MARKHEIM - Conto Clássico de Terror - Robert Louis Stevenson

MARKHEIM

Robert Louis Stevenson

(1850 – 1894)

Tradução de autor anônimo do séc. XX



Sim — disse o antiquário —, meus lucros são de várias espécies. Alguns fregueses são ignorantes; eu ganho com eles o que entendo no meu alto pensar. Alguns são desonestos — acrescentou, erguendo a vela que tinha na mão, de modo a iluminar a cara do visitante. — E, nesse caso, tenho de ganhar pela minha virtude.

Markheim tinha apenas deixado a claridade da rua e seus olhos ainda não se haviam familiarizado com a meia obscuridade da loja. Ouvindo as palavras do negociante, e antes que a luz lhe ferisse a face, esquivou-se, procurando olhar para o outro lado.

O negociante riu-se e disse:

O senhor vem à minha casa no dia de Natal, quando sabe que estou só, já tendo fechado as portas e preferindo recusar negócios. Terá, pois, de pagar por isso. Terá de pagar minha perda de tempo, que deveria empregar na verificação dos meus livros. Terá de pagar, além disso, por umas maneiras que lhe estou a notar hoje, muito fortemente. Sou a essência da discrição. Não costumo fazer perguntas estúpidas. Mas, quando o freguês não pode encarar-me, tem de pagar por isso.

E riu-se ainda o logista. Em seguida, acrescentou, sempre no mesmo tom de ironia:

Há de poder dar-me, decerto, como de costume, uma informação clara de como o objeto chegou às suas mãos. Trata-se ainda do gabinete de seu tio? É um notável colecionador?

O antiquário era um homem de pequena estatura e pálido. Ergueu-se na ponta dos pés. Olhou para Markheim por cima do aro de ouro dos óculos e abanou levemente a cabeça, com ar de absoluta descrença. O freguês retribuiu-lhe o olhar com outro de infinita piedade e parecendo alterado.

Desta vez — disse ele —, o senhor está enganado. Não vim vender, mas sim comprar. Vim comprar um presente para uma senhora. Decerto, devo pedir-lhe desculpas, vindo incomodá-lo por uma coisa tão pequena. A verdade, porém, é que me esqueci disso ontem. Devo comparecer hoje ao jantar, para levar meus cumprimentos à pessoa em questão. E, como sabe, um casamento rico não é coisa para desprezar.

Seguiu-se uma pausa, durante a qual o antiquário parecia estar a sopesar sua incredulidade. O tique-taque de vários relógios, entre muitos objetos amontoados na loja, e o rodar abafado das carruagens fora quebravam o silêncio…

Bem, senhor — disse o antiquário —, pois seja assim. Afinal, o senhor é um freguês antigo. E se, como diz, tem a probabilidade de fazer um bom casamento, longe de mim a ideia de lhe opor um obstáculo. Aqui está, pois, um belo objeto para uma dama: um espelho de cabo, obra do décimo quinto século. Foi, também, de uma bela coleção. Guardo o nome do colecionador, no interesse de um freguês que é, exatamente como o senhor, sobrinho e único herdeiro de um notável colecionador.

Enquanto assim falava, o lojista tinha tirado de uma prateleira o objeto em questão. Olhando-o fazer, Markheim sentiu um abalo nervoso, que o fez vibrar da cabeça aos pés e lhe transpareceu na face, de algum modo convulsionada por um tumulto de paixões. Mas aquilo foi rápido. Como veio, assim passou, ficando-lhe apenas um certo tremor na mão, com que agora recebia um espelho.

Um espelho! — disse ele, com voz rouca; e, depois de uma pausa, repetiu mais claramente: — Um espelho! Para presente de Natal? Decerto que não serve.

E por que não? — volveu o lojista. — Por que não serve um espelho?

Markheim olhava-o, com uma expressão indefinível.

