, sem que os médicos que a atendiam soubessem dar nenhuma explicação à sua enfermidade. Tendo em conta que lhe devia a vida, não pude menos que pagar uma missa pela sua alma e assistir ao seu enterro. Ofereci-lhe, como velho conhecido da família, um grande ramo de flores, dessas que se dão nesta estação e das que ela gostava tanto. Foram colocadas num lugar de honra na sua tumba, não bem deixava um homem e dois filhos, já maiores. Que Deus a tenha na sua glória.
Ângelo Brea, escritor galego nascido em Santiago de Compostela, é membro da Academia Galega da Língua Portuguesa e professor de Língua e Literatura Galegas. Como se vê do conto acima publicado, Brea escreve em galego, codialeto do português, empregando as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. É autor, dentre outras obras, das coletâneas Lembranças da Terra (Através, Santiago de Compostela, 2014) e Nos vales do Máriner e outros relatos (Improset, Conunha, 2021), com apresentação de Paulo Soriano.
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