EMBRUXAMENTO - Conto Clássico de Terror - Emilio Carrère

EMBRUXAMENTO

(Lenda Malaguenha)

Emilio Carrère

(1881 – 1947)

Tradução de autor anônimo do início do séc. XX



Minha madrinha, a condessa de Florestan, estava tão pálida e emagrecida!… Parecia um espectro e seus olhos fosforeciam como duas chamas satânicas. Senti medo e caí de joelhos, beijando a orla de seu amplo roupão de pelúcia.

Ela fitava-me friamente e tinha o aspecto de uma estátua fatídica, uma alegoria do irremediável. Na catedral próxima, os sinos dobravam e um ambiente de vidas irreais envolvia-me, como se todos os retratos do vasto salão fossem fantasias. Um terror extra-humano cercava-me.

Por que queria a condessa de Florestan que eu passasse a noite naquela casa? Aconteceu o que era fatal. Andei um pouco pelos corredores e fui atraído irremissivelmente pelo quarto mortuário de Blanca, que mal me atrevia a olhar, com o leito intacto e seus vestidos ainda pendurados a um cabide, junto à janela.

Chorei ali longamente e era já meia-noite quando Fabio, o velho criado, veio buscar-me e levou-me pela mão para o salão dos retratos tutelares, onde a chama de dois candelabros de bronze torciam-se no ar como répteis de ouro.

Junto à minha madrinha estava um ancião com longas barbas de profeta, envolto em um manto de forma antiquada, tendo a seu lado outro homem, de vestuário semelhante, embora mais moço e cego. Eu conhecia aqueles dois homens de os encontrar pelas estradas. Eram dois mouros, mendigos e curandeiros, que tratavam com ervas desconhecidas e prediziam o futuro.





É este o menino? — perguntou o velho. — Tem bonitos olhos, desses que veem os espíritos. Dom precioso e temível! Tanto melhor, senhora. Será um instrumento magnífico.

Minha madrinha contemplava em êxtase os retratos de guerreiros, bispos e santas e brancas mulheres, que eram os seus antepassados.

Deus me perdoe — murmurou ela. — Bem sei que condeno a minha alma entrando em pacto com bruxos e invocando poderes sobrenaturais. Vós, que conheceis a causa de meus pecados, rogueis por mim.

Havia no meio da sala uma cuba cheia de água, limalha de ferro e vidro moído. No fundo da cuba, dispostas como raios de uma roda, havia seis ou oito garrafas, das quais saíam varetas imantadas, segundo me informaram depois.

Conheces Rogerio de Haro, o primogênito dos marqueses de Mântua?

Sim, madrinha.

Se o conhecia! Sabia até que era ele o homem sem fé e sem palavra, que abandonara Blanca, depois de lhe haver jurado amor, causando sua morte.

Pois bem—disse o feiticeiro cego.— Olha atentamente para esta água, olha bem e hás de ver aparecer no fundo Rogerio de Haro.

Eu nada via. A luz das velas, vacilando, lançava sobre o fundo negro da cuba pequenos pontos luminosos e trêmulos; nada mais. Mas, pouco depois, vi que a água tomava tons plúmbeos, que se foram conformando, pouco a pouco, permitindo-me divisar, afinal, a silhueta de uma rua longa e tortuosa.

Vejo! — exclamei, enregelado de susto. — Vejo a rua da Fonte Velha.

Segue, criança. Vai por ela, seguindo. Onde estás?

Na praça. Diante dos arcos há uma porta iluminada. Ah! Aí vem Rogério. Está de pé, em plena luz.

E, de fato, eu tinha ali, diante de meus olhos, sorrindo, fanfarrão e provocante, o primogênito dos marqueses de Mântua.

Vês? Vês bem? — E, perguntado assim, o cego punha-me na mão um punhal. — Então mata-o.

Fiz um movimento para me afastar, com horror, mas a voz de minha madrinha fez-se ouvir metálica e imperiosa.

Mata-o. Que tem? É uma figura…

Não pude resistir ao sortilégio que me dominava e, por três vezes, cravei a lâmina na água, no lugar em que aparecia o peito e Rogério. A folha damasquinada chocou as garrafas diabólicas com ruído cristalino, que me enregelou. E, extenuado, por aquela liturgia sinistra, perdi os sentidos.

Posso dizer que só voltei a mim um mês depois, pois tanto tempo passei acorrentado ao leito, inconsciente pelo ardor de uma febre cerebral. Depois, a ninguém perguntei o que se pássara naquela noite horrenda. Minha madrinha nunca mais me falou nisso; passava noites e dias rezando e chorando silenciosamente; ou caminhando pela casa imensa, como uma alma penada.

A verdade é que nunca mais tornei a ver o belo cavaleiro de ares conquistadores. Nunca mais, como se a cuba o tivesse tragado para sempre. E, na fachada do palácio dos marqueses de Mântua, um ano inteiro, flutuou, sobre o escudo orgulhoso, a negra faixa do luto.


Fonte: “Eu Sei Tudo”/RJ, edição de dezembro de 1919.

Ilustrações: Enrique Varela de Seijas (18?? – 1930).

 

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