O senhor pergunta-me por que não? Pois bem, olhe isso! — disse, pondo o espelho diante da cara do antiquário. — Gosta de se ver? Não! Nem eu. Nem ninguém.

O homenzinho deu um salto para trás quando Markheim lhe pôs o espelho na cara. Mas, logo percebendo que não houvera nada de mal no seu gesto, disse, rindo-se:

Sua futura esposa, senhor, deve ser altamente bela!

Ora, deixe lá! — volveu o freguês. — Peço-lhe um objeto para presente de Natal e o senhor me vem com isto, esse maldito recordador dos anos, dos pecados e das loucuras; esse despertador de consciências! Que pretende com isso? Teve alguma ideia oculta? Fale, vamos! Será talvez mesmo melhor para o senhor. Quero supor que seja um homem discretamente caridoso. Não?

O lojista olhou com mais atenção para o freguês. Era singular! Markheim não parecia estar-se rindo. Ao contrário, havia em sua face qualquer coisa de cólera.

Onde quer chegar? — perguntou-lhe.

Nada de caridoso, não é? — replicou Markheim, de ar sombrio. — Nada de piedade. Nada de escrúpulo. Desamoroso. Insensível. A mão sempre pronta a agarrar o dinheiro. Um cofre para guardá-lo. Não é isso tudo, senhor? Santo Deus! Não é isso tudo?

Já sei o que é — disse o lojista, com alguma penetração. — Vejo que se trata de um casamento de amor e que esteve a beber à saúde de sua dama.

Eu não — protestou o freguês. — Só se é o senhor que está enamorado. Conte-me lá, então, alguma coisa disso.

Eu! — exclamou o lojista. — Eu enamorado! Nunca tive tempo, nem muito menos hoje, para essas loucuras. Afinal, o senhor vai querer o espelho?

Para que essa pressa? — perguntou Markheim. — Acho muito agradável estar aqui a conversar. A vida é tão curta e tão falha que não me apresso em gozar um momento de prazer, muito menos um momento tão deleitoso como este. E por que haveríamos de nos consumir? É melhor conversar prazenteiramente. Troquemos nossas confidências. Quem sabe se não viremos a ser amigos?

Tenho apenas uma palavra a dizer-lhe — replicou o antiquário. — Ou o senhor compra, ou retira-se da minha loja.

Tem razão, tem razão — disse Markheim. — Nada de brincadeiras. Vamos ao negócio. Mostre-me mais alguma coisa.

O lojista foi repor o espelho na prateleira onde estivera. No movimento que fez para isso, seus cabelos finos e louros lhe caíram sobre a testa e sobre os olhos. Markheim tinha a mão no bolso do casaco. Várias emoções denunciavam-se na sua face: de fascinação, de terror, de decisão, de repugnância. Um riso selvagem contraiu-lhe o lábio superior, deixando aparecer–lhe os dentes…

O lojista tinha-se curvado para apanhar o outro objeto, ao mesmo tempo que começava a dizer:

Isto, talvez, lhe possa agradar…



E ia erguer-se, quando Markheim, num gesto brusco, atacou-o pelas costas. A lâmina de uma faca relampejou no ar. O golpe foi desferido violentamente… O antiquário tombou… Foi chocar-se contra uma prateleira, seu corpo caindo, em seguida, no pavimento como uma massa.

Passaram-se alguns momentos, durante os quais Markheim esteve como que fora de si, sem dar conta do que se passava à volta…

Depois um ruído de passos, fora, veio quebrar o ruído que reinava agora na loja e arrancar Markheim ao alheamento em que se achava.

Olhou em torno de si, com terror. A vela estava sobre o contador, e sua chama esguia, alta, tremulava solene, iluminando com a sua luz amarela as figuras de bronze, a face dos retratos a óleo, os contornos das porcelanas da China, os mil e vários objetos do comércio de antiguidades.

Uma porta para o interior da casa estava levemente entreaberta e uma réstia de luz passava por aquela abertura, deixando ver os primeiros degraus de uma escada.

