AR FRIO - Conto Clássico de Terror - H. P. Lovecraft
AR FRIO
H. P. Lovecraft
(1890 – 1937)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
Já alguém me perguntou por que receio as correntes de ar. Estremeço mais que qualquer outro ao entrar em aposentos frios e me mostro conturbado, especialmente quando o arrefecer da noite vem substituir o calor de um suave dia outonal.
Alguém já disse que reajo ao frio como muitos outros o fazem ao mau cheiro, e não me ocuparei em discutir essa afirmativa. O que vou fazer é simplesmente relatar a horrível condição em que me achei, deixando que o leitor julgue, por si mesmo, se a narrativa revela ou não a razão de minha peculiaridade.
É engano acreditar-se que o horror se associa forçosamente à escuridão, ao silêncio e ao ermo. Experimento-o, em toda a sua desvairante plenitude, sob a intensa luz mediterrânea, no coração burburinhante da metrópole, e bem no aconchego de modesta casa de cômodos, tendo ao lado a prosaica dona da pensão e dois robustos operários mecânicos.
Na primavera de 1923, arranjara eu triste e mal remunerado trabalho numa revista de Nova Iorque, e como não me fosse possível pagar grandes aluguéis, comecei a mudar-me continuamente de um alojamento barato para outro ainda mais modesto, à procura de um cômodo que reunisse as qualidades de limpeza decente, móveis sólidos e preço razoável. Logo, porém, me capacitei de que eu teria de escolher indefinidamente do mau ao pior; mas, depois de certo tempo, encontrei uma casa, na Rua Quatorze-Oeste, que me desagradou menos do que as demais.
Era uma habitação de quatro andares, de pedra escura, datando aparentemente de quarenta anos atrás, com adornos de madeira, cujo esplendor manchado e sujo lhe denunciava a decadência do primitivo e requintado fausto. Os quartos espaçosos, de tetos elevados, decorados com um papel incrível e ridículas cornijas, enchiam-se de deprimente mofo e um quê indefinível de cheiro de cozinha, mas os assoalhos eram limpos, a roupa da cama sofrível e a água quente não se apresentava fria, nem faltava com demasiada frequência. Portanto, considerei o lugar suportável, pelo menos até que me fosse possível de novo uma vida realmente condigna.
A dona da casa, uma espanhola suja e quase barbuda, chamada Herrero, não me importunou com tagarelices, nem com a recomendação de não deixar a lâmpada acesa muito tarde, no meu quarto de frente ao terceiro andar. Os demais hóspedes pareceram-me tão lacônicos e arredios como se não podia desejar mais, quase todos espanhóis, pouco acima da mais ínfima classe. Apenas o estrépito dos bondes, à passagem, perturbava-me seriamente o sossego.
Eu já ali morava havia cerca de três semanas quando ocorreu o primeiro incidente estranho. Certa noite, por volta das oito horas, ouvi um ruido de líquido derramado no assoalho e senti, logo a seguir, por algum tempo, um odor penetrante de amônia. Reparando em torno, notei o teto molhado e gotejante. O extravasamento parecia provir de um canto da parede que dava para a rua.
Desejoso de deter o mal no começo, corri para baixo, a dizer à senhoria, e esta me garantiu seria o defeito prontamente reparado.
— É o doutor Muñoz — gritou ela, subindo as escadas na minha frente. — Ele deve ter entornado alguma das sus drogas. O coitado anda muito enfiermo, sempre doente, cada dia mais, e nada de querer chamar um colega. Sua enfermedad é muito curiosa. Passa o dia inteiro tomando banhos de cheiro extravagante e jamais consegue aquecer-se, nem alegrar-se. Ele mesmo faz a limpeza do quartinho, sempre cheio de garrafas e máquinas. Não exerce a medicina. Antigamente gozou, não obstante, de grande fama. Meu pai, em Barcelona, ouviu muito falar dele. Aqui, até hoje, somente encanou o braço de um torneiro acidentado. Nunca sai à rua. Vive constantemente fechado no quarto e é meu filho Esteban quem lhe leva a comida e a roupa lavada, os medicamentos e as drogas para as suas experiências. Se o senhor visse a quantidade de sal amoníaco que aquele homem usa para refrescar-se!
