O HOMEM VERMELHO - Conto Clássico de Horror - Marie-Anne de Bovet
O HOMEM VERMELHO
Marie-Anne de Bovet
(1855 – 1943)
Em um vagão de terceira classe de um trem vagaroso, Amalia Keller sonha tristemente. Enquanto os seus olhos — míopes, rodeados de pestanas raras e encravados em umas pálpebras inchadas pelo correr continuo das lágrimas — contemplam fugir vagamente a planície monótona e calva, o seu espirito absorve-se na contemplação do doloroso destino que Deus lhe reservara.
A sua mãe, nevropata no caráter mais agudo, enlouquecera por ocasião de um acidente, no qual escapara de perder a vida. O seu pai, empregado subalterno da administração pública, já inclinado à embriaguez, nela se deixou cair depois do desastre que acontecera à esposa, concorrendo, assim, para o desmoronar do lar, onde já faltava o principal esteio.
Certa noite de inverno, tendo bebido em excesso, ao sair da taverna, foi atacado de uma congestão cerebral, que o fulminou em poucos momentos. E os filhos, nascidos de um união de desequilibrada e alcoólatra, abandonados em uma situação crítica, não somente por falta de recursos, mas ainda devido à tara original que sobre eles pesava, achavam-se incapazes de enfrentar a luta pela existência.
Um dos rapazes era epiléptico; um outro, coxálgico; uma menina era aleijada e a última, tuberculosa. Ela, Amalia Keller, a mais velha, a menos desgraçada, em suma, não era, contudo, completamente isenta de males: sofria de anemia, faltavam-lhe as cores nas faces. Um dos olhos, atacado de estrabismo divergente, via pouco. Um tique nervoso desfigurava-lhe um tanto o rosto. Contudo, a sua saúde era robusta, apesar de síncopes ou desmaios que, de vez em quando, a atacavam. Educada para militar no magistério, era senhora dos conhecimentos indispensáveis para um tal mister. Essa enfermidade materna, porém, que a desqualificava; esse terrível mal hereditário a impedia de encontrar colocação.
O seu físico ingrato também falava em seu desabono; o seu aspecto tímido concorria para que a sua autoridade sobre as crianças fosse quase nula. Disto ela, em breve, se convenceu, quando tentou, em colégios humildes, empregar-se como professora auxiliar.
Com o correr dos tempos, os seus irmãos acharam-se ao abrigo da miséria. Os mais doentes encontraram abrigo em estabelecimentos hospitalares, a pedido de pessoas caridosas. Os outros, bem ou mal, entregaram-se a misteres ínfimos, é certo, mas iam ganhando a vida como podiam. E ela, a mais instruída, a menos enferma, apesar dos titânicos esforços que empregava, não conseguira colocar-se, ao menos, para sua manutenção.
Embora o seu exterior pouco recomendável a tornasse inapta para dama de companhia, ela tentou, contudo, a fortuna por esse lado. E as suas pequenas economias iam a pouco e pouco desaparecendo com as despesas de anúncios, nos quais oferecia os seus serviços em condições assaz humildes. O desânimo começava já a invadi-la, quando, certo dia, lhe chegou uma resposta. Aceitavam-na em uma casa de campo a 30 milhas de Königsberg.
Eis porque, nessa sombria e tristonha manhã, a desventurada Amelia embarcara em um trem misto da linha pouco frequentada, que se metia pelas terras da estéril e selvagem Pomerânia. Ela sonhava. E não era para se congratular pela colocação que encontrara. Na sua desconfiança doentia, parecia-lhe que, ainda uma vez, a sorte lhe seria adversa. E, desanimada, sem forças mais para lutar, comparava o seu destino ao dos seus companheiros de viagem: dois camponeses vestidos à moda da sua terra, uma mulher vendendo saúde como um animal e um homem fumando despreocupado o seu cachimbo. Aquela gente era pobre, não havia duvida; mas, não tendo experimentado dias melhores, era feliz. Rude devia ser a sua vida, mas garantida pelo trabalho dos seus abraços. A sua grosseira jovialidade era o sinal de uma alma simples, cujo desenvolvimento incompleto os colocava ao abrigo das dores morais. Algumas vezes, é certo, experimentariam amargores, já que a vida é um sofrer continuo, mas nunca chegariam a conhecer a amargura de um desgraçado ser deslocado, cujas aspirações, modestas embora, estariam condenadas a não encontrar jamais satisfação. E, fazendo essas considerações, Amélia chorava.
