LIVROS ENCADERNADOS COM PELE HUMANA - Artigo - Paulo Soriano

LIVROS ENCADERNADOS COM PELE HUMANA

Paulo Soriano



Nada há de extraordinário em capas de antigos livros elaboradas com couro animal. Mas, se o animal for um ser humano, não há como evitar um profundo calafrio…

Numa viagem que fizera a Bremen em 1710, o bibliófilo alemão Zacharias Conrad von Uffenbach (1683 – 1734) encontrou um pequeno livro —Molleri Manuale Præparationis ad Mortem, no qual nada observou de extraordinário, salvo o terrível fato de que era encadernado com pele humana. “Essa incomum encadernação — disse ele —, que eu jamais dantes vira, parecia bem adequada a este livro, dedicado sobremodo à meditação sobre a morte”. Com efeito, traduzindo-se o título do livro que von Uffenbach tinha em mãos, tem-se: Manual de Preparação para a Morte, de Moller. O bibliófilo germânico registrou que a textura capa desse macabro opúsculo poderia ser facilmente confundida com a de couro de porco.

Os corpos de criminosos e malfeitores eram frequentemente usados em dissecações e para o ensino e treinamento de estudantes de medicina. É o que nos rememora o artista plástico e escritor inglês Rigby Graham (1931 – 2015) ao discorrer sobre esses livros macabros. E dá-nos o apropriado exemplo da Bristol Royal Infirmary. Nesse secular hospital-escola inglês, “a pele de um jovem assassino, John Horwood, foi usada para encadernar os registros de seu caso. Na ocasião, parte de sua pele foi curtida pelos cirurgiões que, numa aula, tão logo o carrasco ultimou a execução, realizaram a dissecação de seu corpo. O livro, marrom escuro e levemente manchado, constitui um grosso volume de 17” x 14" e duas polegadas de espessura. Está em um excelente estado de conservação e a encadernação, elaboradamente estampada, traz, além da apropriada imagem da caveira e ossos cruzados, uma inscrição gravada: ‘CUTIS VERA JOHANNIS HORWOOD’ (‘A verdadeira pele de John Horwood’). A modesta taxa cobrada pelo encadernador pelo trabalho completo — caveiras, bordas e legenda trabalhada em ouro — foi de trinta xelins.”

Graham dá-nos diversos exemplos da nefasta prática ao longo dos séculos:

William Corder, o assassino de Maria Martin, foi julgado e executado em 1828 por suas atividades no Red Barn. Após a sua execução, um cirurgião de Suffolk, Dr. George Creed, removeu a pele das costas do morto, curtiu-a e, posteriormente, persuadiu um encadernador local a usá-la para encadernar a famosa história de Curtis sobre o julgamento, publicada seis anos depois.

George Cudmore, executado em Devon em 1830, foi condenado a ser enforcado e dissecado pelo homicídio de sua esposa. O enforcamento ocorreu na prisão do condado e a dissecação no hospital local. Posteriormente, um livreiro de Excter pagou uma quantia considerável pela pele de Cudmore e a usou para encadernar as obras poéticas de John Milton, publicadas pela Tegg em 1852.

Jacques Delille, nascido em 1738 em Auvergne, tornou-se professor de poesia latina e abade de Saint Severin. Em 1769, publicou sua tradução das Geórgicas de Virgílio, que logrou um sucesso imediato, e sua fama se espalhou rapidamente. Quando morreu, em 1831, seu corpo foi levado a uma casa funerária para ser embalsamado. Um amigo e ardente admirador seu —o jovem estudante de direito chamado André Leroy — forçou a entrada no necrotério e retirou, da melhor forma possível, alguns pedaços da pele de Delille. Tais extratos foram, depois, curtidos e usados como decoração embutida em um exemplar de suas famosas Geórgicas.”

É claro que o emprego da pele humana em capa de livros é uma prática repulsiva, sobretudo quando realizada sub-repticiamente. Mas houve quem, talvez influenciado por um sentimento de gótico romantismo, chegou a atitude extremas: “Outro poeta, dessa vez um russo — escreve Graham —, sofreu um acidente de equitação que resultou na amputação de sua perna. Ordenou, então, que o membro separado fosse esfolado e a sua pele curtida e, depois, enviada a um encadernador para cobrir uma coleção de seus sonetos, que seriam apresentados pelo poeta, agora mutilado, à sua amada.”

