TRÊS DOMINGOS NUMA SEMANA - Conto Insólito - Edgar Allan Poe
TRÊS DOMINGOS NUMA SEMANA
Edgar Allan Pöe
Tradução de autor anônimo do início do séc. XX.
— Sem coração, estúpido, maníaco, rançoso, velho, selvagem! — dizia eu, com os meus botões, uma tarde, endereçando essas palavras ao meu tio Rumgudgeon, a quem eu ameaçava com a mão fechada na imaginação.
Oh! Somente na imaginação! O fato é que havia alguma contradição entre o que eu dizia e o que não tinha coragem de dizer, entre o que fazia e o que tinha vontade de fazer.
O velho lobo do mar, quando abri a porta da sala, estava sentado, com os pés sobre a laje da lareira, tendo à mão um cálix de vinho do Porto, e pondo em prática o rifão:
Enche o teu copo vazio!
Esvazia o teu copo cheio!
— Meu querido tio — disse-lhe, fechando delicadamente a porta, e aproximando-me dele com o meu sorriso mais sedutor —, o senhor sempre tem dado provas duma tal bondade, de uma tal indulgência... tem mostrado tantas vezes... em tantas ocasiões... a sua benevolência para comigo, que... que... sinto perfeitamente que bastará lembrar-lhe aquele assunto para ficar certo de seu completo consentimento.
—Hum! — fez ele. — Ótimo, rapaz! E depois?…
— Estou certo, meu querido tio... (Que o diabo carregue este velho tonto!) de que o senhor não tem uma séria intenção de opor-se... ao meu casamento com Kate. É, simplesmente, não é? Simplesmente uma boa farsa de sua parte... Ah! Ah! Ah!... Em certas ocasiões, o senhor tem mesmo boas!...
— Ah! Ah! Ah! — gargalhou ele. — Grande maroto! É verdade!
— Mas, sem dúvida!… Nem é preciso dizer!… Eu sabia que era brincadeira. Ora, meu tio, a nossa única ambição, minha e de Kate, é que o senhor tenha a bondade de comunicar-nos a sua decisão, em relação à data… Compreende… meu tio? Enfim, qual é a época em que mais lhe convém que se realize a cerimônia, porque… afinal… compreende!
— A cerimônia, hein? Desbriado! Hás de saber um dia… quando é que ela se realiza!
— Ah! Ah! Ah! É muito boa! Esta é mesmo forte! Que espírito! Mas, como lhe ia dizendo, a nossa única ambição, no momento, meu caro tio… compreende… é que nos indique a data, com precisão…
— Ah! Com precisão, hein?
— Sim, meu tio, é isso mesmo, se não lhe for desagradável…
— Mas, não poderíamos, Bobby, deixar essa data um pouco no ar? Por exemplo… dentro de um ano… Queres mesmo uma data precisa?
— Se fosse possível…
— Pois bem, meu caro Bobby… Você é um finório, sabe?… De modo que, como vocês querem uma data fixa, vou satisfazê-los, ao menos uma vez…
— Querido tio…
— Silêncio, jovem! (Engoli o que ia dizer). Vou satisfazê-los uma vez, ao menos... Terão o meu consentimento e minha ajuda em dinheiro — não esqueçamos: a ajuda em dinheiro!... Hoje é domingo, não é verdade? Pois bem, então, vocês casar-se-ão, com certeza — com certeza, estás ouvindo? — na semana dos três domingos! Compreendeste bem? Quero dizer que terás a tua Kate e o dote na semana dos três domingos. Mas nunca antes, sabe, grande velhaco? — nunca antes, nem mesmo se eu morrer... Conhece-me. Sou um homem de palavra!... Retire-se!...
Dizendo isto, ingeriu o seu cálix de vinho do Porto, enquanto eu saía precipitadamente da sala, num desespero...
***
O meu tio-avô Rumgudgeon era o tipo acabado do “velho pequeno-gentleman inglês”. Mas, ao contrário do herói da canção, tinha muitos pontos fracos. Era um homenzinho asmático, irritadiço, bochechudo, hemisférico, com um nariz rubicundo, uma enorme cabeça, uma bolsa bem recheada e um sentimento muito profundo da sua própria importância. E, apesar de tudo, o melhor coração do mundo. Dominava-o, porém, um espírito de contradição que lhe valera, da parte daqueles que só superficialmente o conheciam, a reputação de intolerável maníaco. A qualquer pedido que se lhe fizesse, respondia imediatamente com um categórico e decisivo "não". Mas, depois de ter teimado por muito tempo, por um tempo interminável, acabava quase sempre acedendo ao que se propunha. Defendia a sua bolsa de todos os assaltos, com um verdadeiro encarniçamento; mas, afinal, chegava-se a extirpar-lhe alguma quantia, diretamente proporcional à duração do cerco e à teimosia da defesa. Ninguém era caridoso com mais liberalidade, nem mais desgraciosamente.
Às belas artes e às letras, em particular, votava o mais vigoroso desprezo. Neste ponto, era uma espécie de pequeno Casimir Périer1, gostando de citar, com uma impagável pronúncia, a impertinente sentença: “Para que serve um poeta?”, boutade2 que considerava o nec plus ultra3 da sabedoria e da lógica.
