O BODE NEGRO DO CEMITÉRIO DE SAINT-PAULET - Narrativa Verídica Sobrenatural - Anfos Martin
O BODE NEGRO DO CEMITÉRIO DE SAINT-PAULET
Anfos Martin
(1868 – 1948)
Tradução de Paulo Soriano
À direita da estrada que vai de Souspierre (Drôme) a Salettes, entre a nova estrada que sobe para Eyzahut e o riacho de Vernicnon, no número 117 da carta cadastral de Souspierre, seção de Saint-Paulet, distrito de La Blanche, há um antigo cemitério, que os operários de Souspierre e de Salettes estão arruinando pela extração de cascalho para as suas estradas.
Este cemitério é tão antigo que a carta cadastral e as matrizes que a acompanham não lhe fazem referência e o terreno que ocupa não é propriedade da comuna.
O corte transversal da cascalheira exibe, entre a camada de solo superficial e o cascalho extraído, uma fila de sepulturas abertas de onde veem-se crânios, tíbias e ossos diversos.
Os flancos tumulares constituem-se de grandes pedras planas postas uma ao lado da outra, e a parte superior é composta por pedras semelhantes, colocadas da mesma maneira.
Na superfície do solo encontraram-se pequenos vasos de cerâmica azulada, e, igualmente, restos de ossos.
No cruzamento do Chemin de Salettes com a nova Route d'Evzahut encontra-se o pedestal bastante original de uma antiga cruz, cujo braço horizontal desapareceu.
Há nove anos que passo sempre por este lugar e paro com a intenção de ver se há alguma coisa a recolher para a história da região.
Até agora, só recolhi uma lenda. Esta lenda é tão interessante quanto a opinião dos agricultores locais, que a tem por verdadeira.
Há quatro anos, quando contemplei a antiga cruz mutilada, perguntei ao atual proprietário do terreno, o Sr. Chavagnac, que vive num sítio vizinho, se sabia quem a tinha mutilado e a todas as cruzes da região. Ele me respondeu que não sabia. Perguntei-lhe, então, qual era a idade da cruz e do cemitério.
Conversamos. Disse-lhe como era triste, para um homem resquício de coração, ver um cemitério profanado e esqueletos humanos esmagados e dilacerados pelas rodas dos caminhões. Ganhei a sua confiança e ele contou-me o seguinte:
— O meu pai, quando comprou a propriedade que hoje me pertence, pouco depois da guerra de 1870, encontrou o velho cruzeiro completamente demolido. Reconstruiu-o com o auxílio dos camponeses vizinhos, na sequência do aparecimento misterioso, à noite, no cemitério, de um bode preto que saltava, lançando ao ar os seus terríveis chifres, e desaparecia, subitamente, quando alguém tentava aproximar-se dele. Aquele bode, que se revelara a mim há vários meses, e a outras pessoas, deixou de aparecer no cemitério assim que a cruz foi levantada; mas... — ah, senhor, que coisa! —, assim que a cruz foi mutilada, o bode voltou. Vi-o há pouco tempo, numa noite de luar, quando voltava, um pouco tarde, da feira de La Bégude, onde eu fora vender gado. Ela estava de pé, sobre os sepulcros, olhando para o cascalho. De repente, virou-se, rodopiou numa tufa de buxos, empinou-se e correu noite adentro. Apressei o passo para estar, o mais rápido possível, em segurança com a minha família.
Esta história de um camponês, que eu julgava supersticioso, pouco corajoso e sujeito a alucinações depois de uma bebedeira, talvez mais do que a habitual em dias de feira, teria certamente desaparecido da minha mente, se não me viesse à memória o texto de nosso colega Guénin, de Brest, sobre “O Bode na Pré-História”.
Pensando que o bode do cemitério de Saint-Paulet poderia muito bem ser aquele que acompanha o Mercúrio galo-romano nos baixos-relevos, ou representado nos sarcófagos da região de Narbonnaise, ou, certamente, um dos bodes lendários que povoam os cemitérios galo-romanos, aproveitei a minha visita anual a Salcttes para investigar as suas aparições.
O secretário da câmara municipal, o Sr. Brès, que, gentilmente, pôs-se à minha disposição para examinar os cadastros, nunca tinha ouvido falar de tal história. Lembrava-se, contudo, de que, há cerca de quatro anos — época em que conversei com o Sr. Chavagnac —, os habitantes de Souspierre e arredores ficaram muito surpreendidos ao verem, num belo dia, preso à velha cruz, um magnífico pão, debaixo do qual colocaram-se alguns cêntimos — cinco, segundo ele —, em moedas pequenas. O pão e as moedas permaneceram na cruz durante mais de três semanas. Nunca se soube quem os pusera lá. O Sr. Lires agora acredita que há uma ligação entre este acontecimento e a aparição do bode. Na sua opinião, o pão e as moedas eram uma oferenda para apaziguar o bode, irritado com a profanação do cemitério, e cujo aparecimento decorrera da mutilação da cruz.
Pela sua própria natureza, esta oferenda parece ser uma sobrevivência de um costume galo-romano.
O proprietário do sítio contíguo ao antigo cemitério, o Sr. Armand, um homem de 73 anos, disse-me, com todo o seu bom senso, que jamais vira o bode, mas que o seu vizinho, o Sr. Thomas, que morava num sítio além do seu, e cujos três filhos lá ainda vivem, viu três ou quatro cabras perseguindo-se e lutando no cemitério, em uma noite estrelada.
O Sr. Armand estava entre aqueles que, por volta de 1873, levantaram a velha cruz no cemitério; ele não se permite duvidar das declarações dos seus vizinhos Thomas e Chavagnac. Questionado sobre o pão e as moedas que se encontravam na cruz há cerca de quatro anos, o Sr. Armand, um tanto embaraçado, disse-me mais ou menos textualmente:
— Ah, senhor, você sabe, este é um costume antigo. As pessoas, que tinham ou temiam desgraças em suas casas, lá colocavam o pão e as moedinhas, para que, quando alguém os levasse, levasse também a desgraça.
Esta explicação do Sr. Armand não contradiz a do Sr. Brès. Ao contrário, parece confirmá-la.
Seja como for, interessou-me sobremodo a minha investigação, cujos resultados mostram, mais uma vez, até que ponto, no que diz respeito, particularmente, ao culto dos mortos, o passado, apesar das aparências, continua vivo entre nós.
Fonte: Bulletin de la Societé préhistorisque de France, Tomo 14, n 2, 1917.
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