UM NOME QUE FAZ MEDO
Um vez inquieto o seu espirito por uma infantilidade oriunda da sua pusilanimidade nervosa, uma sorte de terror vago dela se apoderara. Começou a experimentar um medo atroz, por causa do nome daqueles para cuja companhia ela se dirigia: Rothsmann —Homem vermelho... Absurdo, ela bem o compreendia. Que quer dizer esse nome? Bem sabia, pelo menos assim julgava, que não se tratava senão de um bom lavrador, inocente e bom, talvez, e que de vermelho não teria senão as faces e as suas beterrabas. Este pensamento a fez sorrir e foi, então, com o espirito mais tranquilo, que ela desembarcou na pequena estação solitária. Na sua frente, viu o chefe da estação, cheio de pose, com o seu boné encarnado. Toda perturbada, o que lhe acontecia sempre que tinha que tornar alguma iniciativa, perguntou-lhe se ficava muito distante a residencia dos... Ora, adeus; havia esquecido o nome e o lugar. Abriu, então, a sua bolsa de mão, de onde retirou o papel que lhe mostrou. O funcionário, com os seus bastos bigodes puxados a Kaiser, com aquela atitude de ex-suboficial de ulanos1, endireitou-se mais ainda e, retirando do endereço os olhos, fitou-os cheio de espanto na sua interlocutora. Serenando a fisionomia, respondeu:
— Duas milhas a andar!
Que faria ela do seu saco de lona que, com dificuldade, podia suster? Já ela pensava como sair daquela dificuldade, quando um garoto, dela se aproximando, com maneiras aparvalhadas, comunicou-lhe que fora enviado por Neu Rothsmann para conduzi-la.
O enviado apoderou-se da pequena bagagem e Amélia Keller pôs-se a caminho por entre aquela charneca deserta e tristonha, onde poças de água estagnada se viam aqui e ali e onde o coaxar melancólico das rãs se fazia ouvir.
O seu condutor, que parecia meio idiota, nenhuma resposta dava às suas perguntas, de maneira que, fatigada de tentar uma conversação, calou-se também e, assim, venceu a grande distância, até se aproximar da vivenda.
A sua tristeza ia aumentando à vista daquela casa descuidada, de cujas paredes caía aqui e ali a caliça; do pátio mal tratado, surgiam ervas daninhas, que estrangulavam um pouco de vegetação útil que lá ainda havia. Tudo naquelas paragens respirava febre e miséria.
Agrupadas nas míseras casinhas, notavam-se mulheres esquálidas e esfarrapadas, tendo ao colo crianças raquíticas. A sua presença parecia causar admiração, tais os olhares de curiosidade que sobre a sua pessoa pesavam.
Ao se abeirar da porteira, um cão magro e leproso ladrava sinistramente. Com um valente pontapé, o garoto fê-lo ganir de dor em um canto. Por duas vezes, puxou uma corrente enferrujada e o som lúgubre de um sino se fez ouvir.
No mesmo instante, a porta carcomida abriu-se e uma criada mal-encarada apareceu, convidando por gestos Amalia Keller para que a seguisse. Foi introduzida em uma espaçosa sala, mal iluminada, e cujo papel, devido à umidade, despregava-se, bolorento.
COMO FOI RECEBIDA A POBRE MOÇA
Não demorou muito e os donos da triste morada deram entrada na sala. A senhora era pálida e doentia, com os cabelos raros. A sua fronte deprimida estava coberta por numerosas rugas. Os ombros estreitos caíam acentuadamente. Metida em um vestido roxo desmaiado, parecia uma vara coberta de pano. Com passos cadenciados, quase como um autômato, dirigiu-se a uma poltrona de couro, onde se deixou cair, sem mesmo cumprimentar a estranha com um movimento de cabeça.