Os olhos de Markheim volveram-se para o corpo de sua vítima, encolhido e achatado, e que parecia estranhamente muito menor que em vida. Ele tinha pensado no medo que “aquilo produzia”; eis que agora não era nada! Contudo, aquelas roupas ruças, aquela poça de sangue, iam começar a ter vozes eloquentes. “Aquilo” devia ficar ali até que fosse descoberto. Descoberto! E depois? Aquela carne morta ergueria um grito que repercutiria por toda parte, em ecos de perseguição. Morto, pensou, ele continuaria a ser seu inimigo!…

Nisto, todos os relógios, que havia na loja, começaram a bater. Primeiro um, logo em seguida outro, depois outro. Uns de som profundo como o de um sino de catedral, outros de som cantante, como as notas de um prelúdio de valsa; e todos bateram três horas da tarde.

A súbita irrupção de tantos sons, naquele ambiente mudo, fez com que Markheim vacilasse. Começou a agitar-se, de um lado para outro, com a vela na mão. As sombras que o cercavam moviam-se como sombras n’água. As reflexões assaltavam–lhe o espírito, ao acaso. Viu, em muitos espelhos, a face refletida repetidamente, como se estivesse sitiado por um exército de espiões. Seus próprios olhares se entrecruzaram e o surpreenderam. O ruído dos seus próprios passos, ainda que leves, abalavam a tranquilidade do ambiente e afligiam-no. E, se bem que estivesse a encher os bolsos de algo de valor, acusava-se mentalmente, com teimosia, das mil faltas que julgava, agora, ter cometido. Devia ter escolhido uma hora mais tranquila, ter preparado um álibi, não ter usado uma faca, ter sido mais cauteloso. Devia apenas ter amarrado e amordaçado o lojista, e não matado. Devia ter sido mais audacioso e matado a empregada também. Enfim, ter feito tudo de outro modo. Pungentes arrependimentos! Inúteis esforços da mente para alterar o que agora era inalterável, para projetar o que já estava feito, o que constituía um irremediável passado. Terrores cruéis começaram a fervilhar no seu cérebro, como um bando de ratos numa água-furtada. Imaginava a mão de um policial pousando pesadamente sobre o seu ombro. Seguiram-se as imagens de um grosseiro carro celular, rodando ao galope de magras pilecas, a prisão, o julgamento, a forca, enfim, um ataúde tosco...

Subitamente, da parte de fora, um gentil-homem, muito jovial, começou a bater com a bengala, na porta da loja, acompanhando seus batimentos de gritos e dichotes, com os quais se misturava continuadamente o nome do lojista.

Markheim sentiu um arrepio e olhou para o morto. Mas, não! Estava quieto. Estava bem longe de ouvir aquelas pancadas e aquelas pilhérias. Mergulhara para sempre num mar de silêncio…

O alegre gentil-homem desistiu, enfim, de bater e foi-se.

O incidente feriu fortemente o espírito de Markheim. Devia apressar-se, fugir dali, abandonar aquela vizinhança acusadora, recolher-se a casa, ao seu leito e aparentar sua inocência. Um visitante tinha batido à porta. A qualquer momento, poderia vir outro e ser mais obstinado. Depois de tanto trabalho feito, não colher o fruto seria um formidável fracasso. Era o dinheiro que agora o preocupava; e o meio era descobrir as chaves...