A Sra. Herrero desapareceu no patamar do quarto andar e, então, voltei para o meu aposento. A amônia acabara de pingar e, no momento em que eu enxugava o chão e abria a janela para renovar o ar, ouvi os pesados passos da senhoria por sabre a minha cabeça.
Do curioso hóspede, todavia, eu jamais notara rumor algum, além de certos sons como os de um motor a gasolina. Portanto, suas pisadas deviam ser as mais macias e delicadas. Por um instante, fiquei imaginando que estranha doença seria a daquele homem e se sua obstinada recusa de ajuda externa não constituiria antes o efeito de uma excentricidade pura, sem base séria.
Há, refleti, uma dose infinita de sentimento doloroso na alma de toda pessoa eminente que decai. Talvez nunca se me apresentasse o ensejo de conhecer o Dr. Muñoz, não fora o ataque cardíaco que sofri subitamente, certa manhã, quando escrevia à minha mesa.
Os médicos já me haviam avisado do perigo de tais acessos e eu bem sabia que não devia perder tempo em procurar socorro.
Assim, lembrando-me do que a senhoria me dissera sobre o operário socorrido pelo singular facultativo, arrastei-me escadas acima e bati fracamente à porta do meu vizinho do alto.
O chamado foi atendido em bom inglês por uma voz singular, vinda de certa distância à direita, perguntando-me o nome e a profissão,
Satisfeita a exigência, percebi que se abria uma porta próxima àquela em que eu batera. Finalmente, mandou-me entrar. Uma lufada de ar frio atingiu-me em cheio e, embora o dia fosse dos mais cálidos de junho, ingressei tiritando num vasto apartamento, cuja decoração rica e aprimorada surpreendeu-me, em vista da sujeira e pobreza das demais peças da casa.
Um leito dobradiço preenchia ali as funções diurnas de sofá e a mobília de nogueira, os suntuosos lustres, os quadros antigos e estantes de livros em madeira clara, tudo denotava o salão de fino gentil-homem e não um simples quarto de hospedaria.
Agora eu bem avaliava que o “quartinho” de garrafas e aparelhos, como disse a Sra. Herrero, era o modelar laboratório do doutor e que seu principal aposento constava da peça seguinte, onde os amplos armários e o vasto banheiro contíguo lhe permitiam ocultar a rouparia e demais utilidades atravancantes. Via-se que o Dr. Muñoz era pessoa de alta linhagem, cultura e valor.
O vulto à minha frente me pareceu de pequena estatura, mas bem-proporcionado, envergando roupas comuns de corte perfeito e correto assentamento ao corpo. O rosto aristocrático, de expressão varonil, sem arrogância, adornava-se de barba curta e cerrada, cinzento-metálica, e um pincenês fora de moda anteparava-lhe os olhos grandes negros, a cavaleiro do nariz aquilino que dava um ar mouro à fisionomia, em tudo mais acentuadamente celtibérica.
Os cabelos densos e bem-talhados, que traíam a frequência pontual do cabeleireiro, partiam-se grassamente sobre a fronte alta. Enfim, todo o conjunto exprimia inteligência arguta, raça superior e fina educação.
Não obstante, ao divisar o Dr. Muñoz, de envés com a lufada de ar frio, senti uma repugnância modo nenhum justificável.
Somente sua tez lívida e encarquilhada e o tom rígido de suas maneiras poderiam ter constituído a base física de tal sentimento repulsivo. Mesmo assim, as mencionadas circunstâncias seriam mais que desculpáveis, considerando-se o estado de saúde do doutor e sua conhecida invalidez
Também poderia ser a estranha corrente de ar a causa de meu mal-estar nervoso, pois em dia tão quente, aquele sopro gelado representava um fato anormal e toda anormalidade gera irritação, intranquilidade e temor.
