O DIABO NO AÇUDE - Conto de Terror - João de Arlekinom

O DIABO NO AÇUDE

João de Arlekinom



O que o diabo faz? É bom que seja segredo e que isto diga respeito somente a ele. Pois o mais corajoso dos homens iria ficar perturbado conhecendo tais assuntos.”

Duque de Eldrent


A vila de Buriti ficava numa planície de mata verdejante, havia rios e lagos em volta de suas terras, florestas densas e selvagens circundam todo o vilarejo, que é acessível somente por uma estrada de terra que levava para as terras ao norte e para as terras do sul.

Os pescadores atiravam suas redes e anzóis à água. As mulheres lavavam as roupas de seus maridos e davam banho nas crianças em cima das tábuas. Aquele era um típico vilarejo no interior da província maranhense. Havia casinhas de barro amontoadas próximas do rio, outras eram espalhadas pelo matagal adentro. No monte alto que se eleva próximo ao rio, estava a bela Igreja do Buriti, com seu campanário alegre, que ressoava todas as manhãs. A construção da igreja começou em 1888, porém, demorou-se para ser finalizada pela falta de fundos. O término da construção era coisa recente, e ainda estava viva na memória local. Era do saber geral que o militar, tenente Tomé Vieira Passos, havia contribuído para a construção com uma quantia generosa quando estava hospedado na vila, durante as campanhas militares contra os Cricatis, já há muito tempo. O pároco responsável pela congregação era o padre Alberto Teixeira, um homem simples e bastante instruído, alguém com quem os habitantes da vila gostavam de se aconselhar sempre que possuíam alguma dúvida religiosa.

No final daquela tarde, quando o anoitecer caía sobre as florestas e os pirilampos subiam dos arbustos como faíscas verdes, era a hora em que todos se recolhiam para suas casinhas de barro; as esposas de lampião aceso nas janelas esperavam seus homens, que desciam das matas voltando da caçada. Os pescadores continuavam em suas canoas garantindo o pescado da janta. Os moradores se reuniam nas portas de casa para confraternizar, e, sentados, conversavam sobre o cotidiano — quais as notícias dos parentes distantes —e jogavam apostado partidas de dama e baralho. Findada as conversas e as jogatinas, todos se recolhiam para dormir.

Nas manhãs, viajantes vindos do norte e do sul, traziam notícias das cidades vizinhas quando passavam pelo povoado. Eram histórias sobre eventos ocorridos tanto em pequenas aldeias, como nos centros de grande comércio. Os vilarejos ouviam e riam de tais coisas estranhas dos homens da cidade. Falava-se das últimas notícias vindas de São Luís, sobre os mandos e desmandos do governador (geralmente nada importante para a vida cotidiana dos vilarejos), dos bailes que ocorriam na Barra do Corda e os escândalos vindos da alta sociedade dos poetas de Caxias. Porém, o relato mais estranho vinha de um comerciante vindo do leste cruzando as matas densas: ele jurou ter visto uma besta-fera na selva, enquanto atravessava o rio do Jenipapo; os que o ouviam logo soltaram risinhos, tomando tal relato como a fantasia de um cachaceiro. Quando escurecia, bebiam e riam ao se lembrar de tais absurdos contados por estes viajantes.

Mas, naquela noite, se escutou ao longe um barulho difícil de distinguir. Vinha do outro lado do rio, das profundezas da selva distante. Alguns curiosos saíram de casa para se aproximar da margem do riacho, buscando ouvir melhor o barulho. Quando o estranho som se encerrou, todos puderam descansar em paz. É de se imaginar que tudo isso gerou muitos burburinhos no dia seguinte. Cada um dava um pitaco diferente sobre o que poderia ter feito aquele “canto” (foi assim que chamaram o barulho), alguns animais foram citados, mas um morador da vila citou algo diferente, algo um pouco mais monstruoso… baseou sua teoria no relato do comerciante do dia anterior. E isto, é claro, provocou a gargalhada dos demais.

Na noite seguinte, ouviu-se o barulho novamente, mas desta vez estava muito perto, o estrondo pelejava em assemelhar-se a um canto; porém, era seco e rouco, irregular em sua natureza de início, meio e fim. A melodia carregava um ar de profano e quem a ouvia sentia uma sensação de que não deveria jamais escutar tal ruído singular. O som era alto e aterrorizante e, desta vez, quando sossegou, os moradores estavam perturbados demais para conseguir dormir. A coisa que cantava estava muito próxima… cada vez mais perto do vilarejo.