Olhou para trás, para a porta interior, entreaberta. O mesmo reflexo de luz se estendia pela abertura. Dirigiu-se, sem nenhuma repugnância, para o corpo da sua vítima. Tomou o cadáver pelos ombros e virou-o de frente. Achou-o estranhamente leve. A face estava privada de toda expressão, mas de uma palidez de cera. Uma têmpora estava horrivelmente manchada de sangue. Foi para Markheim a única circunstância desagradável. Isso fê-lo volver atrás, por um momento, a lembrar-se de um dia de feira, numa praia de pescadores, onde um menino, perdido na multidão e dos rumores produzidos naquele encontro de compradores e vendedores, se achara, de repente, diante de uma barraca, a contemplar, entre muitas, três gravuras coloridas, representando cenas de crimes célebres, perpetrados por assassinos, cujos nomes haviam ficado na memória popular. A visão era tão clara que o iludia. Era outra vez aquele menino, com a mesma sensação de revolta. Foi então que ele experimentou, pela primeira vez, um desfalecimento, uma súbita fraqueza das pernas, que teve no mesmo instante de vencer. Julgou mais prudente encarar que fugir à situação. Olhou para a face do morto e começou a considerar na natureza e na enormidade do seu crime. Aquela face, havia pouco, ainda denunciava as alterações das ideias, as mudanças de sentimento; aquela boca falava; aquele corpo governava energias. Agora, por obra sua, aquela fração da vida tinha cessado de vibrar, como um relógio que para pela intercessão do dedo de um relojeiro. Assim raciocinava ele, em vão. Não podia elevar-se acima de sua consciência, cheia de remorsos. O mesmo coração, que se havia sensibilizado diante de gravuras de cenas grosseiras de crime, mantinha-se impassível diante da realidade. Sentia apenas um raio de piedade por aquele que havia sido favorecido de tantos recursos, capazes de tornar o mundo um jardim encantado, e que, contudo, nunca houvera vivido, e agora jazia, ali, morto! Mas de arrependimento, nada, nem um tremor!

Enfim, libertando-se dessas considerações, Markheim achou as chaves. Avançou para a porta entreaberta…

Fora, tinha começado a chover fortemente. O rumor da chuva, caindo no telhado, quebrava completamente o silêncio. Como numa caverna, onde goteja água, o ruído, que esta fazia, ressoava dentro da casa, vindo ferir os ouvidos do assassino, meio apavorado, de par com o tique–taque dos relógios.

Quando Markheim se aproximava da porta, pareceu–lhe ouvir, em resposta ao seu próprio andar cauteloso, os passos de outros pés, que subiam a escada. A réstia de luz da vela continuava a iluminar, frouxamente, os primeiros degraus. Num forte impulso de decisão, Markheim impeliu a porta, que se abriu de todo. No aposento reinava uma meia claridade, produzida pela luz do dia, penetrando por uma claraboia. Sempre cauteloso, Markheim entrou…

Não estava ali ninguém. Num recanto, via-se uma armadura completa, de pé, tendo uma alabarda na mão. Pelas paredes estavam pendurados vários quadros, emoldurados em pau preto entalhado. O barulho, produzido pela chave, fazia-se, agora, mais alto dentro da casa; e, aos ouvidos de Markheim, se distinguiam, estranhamente, por vários sons. Eram passadas e suspiros. O tropel de regimentos, marchando à distância. Tinir de moedas. Ranger de portas, furtivamente entreabertas. A sensação de que não se achava só cresceu dentro de si, até à ameaça da loucura. De todos os lados, sentia-se cercado e perseguido. Ouvia passos no andar superior. Da loja, pareceu-lhe vir um rumor de homem a mexer com as pernas, como se tentasse pôr-se de pé. E, quando começou a subir os degraus da escada, dir-se-ia que pés fugiam, rapidamente, diante de si, enquanto outros o seguiam.

Se ao menos eu fosse surdo — pensou —, quão mais tranquilamente estaria na posse do meu espírito!”

Mas, refletindo melhor, sentia-se feliz por este estado de inquietação que o mantinha alerta, como uma verdadeira sentinela de sua vida. Sua cabeça girava continuadamente sobre o pescoço. Seus olhos, parecendo saltarem das órbitas, exploravam o ambiente, de um e outro lado, e, de cada lado, eram recompensados pela vista de alguma coisa, parecendo-lhe a cauda de uma indizível e estranha aparição. Os vinte e quatro degraus para o primeiro andar valeram-lhe por outras tantas agonias.