O marido, ao contrário, era um homem corpulento, de alta estatura, bigodes bastos e ruivos, cabelos aparados rentes, tais como os oficiais do exército. No seu rosto cor de tijolo, surgiam salientes as maçãs. O queixo era maciço, denotando ferocidade. Os olhos, de um verde esbranquiçado, despediam relâmpagos. Era, em suma, uma figura desagradável, um desses tipos que inspiram aversão, mesmo à primeira vista. O seu trajar estava de acordo com o seu físico. Usava um culote azul claro, pouco asseado e remendado e botas de montar de couro grosseiro. A blusa, cor de cenoura, abria-se no peito de Hércules, coberto de pelos cor de macaco.
Considerando Amalia Keller com umas maneiras arrogantes e desprezíveis, interrogou-a brutalmente e como que gozando da perturbação da interrogada.
— Você tem qualquer coisa de extraordinário no rosto — disse ele bruscamente. — De onde provém isto?
— Sou muito nervosa, senhor — respondeu a pobre moça, baixando os olhos.
— Nervosa, somente? Nada de mais grave? Vamos, senhorita Keller, sabemos onde acabou sua mãe. Não é lá muito recomendável.
As faces pergaminhosas de Amalia empurpuraram-se.
—Moléstia acidental, senhor… Um pavor… Quando nasci, ela se achava nesse estado peculiar a todas as senhoras… muito nervosa. E eu, senhor, sou também muito nervosa, mas sinto-me perfeitamente bem.
— Está bem. Veremos isso depois. Qual o teu parecer, Augusta?
A Sra. Rothsmann levantou os olhos sem expressão e com uma voz sem timbre, qual moribunda, disse:
— É feia!… Não gosto de gente feia.
O marido soltou uma gargalhada desagradável.
— Ora! O hábito não faz o monge. Está vendo, senhorita Keller, a minha mulher ama a franqueza. Não dê importância.
— Ela é feia — repetiu a pálida criatura… Gottfried não a amará.
No mesmo instante, o tom de doçura que empregara, quando se dirigia à esposa, transformou-se em violência. Lançando-lhe um olhar furioso, gritou-lhe:
— Teufel2!… Demônio de peste!… Idiota!… Que diabo estás a dizer aí?!
A sua fisionomia tornou-se cadavérica e os lábios descorados tremiam pelo efeito da raiva que o dominava. Recobrando, porém, o sangue frio, retorquiu com brandura afetada:
— Não ligue ao que ela diz, senhorita; com o correr do tempo, as coisas se modificarão. Magda vai conduzi-la ao seu quarto.
Dito isto, saiu assoviando uma canção de caçador, batendo grosseiramente os tacões.
O aposento — tristonho, úmido, impróprio para dormitório, cheirando a bafio —, a pobre Amalia teria considerado como um cômodo esplêndido, se não fosse a recepção antipática que ela teve naquele ambiente.
Pouco depois, o jantar alemão de duas horas reuniu toda a família ao redor de uma mesa malservida, onde a carne preparada com descuido era assaz abundante. Em face de Amalia havia tomado lugar um rapaz desenvolvido, de 17 anos, de uma gordura balofa, de cabelos cor de açafrão e de olhar velhaco.
Compreendeu logo a nova governanta que se tratava de Gottfried, nascido do primeiro matrimônio de Mme. Rothsmann. Era ele o herdeiro daqueles domínios, que mais tarde seriam de grande valor — sabia-se —, por conter no seu solo grandes jazidas de turfa.
AQUELE SER BIZARRO TORNOU-SE DISCÍPULO DE AMALIA
Notava-se, à primeira vista, que Rothsmann experimentava uma manifesta aversão pelo enteado, aquele pobre imbecil, estorvo único entre ele e uma fortuna. Bem compreendia que, desaparecido aquele aborto, seria ele o senhor absoluto de tudo, tal a tirania que exercia sobre aquela mulher fraca, vivendo sob o jugo do mais revoltante terror.
O pobre moço, que, como sua mãe, mostrava uma indiferença à vista odienta do padrasto, só tinha um sentimento: o amor filial. Esses dois entes bizarros — mãe e filho — passavam o tempo um ao pé do outro, amando-se, sem nunca falarem. A sua vida transcorria monótona naquele lar.
Por que razão havia o dono da casa tomado para o serviço Amalia Keller?
A nova empregada ia e vinha, por aqui, por acolá, sem que nenhuma tarefa se lhe entregasse… Vivia quase como ignorada. Os donos da casa raramente lhe dirigiam a palavra. Gottfried não saía da sua mudez. Se Amalia lhe falava, a mãe do rapaz, num acesso de ciúme, cortava a conversação. Ali vivia-se como em um cemitério: nenhum passeio, visitas de espécie alguma.