Mas minha repulsa breve se transformou em franca admiração ante a extrema perícia do singular médico, prontamente manifestada, a despeito a glacialidade de suas maneiras e do tremor de suas mãos exangues. Compreendera ele, num átimo, a necessidade de meu estado e socorreu-me com destreza magistral, enquanto me tranquilizava, dizendo-se, numa voz finamente modulada, se bem que impressionante, cava e sem timbre, o mais encarniçado dos acérrimos inimigos da morte e que despendera a própria fortuna, deixara todos os amigos, inteiramente absorto em suas bizarras experiências destinadas a vencê-la e eliminá-la da face da terra.
Via-se-lhe no semblante um quê da benevolência fanática que lhe animava o espírito, enquanto se desvelava loquazmente a auscultar-me o peito. Em seguida, misturou, em doses precisas, algumas drogas apanhadas no laboratório.
Evidentemente, reputava o convívio de uma pessoa de bom tom rara novidade naquele ambiente sórdido — e assim se deixava levar por inusitada verbosidade, à medida que as memórias de melhores tempos se lhe afloravam à mente.
Sua voz, embora estranha, tinha, pelo menos, grande suavidade. Nem mesmo se lhe percebia a respiração, entrecortando o delicado desfiar de suas sentenças primorosas.
Procurou distrair-me o espírito e fazer-me esquecer a angústia, falando-me de suas teorias e experiências, e lembro-me perfeitamente de que me consolou, com raro tato, de minha fraqueza cardíaca, insistindo em que a vontade e a compreensão são mais fortes do que a própria vida orgânica. Assim, uma estrutura animal, com a condição de ter sido de início conservada cuidadosamente sã, pode guardar, por meio de esforço científico, uma espécie de vibração nervosa, a despeito das mais sérias desintegrações celulares e dos maiores defeitos e mesmo deficiências constitucionais dos órgãos específicos.
Afirmou-me, meio gracejando, meio sério, que um dia ainda me ensinaria a viver, ou, pelo menos, a possuir uma espécie de existência consciente, sem necessidade alguma do coração em atividade propulsora.
Também me disse sofrer, por seu turno, de um complexo de doenças, exigindo-lhe rigorosa dieta, de que fazia parte uma constante refrigeração ambiente. Qualquer elevação de nota na temperatura podia, se prolongada, prejudicá-lo de modo fatal. Assim, a friagem de sua habitação, entre cinquenta e cinco e cinquenta e seis graus Fahrenheit1, era mantida pelo sistema refrigerador da absorção amoniacal e cujas bombas se acionavam pelo motor a gasolina, tantas vezes por mim ouvido de meu quarto, logo abaixo.
Livre em alguns minutos da opressão nervosa, deixei aquele recinto enregelante como um novo discípulo e amigo dedicado do portentoso solitário.
Depois disso, bem agasalhado em grosso capote, fiz-lhe frequentes visitas, ouvindo-o, embevecido, falar das pesquisas secretas e seus quase aterradores resultados e, um tanto trêmulo de emoção, examinei os desuniformes e antigos volumes de suas estantes.
Posso adiantar que me sentia quase já definitivamente curado de minha doença, graças à proficiente medicação.
Parece-me, entretanto, que o Dr. Muñoz não menosprezava as feitiçarias dos medievalistas, pois acreditava em que as fórmulas criptográficas contêm raros estímulos psicológicos que concebivelmente podem produzir efeitos singulares nas substâncias do sistema nervoso, cujas pulsações orgânicas se tenham debilitado.
Fiquei impressionado quando me narrou o caso do idoso Dr. Torres, de Valência, na Espanha, que compartilhara de suas primeiras experiências científicas e permanecera à sua cabeceira, assistindo-o numa grave enfermidade, isso havia dezoito anos, daí provindo as atuais perturbações de sua saúde.