No primeiro andar, as portas estavam entreabertas. Três delas pareciam três emboscadas, abalando-lhe os nervos, como bocas de canhão. Teve a sensação de que não poderia defender-se, furtar-se suficientemente de olhares observadores. Desejou com ardor estar em casa, encerrado entre paredes, metido debaixo dos lençóis, invisível para todos, ainda que não para Deus. E esses pensamentos trouxeram-lhe à memória as narrações relativas a outros assassinos, de quem se contava que haviam temido a vingança celeste. Com ele, pelo menos, não era assim. Receava as leis da natureza, tinha medo de que, por meio dos seus imutáveis e insensíveis processos, elas guardassem alguma prova do seu crime. Temia dez vezes mais, com um terror aviltante e supersticioso, uma falha da capacidade humana, uma obstinada injustiça da natureza. Jogara uma partida, submetendo-a a regras, calculando as consequências. E que seria, agora, se a natureza, tal um adversário derrotado, procurasse desfazer o seu sucesso? O mesmo tinha sucedido a Napoleão (assim diziam escritores) quando, na invasão da Rússia, o inverno perturbou seus planos de campanha. O mesmo poderia acontecer a Markheim. As sólidas paredes poderiam tornar-se transparentes e revelar os seus feitos, como os das abelhas encerradas num cortiço de paredes de vidro. As tábuas daquele soalho poderiam ceder sob seus passos, como acontece na areia movediça, e prendê-lo. Eis aí acidentes que poderiam perdê-lo. E se aquela casa caísse e o aprisionasse com a sua vítima? E se a casa vizinha pegasse fogo e os bombeiros invadissem aquela em que estava? Essas coisas, sim, ele temia. A elas poder-se-ia chamar a mão de Deus erguida contra o crime. Mas quanto a Deus, Markheim sentia-se tranquilo. Seu ato era, sem dúvida, excepcional, mas Deus bem sabia quantas eram as suas escusas. Era, pois, junto a Deus, e não junto ao homem, que ele se sentia certo de justiça.

Quando ele chegou na sala onde estava o cofre, e fechou atrás de si a porta, sentiu-se ao abrigo de alarmas. A sala estava inteiramente desarranjada; os tapetes, fora do lugar; caixas e embrulhos, de toda ordem, espalhados; peças de mobiliário, diferentes; grandes espelhos de três peças, em que a pessoa se vê, ao mesmo tempo, em três posições; muitas telas, umas emolduradas, outras não, algumas voltadas para a parede; um belo parador e uma cômoda marchetados; enfim, um grande e antigo leito, coberto de tapeçarias. As janelas eram de vidraças; mas, por fortuna, as bandas de madeira, de dentro, estavam fechadas, de modo que ocultavam a vista aos vizinhos. Todavia, Markheim passou em revista a porta, tal o chefe de uma força sitiada que se apraz em verificar as suas defesas. Mas, na verdade, sentia-se tranquilo. O ruído da chuva, caindo na rua, soava-lhe com naturalidade. Agora, podia ouvir, vindos do outro lado da rua, os sons de um piano, acompanhando um hino, entoado pelas vozes de muitas crianças. Como era imponente e consoladora aquela melodia! Quão fresca eram as vozes infantis! De ouvido atento, Markheim sorria, enquanto tirava as chaves do bolso. Seu cérebro enchia-se de ideias correspondentes a imagens: eram crianças caminhando para a igreja, aos apelos de um grande órgão; crianças soltas, no campo, umas banhando-se em regatos, outras correndo pelos prados, escondendo-se entre silvados… A uma nova cadência do hino, volveu-lhe outra vez a imagem da igreja, os domingos modorrentos de verão, a voz alta do pároco (de quem ele sorriu um pouco, ao recordar-se), os painéis bíblicos, a letra dos Dez Mandamentos, traçadas no santuário…