Assim, a minha inclinação pelas Musas o enraivecia sobremaneira. Um dia, pedindo-lhe eu certa edição nova de Horácio, declarou-me que a única tradução justa do famoso poeta era: Poeta nascitur non fiat: “Os poetas nascem para nada de útil fazerem”. O que me pôs fora de mim de furor.
A sua aversão pelas humanidades ainda aumentara, nos últimos tempos, em consequência de um incidente que o orientara bruscamente para o que ele supunha serem as ciências naturais. Alguém o abordara na rua, tomando-o, nem mais nem menos, do que pelo Doutor D. L. D., o professor de física experimental. Entrou por essa tangente e, a partir dessa fase da minha história — pois, afinal, é de uma história que se trata —, tornou-se impossível conversar calmamente com o meu tio-avô Rumgudgeon, salvo sobre coisas que ele pudesse relacionar com a sua nova mania. Tudo o mais lhe era completamente indiferente.
A sua política era das mais intransigentes e simples. Pensava, com Horsley, “que os homens não se devem ocupar das leis senão para cumpri-las”.
Vivera toda a minha vida ao pé do velho gentleman. Os meus pais, ao morrerem, lhe haviam legado a minha pessoa como um valioso presente. Creio que, no íntimo, o velho corsário me queria como se eu fosse seu filho, quase tanto como queria à sua adorada filha Kate, mas isso não o impedia de me dar uma vida de cão.
Até os cinco anos, periodicamente gratificou-me com vigorosas surras. Dos meus cinco aos meus quinze anos, cada dia que Deus fazia, renovava a promessa de me não deixar nem um xelim. Confesso que era um péssimo sujeito, mas era questão de temperamento, questão de princípio da minha parte. Em Kate, porém, eu tinha uma devotada amiga, e o sabia. Era uma menina desenvolvida.
Um dia, declarou-me ela, com uma infinita doçura, que seria minha, com todo o seu dote, quando eu obtivesse de meu tio Rumgudgeon a indispensável permissão.
Coitada! Tinha apenas quinze anos e, sem este consentimento, não podia entrar na posse do seu pequeno capital, enquanto se não passassem cinco intermináveis invernos. Que fazer então? Aos quinze anos, assim como aos vinte e um, pois eu já fizera a minha quinta olimpíada, cinco anos ou cinco séculos de espera são a mesma coisa. Em vão importunamos sem descanso o velho gentleman. Era um homem de extraordinária resistência, e o nosso cerco não podia senão deliciar o seu espírito combativo. O próprio Jó revoltar-se-ia vendo aquele indivíduo violento torturar os dois desgraçados ratinhos que nós éramos. No íntimo, o seu maior desejo era ver-nos unidos. Acariciara esse sonho toda a vida. Mas, nós cometêramos o erro de pôr em discussão o assunto. Deste momento em diante, creio sinceramente que já estava acima das suas forças deixar de contrariar o nosso projeto.
Quis o acaso que, nas relações do meu tio, no mundo da gente do mar, houvesse dois cavalheiros, que acabavam justamente de desembarcar na Inglaterra, após um ano de ausência, passado em viagens pelo estrangeiro.
Em companhia destes senhores, fomos previamente combinados à presença do tio Rumgudgeon, numa certa tarde de domingo, exatamente três semanas após a memorável decisão que, de um modo tão cruel, cortara as asas à nossa esperança. Durante uma meia hora, a conversa manteve-se no terreno da banalidade. Mas, afinal, conseguimos fazê-la tomar este rumo:
CAPITÃO PRATT — Sim, estive ausente por um ano. Pela minha vida! Faz um ano hoje. Vejamos… sim! É isso mesmo! Hoje é dez de outubro. Não se lembra, Sr. Rumgudgeon, que eu passei por sua casa neste dia, no ano passado, para despedir-me? E, diga-se de passagem, acontece, por uma verdadeira coincidência… não é?… que o nosso amigo Smitherton, esteve também ausente, por um ano, hoje completado!
SMITHERTON — Sim, exatamente um ano… Ainda não se esqueceu, Sr. Rumgudgeon? Eu também vim com o capitão Pratt trazer-lhe as minhas despedidas…
O TIO — Sim… sim… Lembro-me muito bem… É realmente esquisito… Os dois se demoraram o mesmo tempo, um ano!… Estranha coincidência, na verdade! É certamente o que o Doutor D.L.D. chamaria um extraordinário concurso de circunstâncias. O Doutor D…
KATE, (interrompendo-o) — Pois então, papai! É um caso bem estranho! Mas é preciso dizer que os nossos bons amigos não seguiram o mesmo itinerário, o que já é uma diferença, não é?
O TIO — Eu de nada sabia, menina. Como poderia sabê-lo?! Mas, sendo assim, o caso é ainda mais notável, e o Doutor D.L.D....
KATE — Com efeito, papai, o capitão Pratt dobrou o cabo Horn4, e o capitão Smitherton, o da Boa Esperança5.