Criatura instruída, necessitando de convivência, procurava a companhia da criada, mulher ignorante, sofredora resignada dos maus tratos de Rothsmann.
Essa existência intolerável foi a pouco e pouco atacando os nervos da governanta. Chegava momentos em que tinha saudades dos tempos miseráveis por que havia passado.
Além disso, ela sentia que aquela atmosfera estranha enfraquecia a sua vontade, já combalida pela moléstia nervosa, ao mesmo tempo que a acuidade do seu espirito pressentia um drama tenebroso prestes a se desenrolar.
Amalia vivia como em um eterno pesadelo, desses em que a gente vê o perigo sem forças para conjurá-lo.
Contudo, uma modificação se produziu na sua existência, mas para pior. A indiferença estúpida que Gottfried lhe manifestava transformou-se, apesar da sua fraca inteligência, em uma hostilidade grosseira. Ele começou por lhe fazer caretas, acabando por invectivá-la. Quando se achavam à mesa, o imbecil não perdia ocasião de lhe dar pontapés. E parecia à vítima que aquele ato do rapaz era aprovado pelo dono da casa. À vista, pois, daquela situação, Amalia resolveu reclamar os cinquenta marcos do ajuste e voltar para Königsberg, ou afrontar os sofrimentos da fome. Continuar ali é que não era possível.
INESPERADA REVOLTA DE AMALIA — TRAÍDA PELA FATALIDADE
Justamente na tarde do dia em que a governanta tomara aquela resolução, depois do jantar, reuniram-se, como era hábito, na espaçosa biblioteca. Naquele jantar, mais do que nunca, suportou Amalia os insultos do monstrengo.
E, enquanto Rothsmann fumava o seu cachimbo, a Sra. Rothsmann fazia croché e Amalia bordava à claridade da lampada de petróleo, Gottfried prosseguia na ofensiva começada no jantar, com tácito consentimento dos presentes.
Em determinado momento, como não bastassem as descomposturas, o gnomo avançou para Amalia e tentou atingir-lhe o rosto com uma bofetada.
Ou fosse porque a governanta não mais pudesse suportar tantos maus-tratos, ou fosse porque tomara já a resolução de se despedir, o certo é que a senhorita Keller, levada ao paroxismo da indignação, retrucou-lhe na mesma moeda.
— Miserável criança, tu te arrependerás de tanta perversidade!
E, depois de lhe dirigir ainda algumas palavras ásperas, saiu da sala arrebatadamente e dirigiu-se ao seu apartamento. Chegada ao quarto de dormir, atirou consigo sobre a cama; e como os seus nervos, sob tanta pressão, se distendessem, por assim dizer, a pobre empregada ficou como que em uma inércia, uma especie de desmaio.
Quanto tempo assim levou, não se lembrava ela. Quando tomou de novo conhecimento, era já alta noite. As luzes da casa se haviam extinguido. Um silêncio sepulcral reinava naquela morada.
Só então se lembrou de haver esquecido a sua sacola de trabalho na biblioteca. A fim de não incomodar os habitantes dali, tirou os sapatos e, de meias somente, saiu do quarto, tendo antes tomado uma vela, cuja chama protegia com a concha da mão.
O seu aposento era situado em um ângulo; ao dobrar o cotovelo formado pelo longo e escuro corredor, avistou um vulto que, saindo do aposento dos Rothsmann, se dirigia para o quarto de Gottfried. Assustou-se e quase deixou cair a vela. Lembrando-se, porém, de que talvez a Sra. Rothsmann aproveitasse do sono do marido para visitar o filho, sorriu do seu temor.
Continuou, pois, o seu caminho. Fora, a tempestade bramia. Grossas bátegas batiam com violência nos vidros das janelas. Os coriscos sucediam-se. Era dantesco aquele espetáculo da natureza.