E, como ele se sentava, ao mesmo tempo preocupado e alheado, sentiu-se, de repente, sobressaltado. Alguém vinha subindo a escada, com passos furtivos… Estava, agora, pondo a mão no trinco da porta… Ia abri-la… Markheim sentiu-se dominado de medo. Quem era que ia entrar? Não sabia. Seria o morto que caminhava? Seria a polícia? Ou seria alguma testemunha, cujo depoimento iria levá-lo à forca? E, quando uma face apareceu na abertura da porta, sondou o aposento com o olhar, saudou-o inclinando a cabeça, sorrindo como um amigo que o tivesse reconhecido; e, depois, quando recuou, a porta voltando a ser fechada, seu medo explodiu num grito rouco. Ao soar do grito, o visitante voltou.

Chamou-me? — perguntou, gentilmente, ao mesmo tempo que entrava e fechava a porta atrás de si.

Markheim tinha os olhos muito abertos e pregados na figura do estranho visitante. Talvez uma névoa lhe empanasse a vista. Mas não. Os contornos da pessoa do recém-chegado distinguiam-se, como os da figura de bronze, iluminadas pela luz da vela, embaixo, na sala da loja. Ora, Markheim pensava já ter visto aquele indivíduo, ora achava-lhe mesmo alguma coisa de parecido consigo. No íntimo, ganhava a convicção de que aquela espécie de aparição não pertencia à Terra, nem vinha do Céu.

E, contudo, aquela criatura tinha um ar de banalidade, quando se pôs a olhar para Markheim, a sorrir. Sua voz era de absoluta polidez, quando lhe perguntou:

Creio que está à procura do dinheiro, não é?

Markheim não respondeu.

Devo avisá-lo — continuou o visitante — que a empregada deixou hoje o namorado mais cedo que habitualmente. Não tarda por aí. Se o senhor for encontrado nesta casa, não lhe necessito dizer quais serão as consequências…

O senhor me conhece?

O visitante riu-se.

Desde muito tempo, você é um favorito meu. Desde muito tempo, observo-o e procuro ajudá-lo.

Quem é você? — perguntou Markheim, com voz alterada. — É o Diabo?

Quem eu possa ser — volveu o outro —, não pode afetar o serviço que me proponho a prestar-lhe.

Presta-me serviço, você? Não. Nunca! Você não me conhece. Graças a Deus, o senhor não me conhece!

Conheço — retrucou o visitante, com convicção. — Ora se conheço!

Conhece-me! — continuou a exclamar Markheim. — Quem é que pode conhecer a outrem? A vida do homem é uma paródia de si mesmo. Todos vivem a se contrafazer. Cada indivíduo vai, arrastado, na vida, envolvido num manto. Pode ser que eu seja pior que muitos. Mas eu seria — quem sabe? — capaz de revelar-me… Se tivesse tempo…

A quem? — volveu o visitante. — A mim?

Sim, a você — respondeu o assassino. — Por que não? Mas eu supunha que você era inteligente. Que podia ler no coração. Mas você quer julgar-me pelos meus atos! Ora, imagine: pelos meus atos! Não pode, então, ler na minha consciência? Não pode compreender que o Diabo me é odioso?

Sim, posso. Mas isso não importa. Importa saber que o tempo voa. A empregada não tarda por aí. E é como se fosse a mensageira da forca. Posso, então, ajudá-lo? Facilitar a busca do dinheiro?

Por que preço?

Ofereço-lhe os meus serviços em troca de um presente de Natal.

Markheim não pôde deixar de rir-se.

Não — disse ele. — Não aceitarei nada de suas mãos. Estivesse eu a morrer de sede, e o você chegasse aos meus lábios um copo de água, eu teria a coragem de recusar. Não me confio no Diabo.

