A DAMA DA ROSA BRANCA - Conto Clássico de Terror - Pedro de Répide
A DAMA DA ROSA BRANCA
Pedro de Répide
(1882 – 1948)
Tradução de autor anônimo do início do séc. XX
Embora pareça conto, não é, mesmo que o protagonista do caso, quando o referisse, o fizesse cheio de uma funda emoção, recordando a indubitável realidade do acontecimento. Deu-se o fato com um jovem diplomata alemão, que vivia em Madri durante os turbulentos dias em que o conde de São Luís concitava sobre sua pessoa as iras liberais e preparava um grande movimento revolucionário, que se esperava a todo momento. Pouco depois, efetivamente, saía de seu esconderijo para Chamberi, na carruagem guiada pelo marquês da Vega de Armijo; o general Dulce dispunha o levante no Campo dos Guardas e começava a Vicalvarada. Era o prelúdio da Revolução de Julho, que terminaria com a volta de Espartero e a marcha da rainha Cristina, após uns dias tremendos de anarquia e delírio popular.
Porém, enquanto mandavam os moderados, era quando a sociedade de Madri mais se divertia, e, melhor, exibindo-se no Prado, enchendo o teatro Real, inaugurado pouco antes, e, principalmente, vivendo de festa em festa nas mais altas residências da corte.
A duquesa de Alba, irmã da imperatriz de França, era a primeira elegante de Madrid, e sua carruagem aparecia nas ruas cercada de aristocráticos ginetes. Sua mãe, a condessa do Montijo, dava às suas amizades o encanto das reuniões dos domingos em seu palácio da praça do Anjo, e das festas em sua propriedade de Carabanchel, local ao qual ela e a rainha Cristina, com sua vivenda de Vista Alegre, haviam emprestado foros de sítio da moda, pretendendo arraigar o amor às casas de campo nas cercanias madrilenas. A própria rainha-mãe organizava também suntuosas festas em seu palácio da rua das Rejas, de maneira que não tardaria a parecer vítima do fogo revolucionário. Por aqueles dias havia animado também os salões a presença do príncipe de Parma, um rapagão original e pândego, que antes ou depois de uma refeição saltava sobre a mesa sem se preocupar com a baixela e os crestais, porém com estupefacção dos presentes ante aquela manifestação tão pouco principesca. Este príncipe, Fernando Carlos III, morreu assassinado pouco tempo depois.
Mas não cabe aqui a citação de todas as muitas e mui brilhantes personalidades, que eram o esplendor de Madri nos dias interessantes e agitados do começo de 1854.
Nessa sociedade, de uma aristocracia e distinção sem par, sentia-se encantado o diplomata alemão, bem recebido e tratado em toda parte. Era amigo das mais esplêndidas belezas; da duquesa Angela de Medinaceli, a morena andaluza; de Maria Bushental, a espirituosa, e de Carolina Coronado, a insigne poetisa. Osuna e Salamanca tinham para ele um lugar em sua mesa, em sua carruagem e em seu palco.
Uma noite, havia baile de máscaras no Real. O diplomata, a quem a princípio havia divertido o espetáculo do salão cheio de várias elegantes e luxuosas fantasias, acabou por sentir-se aborrecido e resolveu refugiar-se no palco de Salamanca, onde se sentou junto de uma porta. Estava sozinho e não tardou em ver que a porta se abria e uma gentil mascarada levantava a cortina. Era uma linda figura vestida de preto. Preta era também a máscara. Só as luvas eram brancas. Branca era também uma rosa que tinha em uma das mãos.
Sem que lhe dissesse palavra, fez-lhe um gesto imperioso, para que a acompanhasse. Dependurou-se lhe ao braço, obedeceu-lhe o cavalheiro e desceram ambos ao salão. A mascarada era muito bela, porém muda. Lindas e pequenas eram suas mãos, assim como seus pés. Seu porte, gracioso e esbeltíssimo. Seus olhos, muito negros, brilhavam debaixo da máscara.
Com um orgulho galante, de sobejo justificado, sentia-se satisfeito o cavalheiro por levar pelo braço tão gentil moça, que deveria pertencer, sem dúvida alguma, a uma das principais famílias da corte, pela graça aristocrática de seu porte e pela extraordinária riqueza de seu vestuário. Mas intrigava-o o mistério da bela desconhecida, que não se lhe acercara com atitude carnavalesca, nem dirigia a quem quer que fosse pilhérias nem palavra alguma. Apenas de quando em quando cravava em seu companheiro o fulgor penetrante de sus formosos olhos negros.