Quando o dia raiou, todos estavam na porta de Dona Josefina, que era a proprietária de um comércio local. Ela disse ter visto uma figura no açude, jurou que a aparição se parecia com uma pessoa. Aconteceu da seguinte forma: ela estava dormindo e o canto bizarro vindo das selvas a deixou profundamente perturbada; juntando forças, tomou coragem para investigar a origem do barulho e percebeu que vinha do meio da plantação de cana-de-açúcar. Ela disse que a coisa tinha rabo e um par de chifres, e dançava sob a luz do luar.

É o capeta! — concluiu o senhor Inácio, o mais supersticioso.

Deixa de história, mulher! O diabo fazia o que no açude? Tava tomando banho? Olha só! O capeta toma banho agora! — duvidou Euclides, o mais cético.

Eu só tô contando o que vi, se não quer acreditar é problema seu, acredita quem quer! — respondeu Dona Josefina, visivelmente irritada por ser desacreditada.

Pois eu digo que é o capeta! E é bom nós se precaver. Vamo falar com o padre Teixeira, pois ele entende muito bem do tinhoso e deve ter um proceder pra esse problema nosso — concluiu Seu Inácio.

Todos, então, foram até a igreja para se aconselhar com o padre. Chegando lá, o homem de batina veio ao encontro de toda aquela gente, queria saber do que se tratava toda aquela comoção. Os roceiros foram os primeiros a lhe relatarem o ocorrido, detalhe por detalhe, aumentando a história como de praxe. As lavadeiras também deram seu relato, assim como todos os que ali estavam. O padre ficou com um semblante espantado, afinal de contas, entre todos ali, era o que mais acreditava na existência de demônios e bizarrices do gênero.

Santo Deus! — disse o padre fazendo o sinal da cruz. — Bom… devemos tomar uma atitude com urgência! Talvez seja necessário um exorcismo. Bom, eu preciso me preparar para tal empreitada… nunca me ocorreu passar por tal ocasião algum dia, devo admitir.

O padre foi acompanhado de alguns moradores para investigar o local onde a coisa fora vista. O açude ficava no meio de uma plantação de cana-de-açúcar que se estendia por todo o seu entorno. A casa mais próxima era a de um garimpeiro chamado Roberto, que ouviu o tal canto, mas não teve coragem de sair de casa, assim como grande parte dos moradores.

O padre fez rezou por meia hora e chapiscou água benta em volta do local, satisfeito com o serviço e, vendo satisfação no rosto dos moradores que o acompanharam, deu por encerrado os trabalhos. E cada um voltou às suas casas. Novamente na noite que se seguiu ouviu-se o canto. E desta vez era mais alto e disforme, prologando-se por tempo indeterminado. O garimpeiro arranjou coragem e saiu de espingarda em mãos. Mirou em direção ao açude e disparou dois tiros, as balas atravessando os pés de cana. Nesta mesma noite, sumiu o boi do seu Osvaldo e depois a égua do roceiro Lindomar.

Será o coisa-ruim? — indagaram. Havia medo entre aquela boa gente trabalhadora, mas também uma sensação de euforia diante da misticidade. Alguns homens, que estavam caçando, encontraram no dia seguinte, em meio à mata, a carcaça do boi e da égua. É de se supor que os mais severos devaneios fantásticos estavam se construindo no imaginário do povo.

Nos dias que se passaram criaram-se mitos e lendas sobre o Diabo buritiense. As lavadeiras diziam ter visto a besta, enquanto subiam a trilha, voltando do rio com as bacias de roupa nas cabeças. Já o garimpeiro Roberto disse ter acertado um tiro na criatura a ferindo gravemente e se vangloriava por tê-la feito correr para dentro das matas densas. Os pescadores diziam ter visto o Belzebu atravessar o rio nadando velozmente, já os roceiros falaram terem avistado o Satanás disparando para dentro dos matagais, enquanto aravam a terra. Cada um com seu relato, mas o fato era que a besta não fora mais vista nos dias que se seguiram.

Nas densas noites frias, só o que se ouvia era a coruja das corujas de Órion: quais estranhezas do cerrado amazônico aquelas aves de grandes olhos já haviam visto? Existe animal mais misterioso e funestíssimo? Os sapos, coaxando na beira do rio em orquestra, chafurdam nas poças de lama ébrias. Se durante o dia o calor era severo, durante as noites fazia tanto frio que os moradores tiravam a brasa do fogareiro e colocavam perto das suas redes de dormir para aquecer o ambiente. Um uivo distante na selva pôde ser ouvido, até que lentamente cessou e tudo ficou calmo, estranhamente calmo. Era comum que a fauna noturna fizesse suas orquestras durante as noites, mas os pernilongos, grilos e sapos, todos se aquietaram.

Padre Teixeira morava em uma casa nas margens do rio. Ele estava lendo vorazmente livros de teólogos da Idade Média, buscando uma solução para aquele problema. Sabia que aquilo tudo não era nem um pouco bom e resolveu se apressar em seus estudos. Começou a fazer jejum e rezava com mais fervor que nunca. O que fazer era a questão a se descobrir. Apesar de a besta não ter dado mais a cara, caso ressurgisse, ele estaria pronto para lidar com ela.