Olhe que eu não me oponho ao arrependimento na hora da morte! — considerou, com gravidade, o visitante.

Porque você não acredita na sua eficácia — volveu Markheim.

Não é tanto assim — volveu o outro. — Olho com a maior indiferença. Agora mesmo, venho da casa de um moribundo, cercado de pessoas que o choravam sinceramente, enquanto outros viam-no pronunciar graves palavras de arrependimento de negros pecados, cometidos, sobretudo, na mocidade. E foi-me indiferente. Como vê, não sou tão mau como dizem. Aceite o meu auxílio. Sei que quer esse dinheiro para jogar na bolsa, não? Onde, se não me engano, já tem perdido muito.

Ah — interrompeu Markheim —, mas desta vez eu tanho um plano seguro!

Desta vez — volveu o outro, imperturbável —, você perderá novamente.

Hei de saber reservar metade.

Que também acabará por perder. Saiba que, deste trinta e seis anos, venho seguindo-lhe os passos. Você tem vindo sempre descendo. Há quinze anos passados, esteve quase a praticar um roubo. Há três, quase se torna assassino. E, agora, depois do que acaba de praticar, haverá algum crime, por mais cruel que seja, diante de que recuará? Certo que não.

Isso é verdade — disse, enfim, Markheim, descobrindo-se. —Tenho condescendido muito com o Diabo. Mas se os próprios santos não lhe têm escapado à tentação.

Eu proporia a você — disse o outro — uma simples questão. E, conforme responder-me, lerei a você o seu horóscopo. Nesses últimos tempos você tem-se conduzido frouxamente. É possível que tenha tido lá suas razões. Mas, dado que seja contentado com alguma coisa, saberá refrear sua conduta?

Markheim hesitou e, enfim, respondeu:

Não sei…

Então — volveu o estranho cavalheiro —, contente-se com o que é. Nunca mudará.

Markheim ficou por muito tempo silencioso.

Foi o visitante quem quebrou o silêncio:

Sendo assim, devo, ou não, ajudá-lo a procurar o dinheiro?

Neste momento, ouviram-se os sons da campainha da porta de entrada, no andar térreo da casa.

Como se aquilo fosse um sinal combinado, o visitante exclamou, naturalmente:

A empregada! Voltou como eu lhe prevenira. E aí está mais uma dificuldade no seu caminho. Você deve dizer-lhe que o amo está doente. Deixá-la entrar, tomando um ar grave, sem sorrir. Quando ela tiver entrado, você terá o cuidado de fechar a porta. E, com a mesma habilidade e destreza com que se desembaraçou do antiquário, se livrará dela. Daí por diante, terá toda noite — se for necessário — para meter num saco um tesouro. E, em seguida, escapar-se. Eia, pois, amigo! Não vacile! Olhe que sua vida corre perigo. Eia, mãos a obra!

Markheim ergueu-se da cadeira, lentamente. Olhava, agora, para o seu conselheiro com um ar de arrogância. E disse-lhe:

Mas eu o odeio! E prefiro libertar-me de você…

As feições do visitante denunciaram uma alteração do espírito… Mas ele soube disfarçar-se, sem que seu interlocutor percebesse o que se passava em seu íntimo.

Markheim abriu a porta e desceu os degraus da escada. Via, diante de si, seu passado. Considerou-o um sonho torpe e audacioso. A vida, como a revia no passado, não o tentava mais. Na sua passagem pela loja, onde a vela ainda ardia, olhou o corpo do antiquário. Estava no mesmo lugar. Os gestos e as ideias do homem afluíram-lhe à mente…

Os sons da campainha, tangida agora com impaciência, vieram arrancá-lo àquela última abstração.

Num momento, estava diante da empregada. Tinha na face alguma coisa como um sorriso.

E disse:

É melhor ir buscar a polícia. Eu matei o seu patrão.


Fonte: “Vamos Ler”/RJ, edição de 18 de julho de 1940.


 

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