Nenhuma aventura poderia agradar mais ao cavalheiro do que aquela, que tão pouco se assemelhava às que podia esperar baile. Aguçada sua curiosidade, dizia-lhe de quando em vez quem acreditava que ela pudesse ser, repassando em sua memória os nomes de todas as formosuras aristocráticas da idade e do talhe de sua misteriosa companheira. Porém, a quantos títulos ele citava de duquesitas e marquesitas que lhe acudiam à lembrança, ia ela respondendo que não. E não respondia com a voz, e sim, apenas com um movimento de cabeça, que começava a desconcertar o afortunado rapaz.
Por fim, a mascarada falou:
— Serias capaz de vir comigo aonde eu te quisesse levar?
Finalmente, ouvira a voz da elegante desconhecida e, por felicidade, ela se lhe dirigia com tal convite, que o fazia ditoso.
—Como poderia eu deixar de acompanhar-te? — respondeu. —. Irei contigo aonde quiseres.
—Seriamente?
—Seriamente!
Saíram para o vestíbulo e a mascarada arrastou o companheiro para a rua.
— Não temos carro — advertiu-lhe ele.
— A mim pouco importa — replicou ela. — Amanhã, sim, eu terei uma das mais belas carruagens de Madri.
O cavalheiro saíra como estava, porque a mascarada não o deixara chegar ao vestiário, e ela também não levava abrigo algum. E como ele lhe observasse o frio que fazia, ela lhe respondeu:
—Estou mais fria do que a noite.
O cavalheiro não quis prosseguir e intimou a mascarada, já demasiado misteriosa, a declinar de uma vez seu nome e qualidade. Ela, todavia, não lhe atendeu às palavras e continuou arrastando-o a seu lado.
Passaram a rua do Areal e desembocaram na Puerta del Sol. Alguns mascarados dirigiam-se a outros bailes de categoria inferior e rodearam-nos cantando e saltando.
—Divirtam-se muito!
— Não é preciso tanta pressa, que, para onde vão, dá no mesmo.
— Deixemo-los, porque vão pensando na vida.
—Mas que par triste!
—Ninguém diria que vão de troça!
E, entre vaias ao par misterioso e gritos e piruetas, o bando de máscaras alvoroçados torceu para as bandas do Principal, enquanto o intrigado galã e a dama negra da rosa branca seguiam para onde só ela sabia.
Enveredaram pela rua de Alcalá. À porta do teatro do Museu, que ocupava o antigo convento das Vallecas, deteve-os outro bando de gente que entrava para o baile.
Um demônio convidava-o a passar.
—Olá! Aonde vais por aí abaixo? Já não são horas de ir ao Prado.
Outros mascarados fizeram-no calar-se. A distinção da negra da mascarada e o porte de seu amigo inspirava-lhes certo respeito Uma beata gritou-hes:
—Andai, andai, que ides ficar melhor do que nós!
E entrou no teatro.
O par misterioso prosseguia. Ao passar por diante das Calatravas, ouviu-se o toque do sino conventual que chamava para as orações as religiosas. Aquelas badaladas tinham algo de lúgubre, soando no ambiente da noite alta, e o cavalheiro sentiu que o braço da desconhecida apertava convulsamente o seu, ao ouvir a voz do sino.
Era por uma dessas claras, frias e diáfanas noites de fevereiro madrileno. O diplomata inquietava-se cada vez mais, observando o caminho que levavam. Poucas casas havia para aquele lado, embora fossem todas senhoriais, e era natural que se pudesse pensar em que a mascarada tivesse residência em alguma delas. Chegavam já diante da casa dos Heros e da hospedaria de São Bruno. Não era crível que para ali o conduzisse a dama misteriosa. Em seguida, a casa dos Alfinetes, que Rieza adquirira pouco antes, e depois a casa de Santamarca, a de Alcanices e o Prado. O muro da Boa Vista limitava o extremo do caminho que seguiam, e, mais além, o Posito de um lado e a fronde do Retiro do outro. Ao centro, no alto, a Porta de Alcalá fechava o quadro com a infinita elegância de suas linhas.
Terminava Madri. Para onde iriam? Onde ficaria a casa da dama, tão misteriosa como a própria mascarada? Internar-se-iam em demanda de algum palácio do bairro Barquillo?
—Estamos longe? — atreveu-se ele a perguntar, finalmente.
E ela respondeu calmamente:
—Não podemos estar mais perto.
Encontravam-se naquele instante à porta de São José, e ali a dama negra da rosa branca deteve-se.