Mal acabara de salvar o colega, o venerando clínico sucumbiu, atingido pelo sombrio inimigo que combatera tão tenazmente. Talvez o esforço fora demasiado, pois o Dr. Muñoz me revelou, em palavras cochichadas, mas nítidas, embora sem entrar em detalhes, que os métodos de sua própria cura foram os mais extraordinários, envolvendo cenas e processos energicamente repelidos pelos médicos antiquados e conservadores.
Com o passar das semanas, observei, pesaroso, que meu novo amigo perdia gradativamente as forças, de modo lento, mas incontestável, como, de resto, já me dissera a Sra. Herrero.
Seu aspecto se tornara intensamente lívido, a voz cada vez mais cavernosa e indistinta, os movimentos musculares menos coordenados — e o espírito e a vontade baixavam muito de firmeza e iniciativa.
Contudo, ele se mostrava inteiramente consciente de seu estado alarmante e, pouco a pouco, sua maneira de exprimir-se e sua conversação se revestiram de uma ironia macabra, que me fez sentir de novo algo da sutil repulsa experimentada a princípio.
Tomou-se então de caprichos estranhos, adquirindo verdadeira paixão pelos perfumes exóticos e pelo incenso egípcio, até tornar o próprio quarto rescendente como a catacumba de um faraó no Vale dos Reis. Simultaneamente, aumentando sua necessidade de ar refrigerado, ele, ajudado por mim, ampliou os condutos de amônia, modificou as bombas e carregou no combustível da máquina frigorífica até manter a temperatura de trinta e quatro a quarenta graus Fahrenheit2, no máximo, baixando-a pouco depois para vinte e oito permanentes3, menos no banheiro e no laboratório, onde era necessário evitar-se o congelamento da água e consequente entupimento dos canos.
O inquilino do quarto vizinho se queixou do ar glacial, junto à porta de comunicação. Então auxiliei o Dr. Muñoz a colocar, sobre esta, pesados reposteiros, visando solucionar o caso.
Ganhava-o uma espécie de terror crescente dos mais irrefreáveis e mórbidos.
Falava constantemente na morte e ria-se de modo sinistro às mais leves referências sobre coisas como enterro ou exéquias.
Tornava-se, em resumo, um companheiro desconsertante e até mesmo lúgubre; porém, ainda assim, minha gratidão por ele me impediu de deixá-lo sozinho, entre gente estranha.
Sempre envolto num pesado capotão “ulster”, adrede comprado, eu lhe espanava diariamente o aposento com todo esmero e provia-lhe as menores necessidades. Também lhe fazia a maior parte das compras e me atrapalhava por completo com algumas das substâncias químicas que me incumbia de adquirir dos droguistas e fornecedores de material para laboratório.
Uma crescente e inexplicável atmosfera de pânico parecia encher o aposento. Já toda a casa, como eu disse antes, tinha cheiro de mofo, mas no quarto do doutor era pior e, apesar dos numerosos perfumes e do incenso, bem como as drogas fortemente odorantes dos banhos que ele passara a tomar continuamente e sem assistência, percebi que aquele fétido devia relacionar-se com a moléstia. E estremeci, dos pés à cabeça, ao refletir sobre que espécie de mal seria aquele que afligia o meu infeliz amigo.
A Sra. Herrero se punha de mau humor à simples vista do inquilino, de modo que prazeirosamente o abandonou aos meus cuidados, nem mesmo permitindo mais que o filho, Esteban, continuasse a fazer-lhe as pequenas coisas habituais.
Quando, um dia, lhe sugeri chamar um médico, o doente entrou em tal acesso de fúria que não ousei insistir.
Evidentemente, o Dr. Muñoz receava o efeito físico das emoções violentas, embora sua força de vontade amolecesse, sem, contudo, o abandonar de todo. E assim se recusava a guardar o leito.
A lassidão dos dias amargos, no princípio da doença, foi seguida de um retorno ardente ao ideal científico, de modo que ele se mostrava pronto a desafiar o demônio da morte, mesmo se esse velho inimigo o fosse finalmente vencer.
O Dr. Muñoz abandonara praticamente toda alimentação que sempre fizera como simples formalidade e, assim, só a força mental parecia salvá-lo do colapso total.