AMALIA PISA EM UMA POÇA DE SANGUE
Ao passar, na volta da biblioteca, pela porta do quarto do rapaz, pareceu a Amalia ouvir um grito rouco, sufocado, como alguém nos últimos estertores da agonia. Os seus pés grudam-se no soalho. Ela fica como hipnotizada. Quanto tempo assim ficou, não se sabe. De repente, a porta abre-se com violência e a governanta, à luz baça de uma lâmpada, vê um leito desfeito, com os lençóis ensanguentados, e, no meio do aposento, um enorme corpo seminu, de cuja garganta horrivelmente golpeada escapava o sangue em borbotões. Quando menos espera, uma sombra negra atira-se sobre ela como um tigre e, arrastando-a com força hercúlea, leva-a até a porta do seu aposento, atirando-a com violência sobre o leito e batendo a porta, depois de sobre ela atirar um objeto brilhante.
Vencida por tantas emoções, a desgraçada desmaiou.
Quando deu acordo de si, encontrou-se entre gente estranha, que a invectivava. Os pés e as mãos estavam amarrados.
— Senhorita Keller, esse seu acesso foi de consequência trágica. Bem motivo tinha eu de andar desconfiado — disse-lhe Rothsmann, em tom irônico.
Foi então, somente, que Amalia compreendeu o alcance daquelas palavras. Balanceou a sua situação. Era a mais grave possível.
Sabia-se haver morrido louca a sua mãe, as suas vestes estavam manchadas de sangue e no seu aposento foi encontrada a faca assassina. Que provas mais eram precisas para ser ela condenada?
Via-se já diante da multidão, antevia a guilhotina… Horror… Quis falar… Impuseram-lhe silêncio. Sem mais cerimônia, conduziram-na à adega úmida e escura, onde a deixaram, fechando a maciça porta. Esperavam-se as autoridades.
PARA A LIBERDADE E LOUCURA!…
Fugir!… Fugir!… Mas de que maneira? A porta aferrolhada, a prisioneira fortemente amarrada! Morrer, mil vezes a morte. Só ela poria fim a tão horrível pesadelo.
De repente, na escuridade da noite, um fio de luz penetra por baixo da porta e a chave gira na fechadura. A morte? A liberdade? A loucura? Uma figura de mulher aparece-lhe diante dos olhos. A prisioneira a conhece: é a Sra. Rothsmann. Terá ela vindo para vingar, pelas próprias mãos, a morte do filho? Não. Sem ódio, sem cólera, ela se abeira de Amalia, grave, fria como o mármore, com movimentos de autômato. Desamarra as cordas que prendem a prisioneira e, com voz fraca, semelhante a um sopro de moribunda, diz:
— Vá. Eu não a estimo e ele ainda menos a queria, mas sei que você está inocente e eu não quero que o seu sangue caia sobre a minha cabeça... É verdade que a minha vez não demorará a chegar! Não importa. Ele já não é deste mundo. Vá embora... Depressa!... Ninguém a verá fugindo!... Saia pela porta de serviço e passará despercebida…
Durante o resto da noite, a desgraçada correu sem cessar…
Bem distante já, prenderam os gendarmes uma mulher desgrenhada, com as vestes em farrapos e os olhos desvairados: era uma louca. Assustada, atemorizada, dizia sem cessar: “O homem vermelho!… O homem vermelho!…”
Reconhecida louca, como louca fora sua mãe, Amalia Keller foi recolhida ao manicômio. Consideraram-na irresponsável pelo delito que houvera cometido. A pouco e pouco, porém, as suas faculdades foram-se normalizando. Compreendeu ela, então, a amplitude da sua desgraça. Dotada de rara inteligência, sabia que, curada, seria entregue de novo à justiça.
Não. Mil vezes não. Era preferível passar por louca. Todos eram bons para ela. Comia bem, dormia bem. Que mais poderia desejar? E assim, dócil, obediente, trabalhava com admirável habilidade em crochês e bordados, com elogios dos chefes da casa. Era melhor assim. Demais, quem sabe se, com o correr do tempo, não acabaria mesmo louca, assim como sua mãe? Quanto a Rothsmann, pelo suicídio da esposa, que fora encontrada morta, com as carótidas cortadas, herdou os seus bens, vendeu a herdade por bom preço e desapareceu da província. E assim terminou a historia do Homem Vermelho.
Fonte: Vida Policial/RJ, edição de 26/12/1925.
Ilustração: Augustus Leopold Egg (1816 – 1863).
Notas:
1Soldado de cavalaria, armado de lança, em exércitos russos e germânicos.
2Diabo, em alemão.
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