—Vens? — perguntou-lhe, indicando-lhe a igreja.
Ele estremeceu diante daquilo que julgava uma indizível extravagância, e observou a inoportunidade da ocasião. À luz da Lua, desenhava-se estranhamente, sobre a pedra da fachada, a silhueta da negra mascarada, com seu vestido riquíssimo, coberto de vidrilhos que brilhavam com um raro fulgor de pontos fosforescentes.
O cavalheiro, porém, embora aturdido, não podia demonstrar temores indignos de sua pessoa. Novamente, a dama interrogou:
—Vens?
E ele respondeu:
—Vamos. Parece-me, porém, esquisito querer entrar agora na igreja.
A porta principal estava cerrada. Desceram a escadaria, com certo contentamento de parte dele; ela, porém, tomando-lhe outra vez o braço e disposta a guiá-lo, fê-lo dobrar a esquina da rua das Torres e chegar à porta das dependências do templo que aí vão dar. Empurraram-na. O postigo cedeu. Atravessaram o pátio e a perturbação do cavalheiro aumentava, vendo como a dama negra o guiava, através de um saguão e de pequenas portas, até o recinto sagrado.
A igreja ostentava grandes panos negros dependurados e, na parte central, erguia-se um catafalco iluminado pela luz tíbia e vacilante de uns círios.
—Esta manhã — disse a jovem misteriosa, indicando o catafalco —, trouxeram-me e colocaram-se aqui. Amanhã tornarão outra vez e será preciso que me encontrem onde me deixaram.
E fez ao galã estupefacto uma larga reverência por sua companhia, dizendo, enquanto se inclinava graciosamente:
— Cavalheiro…
Tirou a máscara e deixou ver, ou antes adivinhar um lindo rosto pálido, de uma polidez mortal. Os lábios assemelhavam-se a uma gota de sangue que começava a secar. Então, ela ofereceu-lhe a rosa branca que levava na mão. Moveram-se os largos panos que rodeavam o alto catafalco; houve um momento em que a luz escassa dos círios pareceu extinguir-se por completo, e a dama encantadora, a morta gentil, desapareceu aos olhos do diplomata.
Febricitante e atônito, temendo ter-se encontrado com uma louca, apressou-se o jovem a procurar a saída da igreja. Andou ao acaso muitas horas, preocupado com a sua extraordinária aventura, e, ao amanhecer, dirigiu-se de novo ao templo. Estavam tocando para a primeira missa, e entrou.
Lá estava o catafalco, e sobre ele, sem a menor dúvida, a inquietadora e linda misteriosa que lhe aparecera no palco de Salamanca. Com a claridade do dia, pode reconhecê-la perfeitamente. Era uma linda condessinha, com a qual havia dançado algumas vezes em casas nobres. Estava morta, com certeza, e à sua cabeceira havia uma coroa de rosas brancas. O cavalheiro comparou-as à que tinha na mão e viu que eram iguais.
Perguntou ao sacristão, que lhe confirmou ser a morta a tal condessinha.
— E veja o senhor — disse-lhe —, enterram-na com o vestido que fizera para ir a um baile, e que não chegou a estrear.
Sempre levando a rosa branca na mão, o diplomata saiu do templo, assaltado por uma febre fortíssima. Tomou um carro e, ao chegar a casa, fez chamar um médico. Três dias de alarmante enfermidade passou o jovem; e quando o médico o encontrou mais calmo, soube do caso. Precisamente aquele médico era o mesmo que assistira à condessinha em sua ultima enfermidade, da qual morrera por ter saído, contra seus conselhos, uns dias antes, para um baile, festa por que era apaixonadíssima. Nesse baile, a ultima pessoa com quem dançara fora o jovem estrangeiro, ao qual se apresentara logo no Real.
O médico, homem que não queria aceitar nada fora da realidade sensível, esforçava-se por dar uma explicação ao estranho caso da morta que fora ao baile de máscaras. Falou em mistificações, referiu que a condessinha tinha uma irmã extremamente parecida com ela, que estava louca, e que poderia ter fugido de casa durante aquela noite, com um vestido como o da irmã, para urdir aquela cena macabra.
Todavia, porque não havia de ser a morta mesmo? Que sabemos nós do reino ignorado do mistério? Nada há, talvez, mais certo do que o que se não vê. Nada mais verdadeiro do que o que se não sabe.
Fonte: “Pelo Mundo”/RJ, edição de julho de 1922.
Ilustração: Enrique Varela de Sijas (18?? – 1930).
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