O horror da Revolução francesa refletiu-se na elaboração de capas de livros. “Durante o Reinado do Terror na França — diz-nos Graham —, muitos corpos de aristocratas foram levados, ainda frescos, da guilhotina para o infame curtume de Meudon, subsidiado pela Convenção Nacional com a quantia nada desprezível de 45.000 francos do século XVIII. O couro, assim tratado, era usado para encadernar os escritos cada vez mais populares de Rousseau e de outros autores.

Até mesmo a famosa família de encadernadores Derôme produziu, em algumas ocasiões, encadernações em pele aristocrática. Ainda existe uma cópia encadernada por Nicholas Derône, o Jovem, com esse material, de Les Opuscules Philosophiques, obra de Jean Baptiste Suard (1733-1817), crítico e jornalista popular, publicada em 1796.”

Mesmo para fins libidinosos — esclarece o escritor inglês — era empregada a prática nefanda: “Há vários relatos de que os seios das mulheres eram usados na encadernação de livros, com o mamilo ocupando um lugar de destaque na capa e tendo sido trabalhado para melhorar suas qualidades decorativas. Fetichistas e colecionadores de erotismo sempre pagaram altos preços por livros com encadernações incomuns, assim elaboradas por Isidore Liseux e outros. Tais livros são frequentemente encontrados, mas, naturalmente, os fatos são muito difíceis de comprovar, pois poucas pessoas admitem possuí-los, salvo aos amigos mais íntimos, que igualmente colecionam coisas desta espécie. A riqueza e o tédio de alguns setores aristocráticos da sociedade continental no século XVIII levaram a uma maior sensibilidade e, entre certas pessoas, propagou-se o desejo pelo raro, pelo singular, pelo estranho e pelo incomum. Não nos convém entrar em detalhes, mas é suficiente afirmar que a bibliofilia oferece muitos exemplos doentiamente engenhosos de capas de livros de peles de seres humanos, produzidos para satisfazer tais desejos.”

Registra-se que, no Grolier Club — clube privado de bibliófilos de Nova York — expôs-se, em 1903, numa seção peculiarmente denominada “Encadernações com materiais estranhos”, três exemplares de “Dança Macabra” — livro de xilogravuras de Holbein, o Jovem (c.1497 – 1543) — encadernados com pele humana do século XIX.

Diz-se, também, que uma admiradora do astrônomo e pesquisador psíquico francês Camile Flammarion (1842 – 1925) teria doado a própria pele para encadernar um dos livros do célebre cientista. De fato, o Observatório Flammarion conserva uma cópia de seu livro “A Pluralidade dos Mundos Habitados”, carimbado com os seguintes dizeres: “encadernação em pele humana, 1880”…

Talvez ironicamente, um exemplar de “De Humani Corporis Fabrica” (“Sobre a Estrutura do Corpo Humano”), do célebre anatomista flamengo Andreas Versalius (1514 – 1564), foi especialmente encadernado em pele humana Para a Exposição Mundial de Paris de 1867.

Recentemente, a biblioteca da Universidade de Harvard, invocando razões de ordem ética, baniu de suas estantes — onde permanecera desde 1934 — um exemplar do livro Des Destinées de l’Ame (“Sobre os Destinos da Alma”), no qual o romancista francês Arsène Houssaye (1814 – 1896) tece reflexões sobre a natureza da alma e sobre a vida após a morte. Motivo? A capa. O primeiro dono do exemplar proscrito, o então estudante de Medicina Ludovic Bouland (1839 – 1933), encadernara a obra com a pele das costas de uma paciente indigente — que ele mesmo, na surdina, cuidara de retirar — falecida num hospital psiquiátrico. Segundo ele, um livro sobre a alma humana mereceria uma capa igualmente humana. Mórbido respeito ou ironia? É impossível saber os desígnios do jovem estudante francês…

      À guisa de conclusão, lembremo-nos de que, aposta a um livro de século XVII — “Practicarum Quaestionum circa Leges Regias Hispaniæ” (“Questões Práticas acerca das Leis Reais Espanholas”), de Juan Gutiérrez —, haveria uma nota com as seguintes palavras: “A encadernação deste livro é tudo que resta de meu amigo Jonas Wrigth, que foi esfolado vivo pelos Wavumas em 4 de agosto de 1632.” Recentes estudos, contudo, verificaram que se trata de pele de carneiro. Graças a Deus!


 

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