Isto é lugar para o capeta inventar de aparecer? Meu Deus!” — pensava ele. A grande dúvida em sua cabeça era esta: “Será este Lúcifer? Ou um mandado? O que o príncipe do inferno viria fazer nas selvas maranhenses? Quais assuntos ele iria tratar?”.

A luz do lampião iluminava as paredes de barro e a prateleira, com sua modesta coleção de livros católicos que havia trazido da capital. Lia a respeito de diabos, diabretes e sátiros. Para estes estudos relacionados a demonologia, consultava o profano Malleus Maleficarum, que fora muito utilizado entre os inquisidores medievais. Havia-o adquirido com a ajuda de um clérigo da igreja matriz em Barra do Corda. Pagou uma certa quantia para que o jovem sacerdote furtasse o antigo escrito da Biblioteca Clerical, que era um lugar muito pouco conhecido pelas pessoas comuns. Isto havia sido há muito tempo. Alberto possuía um interesse lascivo relacionados a conhecimentos proibidos e isto motivara o seu pecado de furto. Entretanto, agora tal livro poderia ser útil, não?

Ouviu-se um barulho do lado de fora e o padre deu um pulo da cadeira, seu coração quase saiu pela boca. Foi até a janela na ponta dos dedos e nada viu. “É só um carcará”, pensou. “Estou estressado, essa situação está adoecendo-me…”. É verdade, sua mente começava a falhar devido a falta de sono. Nunca houve um problema tão grande na história desta pequena cidade ,“com exceção… do sumiço daquele garotinho que nasceu adoentado, filho da Senhora Cláudia e do Seu Oswaldo; este sumiu ainda bebê, dizem que uma onça entrou pela janela e levou a criança na rede”. Este evento causou uma grande comoção entre os vilarejos na época de sua ocorrência, e, após muita procura e nenhum resultado, os pais perderam a fé e partiram. “Ricardo da Silva era seu nome”.

A besta-fera sossegou, é verdade, mas poderia voltar a qualquer momento. O padre Alberto ainda pensava em seu canto nas horas de sono e isto sempre o perturbava. Voltou para sua mesa e continuou seus estudos até o amanhecer, quando pôde, então, ouvir o cantar do galo e os sinos do campanário.


***


A dona Josefina, vendo o estado do pobre padre, que andava aperreado e pelos tiriços. Veio certo dia até sua casa, trazia um remédio caseiro, milagroso para acalmar os nervos, um chá de camomila. Claro que o tema popular no momento era um dos motivos desse estresse que atormentava o sacerdote, pois o “diabo buritiense” virara moda. O padre deveria dar um basta nessas histórias, pois sempre havia o risco destas fantasias prosseguirem para uma religião e isto era muito perigoso. Na missa de domingo tudo seria esclarecido, ele tinha preparado alguns argumentos para os fenômenos ocorridos no açude. E provaria para os moradores que tudo se tratava apenas de folclore. Estavam todos tão presos numa rotina repetida que haviam inventado uma lenda urbana para se distrair.

Na missa de domingo a igreja estava cheia. Todos estavam ali presentes, curiosos e assustados, céticos e supersticiosos. O sentimento era de ansiedade. As pessoas esperavam do seu padre uma explicação e uma providência. Afinal, quem melhor para conhecer assuntos sobre proles infernais que Alberto Teixeira? Não estudou todos estes assuntos no seminário?

Meus irmãos, antes de começar a homilia, tenho que prestar explicações para todos vocês. Não vi necessidade de enviar uma carta ao delegado responsável em Barra do Corda, pois pelo que pude averiguar por conta própria em relação ao sumiço dos animais, já se sabe que a égua e o boi foram encontrados nas redondezas da vila, dentro dos matagais. E não resta dúvida que foi trabalho de onça, falo com muita certeza, pois olhei as mordidas nas carcaças e são iguais as bocadas de onça. É de se saber que demônios não possuem uma forma física, e sim espiritual, e que não possuem fome pela carne física das feras e dos homens. Devo então concluir que estamos apenas lidando com um animal já conhecido. Estas selvas são virgens, como todos sabem e nosso conhecimento sobre esta natureza é simplório, a maior parte da fauna é desconhecida.

Ao terminar, prestou bastante atenção na reação dos ouvintes.

Mas eu o vi! E ele tinha chifres! — disse dona Josefina.

Houve um coro de vozes dizendo: “É eu também o vi!”.

E rabo! Não esqueça do rabo! — gritou seu Inácio.