O TIO — Vejam! Ia um por Leste, o outro por Oeste, espertalhona! E ambos fizeram a volta do mundo. A propósito, o Doutor D.L.D…
EU PRÓPRIO — (com precipitação) — Capitão Pratt, o senhor deveria vir, amanhã, o senhor e o capitão Smitherton, jogar uma partida de uíste conosco, e contar as vossas viagens…
PRATT — Uma partida de uíste, meu caro jovem? Você esquece que amanhã é domingo. Ficará para outro dia.
KATE — De modo nenhum, como assim? O Roberto está bem no seu juízo! Hoje é que é domingo.
O TIO — Perfeitamente! Perfeitamente!
PRATT — Peço que me desculpem, mas não tenho dúvidas quanto a isto. Amanhã é que é domingo, pois…
SMITHERTON (surpreso) — Oh! Mas… em que estão pensando todos? Ontem é que foi domingo, se não lhes causa agrado…
TODOS — Ontem, domingo? Ora, vamos, isso por aí não está funcionando bem…
O TIO — Hoje é domingo, repito. Sei muito bem o que estou dizendo!
PRATT — Não, senhor: amanhã é que é domingo!
SMITHERTON — Vocês estão todos loucos. Ontem foi domingo, e eu tenho tanta certeza disso, como de estar agora sentado nesta cadeira.
KATE (levantando-se de repente) — Compreendo, compreendo o que se passa! Papai, eis aqui o que o condena em relação ao assunto que não ignora. Deixe-me falar, que eu explico tudo num minuto. É muito simples! O capitão Smitherton acha que ontem é que era domingo. Tem razão: era domingo. O primo Bobby, o senhor meu tio, e eu, nós dizemos que hoje é que é domingo. É domingo: temos razão. O capitão Pratt sustenta que amanhã é que será domingo: também tem razão. De modo que temos todos razão, e esta é a semana dos três domingos.
SMITHERTON (depois de uma pausa) — Mas, você sabe, Pratt, que a nossa querida Kate está completamente com a verdade? Somos dois velhos asnos, nós! Veja como é a coisa, Sr. Rumgudgeon. A Terra, como sabe, tem 24.000 milhas de circunferência. O globo terrestre roda em torno do seu eixo, com uma velocidade de 1.000 milhas à hora. Está compreendendo, Sr. Rumgudgeon?
O TIO — Certamente, certamente! O Doutor D....
SMITHERTON (atalhando-o) — Agora, suponha que o meu navio me leve a 1.000 milhas a Leste. Naturalmente, fico com um adiantamento de uma hora exatamente sobre o nascer do Sol em Londres. Se continuar na mesma direção, por mais 1.000 milhas, fico com um adiantamento de duas horas sobre o nascer do Sol; e assim por diante, até que tenha feito completamente a volta do mundo, chegando de novo a este lugar. Percorri, portanto, 24.000 milhas na direção Leste, e tenho, sobre o nascer do Sol em Londres, uma bela diferença de 24 horas, quer dizer, de um dia. Compreendeu, não?
O TIO — Mas D.L.D....
SMITHERTON (com energia) — Com o capitão Pratt, indo para Oeste, sucedeu o contrário. Atrasou-se ele de 24 horas, isto é, de um dia. Assim, para mim, era domingo ontem. Para você, é hoje. Para Pratt, será amanhã. E o que mais é, Sr. Rumgudgeon, nenhum de nós deixa de ter razão. Pois, não há razão científica alguma que nos possa obriga a adotar uma dessas opiniões, com exclusão das outras…
O TIO — Pobre cabeça, esta minha!… Seja! Kate, como você disse, isso é a minha condenação. Como não ignoram, sempre cumpro a minha palavra. Você terá a minha filha, rapaz, com o respectivo dote, quando quiser. Três domingos, uns em cima dos outros! Vou agora mesmo pedir ao Doutor D.L.D. a sua opinião sobre o caso.
Fonte: “Leitura para Todos”/RJ, junho de 1923.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
Notas:
1Casimir Perier (1777-1832), político francês.
2Dito espirituoso.
3Suprassumo.
4O cabo Horn, situado no extremo meridional da América do Sul, situa-se no arquipélago da Terra do Fogo, na parte pertencente ao Chile.
5O cabo da Boa Esperança situa-se no sul do continente africano.
amigo Barão, este não conheço, vou ler! Incrível achado! E do Poe !
ResponderExcluirnote que o conto tem uma parte que lembra diálogos de roteiro ou teatro, o Poe era inovador mesmo...esse conto eu não conhecia. Na verade eu conheci Poe pela primeira vez na revista Aventuras Macabras da Bloch, tinha uma matéria sobre a vida dele e os contos clássicos em quadrinhos.Tudo feito pela Marvel. A Marvel no início se dedicava ao terror, mas depois por questões comerciais passou a explorar mais o filão dos super heróis. O próprio Stan Lee era roteirista de terror.
ResponderExcluirÓtima observação, Roger. E, veja, é um conto muito inteligente. Há um toque de humor que lembra DIckens.
Excluir