Adquirira, ainda, o hábito de escrever longos documentos, que lacrava, com todo cuidado, cobrindo a parte externa dos envelopes de recomendações para que eu os entregasse, depois de sua morte, a determinadas pessoas por ele enumeradas, na maior parte letrados das Índias Orientais, havendo também um médico francês, célebre em seu tempo e já falecido, a cujo respeito se murmuravam as coisas mais inconcebíveis.
Posteriormente, no entanto, queimei todos esses papéis sem entregá-los ou sequer abri-los.
Mas, como dizia eu, a voz do esculápio e seu aspecto se tornaram excessivamente inquietantes e sua contiguidade quase insuportável.
Certo dia de setembro, a vista inesperada Dr. Muñoz provocou uma verdadeira crise epiléptica no homem vindo para consertar-lhe a lâmpada elétrica de mesa, crise essa que o próprio médico curou rapidamente, mantendo-se, porém, invisível.
O mais estranho era que o eletricista passara pelos maiores horrores da Grande Guerra de 1914 sem experimentar, nos campos de batalha, pavor tão intenso.
Em meados de outubro, com estarrecedora surpresa, se desenrolou o episódio mais dantesco e arrepiante dessa terrífica sequência. Certa noite, por volta das onze horas, a bomba da máquina refrigeradora se quebrou, paralisando, durante três horas, o processo de refrigeração pela amônia.
O Dr. Muñoz me chamou, batendo com os pés no assoalho, e trabalhei com afinco para reparar o defeito, enquanto o meu amigo resmungava pragas num tom vazio, sem timbre, sem vida, impossível de descrever-se.
Meus esforços de bombeiro improvisado foram, contudo, completamente inúteis. E finalmente, depois que eu trouxe o mecânico de uma garagem das vizinhanças, aberta dia e noite, verificou-se que nada podia ser feito até a manhã seguinte, quando o comércio, abrindo as portas, nos permitiria a compra de um novo pistão ou êmbolo.
A raiva e o pavor do quase moribundo, assumindo, ao que parece, proporções grotescas, lhe esfrangalharam as poucas forças que lhe restavam e, em dado momento, um espasmo atroz fê-lo levar as mãos aos olhos e correr para o banheiro.
De lá voltou, às apalpadelas, com o rosto apertado em ataduras, e nunca mais, desde então, voltei a ver-lhe os olhos.
A friagem do apartamento diminuía sensivelmente e, cerca das cinco horas da manhã, o médico retirou-se para o banheiro, recomendando-me muito ter todo o suprimento de gelo dos cafés e farmácias que funcionavam durante a noite. Quando regressei, depois de cumprida a missão, em parte baldada, ouvi, vindo do banheiro, um contínuo espadanar de água e uma voz angustiosa que dizia: “Mais. Quero mais!”
Finalmente, o dia raiou tépido e claro, e as lojas se abriram, uma a uma.
Pedi a Esteban que me ajudasse no reabastecimento do gelo ou na compra da peça da bomba. Escolhesse uma dessas coisas que eu me encarregaria da outra. Mas, instruído pela própria mãe, ele se recusou terminantemente a prestar-me qualquer auxílio.
Consegui então contratar um vagabundo de cara bexiguenta, que encontrei na esquina da Oitava avenida, para carregar o gelo de um botequim, e pus-me diligentemente à cata do necessário pistão para a bomba e a arranjar operários competentes a de instalá-lo.
A tarefa parecia interminável e até eu praguejava como o Dr Muñoz ao ver, sem descanso e sem alimento, correr as horas em telefonemas e buscas desesperadas de porta em porta, aqui e ali, saltando de um trem subterrâneo para outro à superfície.
Ao meio-dia, encontrei no extremo Sul da cidade uma casa do ramo que tinha à venda a peça procurada e, aproximadamente a uma hora e meia da tarde, retornei munido do êmbolo tão necessário, acompanhado de dois robustos e inteligentes mecânicos.
Fizera o possível e esperava, agora, que ainda fosse tempo.
O terror negro, porém, me precedera. A casa tava em tumulto e, por sobre o alarido de vozes espavoridas, ouvi alguém rezando soturnamente. Coisas diabólicas pairavam no ar e os moradores, em prece, desfiavam as contas dos rosários ao sentir o cheiro vindo sob a porta trancada do facultativo.
Pareceu-me que o vagabundo por mim alugado havia fugido, gritando, com os olhos esbugalhados, logo no segundo carreto de gelo, provavelmente devido a algum excesso de curiosidade de sua parte. Esse homem, no entanto, não poderia, em pânico, ter fechado a porta, é claro. E, contudo, lá estava ela aferrolhada. Havia de admitir-se, portanto, que a trancaram por dentro.
Nenhum ruído se ouvia, a não ser uma indefinível espécie de gotejar lento e pesado.
Após confabular rapidamente com a Sra. Herrero e com os operários, opinei, a despeito do medo que me constrangia o íntimo, pelo arrombamento da porta, mas a senhoria achou um jeito de girar a chave com um arame, pelo lado de fora. Abrimos as portas dos demais quartos do pavimento e escancaramos bem as janelas. E, com o nariz protegido por lenços, penetramos, trêmulos, no aposento macabro que se esbraseava do Sol quente das primeiras horas da tarde.
Um rastro escuro e tênue ia do banheiro aberto à porta do vestíbulo e, dali, até a escrivaninha, onde uma grande e medonha poça se acumulara. Qualquer coisa estava garatujada a lápis por mão hesitante sobre uma folha de papel horripilantemente manchada, sem dúvida pelos mesmos dedos esgarrados que haviam traçado as apressadas e derradeiras palavras.
O que estava ou estivera sobre a cama, não ouso dizer aqui. Mas eis o que decifrei no pedaço maculado de papel, antes de, tomado de pavor alucinante, reduzi-lo a cinzas na chama de um fósforo, enquanto a senhoria e os dois mecânicos fugiam desvairados daquele tétrico local para gaguejar histórias incoerentes no mais próximo posto policial. As linhas escritas pareciam vertiginosas de fantasia macabra, como invencionices de um demente endemoninhado, e dançavam-me ante os olhos perdidos sob aquela luz amarela do Sol, em meio do burburinho dos carros e caminhões, subindo estrepitosamente a Rua Quatorze, regurgitantes àquela hora. Mas acreditei sinceramente no que diziam. Se ainda noje acredito, afirmo-o com a maior honestidade, não sei.
Há coisas sobre que é melhor não especular e tudo o que posso dizer é que agora odeio o cheiro da amônia e desfaleço ao sentir uma corrente de ar intempestivamente fria.
Eis o que dizia o espantoso bilhete:
Chegou o fim. Acabou-se o gelo. O carregador, mal me viu, desabalou a correr. A cada minuto mais me aqueço e os tecidos de meu organismo não resistirão. Penso que compreendeste o que vos disse sobre o poder da vontade, os nervos e a conservação do corpo depois que os órgãos deixam de funcionar. A teoria é boa, mas, na prática, a operação não pode ser mantida indefinidamente. Processa-se uma deterioração gradativa que não previ. Disso sabia o Dr. Torres, porém morreu de repente, sem realizar o seu intento, isto é, guardar-me no mesmo lugar adequado e estranho, onde, na penumbra, me tratou e experimentou em mim o resultado de seus acurados estudos. A realidade é que, desde aquela época, meus órgãos nunca mais funcionaram. Até hoje, tudo se fez de acordo com o meu processo de conservação artificial da vida, pois naturalmente estou morto —e bem morto — há dezoito anos.
Fonte: Policial em Revista/RJ, nº 222, edição de novembro de 1952.
Imagem do miolo: PS/Copilot
Notas:
1Cerca de 13 graus Celsius.
2Cerca de 6,5 graus Celsius.
3Cerca de 2 graus Celsius.
Barão amigo, este conto é fantástico! Muito bom!
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