Estou ciente de todos os aspectos da criatura, peço paciência a todos. Devemos compreender que nem tudo é o que pensamos ser. Se todos não cometerem pecados e seguirem os Mandamentos de forma correta, não acredito que seremos afligidos por maldições como os egípcios e Deus não permitirá que o Satanás se volte contra nós, eu garanto a todos. Evitem ficar falando sobre diabos e bestas para evitar atraírem a atenção de coisas indesejáveis, pois estas palavras trazem consigo forças maléficas.

A missa ocorreu como de costume; no fim, todos voltaram para suas casas. Alguns dias se passaram sem se ouvir falar nada sobre o diabo e isso agradou muito ao padre Alberto. Estava ele em um fim de tarde na sua casa e escrevia seus sermões como de costume; era a sua tarefa diária preferida. Foi quando escutou os cachorros começarem a uivar e latir com muita ferocidade. Olhou pela janela e viu que os índios desciam o rio. Um calafrio trespassou o corpo do padre. “Era o que faltava”, pensou consigo. O sacerdote se vestiu e saiu de encontro aos indígenas. Os homens da vila eram ligeiros e já estavam armados com espingardas e facões. Dois anos desde o massacre em Alto Alegre, os ânimos ainda estavam aflorados. Mas, se pudesse evitar um conflito, era o que faria. Observando os índios descendo em suas canoas, logo o padre percebeu que se tratava dos índios da tribo canela; estes eram mais amistosos, diferentemente dos guajajaras. O líder do grupo se dirigiu ao padre, era o mais forte do bando e possuía pinturas no corpo típicas dos canelas. Padre Alberto sabia um pouco do tupi-guarani e o líder do grupo sabia um pouco do português lusitano e assim se comunicaram. Disse o índio que se chamava Apuã e que seu grupo estava naquela tarde viajando e buscando refúgio em terras ao sul. O padre conversou com alguns deles, buscando informações sobre alguma coisa que poderia ser antinatural para eles. Apuã disse que haviam visto uma criatura estranha nas redondezas de sua aldeia, caçaram-na selva adentro, mas a perderam. A palavra que deram para ela era o equivalente à de demônio na língua deles, Iamandu. Eles pediram comida e o sacerdote a providenciou de pronto, era melhor evitar rusgas desnecessárias. Os índios, então, partiram, continuando seu caminho descendo o rio. Novamente a tal criatura era citada… isto o deixou com calafrios na espinha: “Será folclore mesmo?”.


***


Eis que uma terrível tragédia assola o vilarejo: dois homens haviam passado na casa de Roberto para lhe pedir emprestado a espingarda e acharam a casa do garimpeiro completamente revirada. O corpo do homem foi encontrado inerte dentro do açude. Todos acreditavam que ele fora assassinado pelo diabo. Havia na garganta do homem as marcas horrendas dos dedos disformes da besta.

O padre agora também compartilhava da opinião geral, agora acreditava que a besta espreitava nas redondezas… pois ele mesmo a havia visto! Viu-a na noite passada, ao final da missa noturna. Trancara a igreja naquela noite, era o último a sair, como mandava a tradição. Desceu o monte, entrou em uma trilha que cruzava o matagal para chegar a sua casa. Viu a silhueta da criatura sob a luz lunar, era terrível a forma que ela olhava para ele, com olhos vermelhos como o fogo do inferno. Padre Alberto estremecia ao pensar no roceiro sendo enforcado enquanto olhava em extremo terror para o rosto de seu assassino. O morto fora enterrado naquela tarde no cemitério atrás da igreja.

Com as mãos tremendo, na mesma noite, ele escrevera uma carta destinada à Diocese de São Luís, em que relatava estar lidando com uma aparição talvez espectral ou até mesmo com um possuído. Esperava conseguir o auxílio do bispo da diocese ludovicense, Francisco de Paula Silva.

Teremos que ser precavidos nestes dias por vir. Os franciscanos planejavam uma nova viagem missionária e, pelo que fiquei sabendo, a informação foi trazida por um comerciante, e, apesar das informações destes homens não terem muita credibilidade, devo ter fé. E caso os monges se reúnam em Barra do Corda, será que demorarão muito para partir?”.

Padre Alberto Pediu na mesma noite em que um dos homens da vila viajasse até Barra do Corda levando a carta que escrevera e a entregasse ao Frade Carlos, pois ele saberia o que fazer com as informações contidas no conteúdo.

A carta fora levada; entretanto, os dias iam passando sem que a resposta da diocese chegasse. Padre Alberto tentou se manter esperançoso, mas quando perdeu a fé de que obteria uma resposta, começou a traçar um novo plano. A besta novamente desaparecera, não fora mais vista por ninguém. Mas era do conhecimento de todos que a criatura iria voltar e novamente tentaria saciar sua sede de sangue.

O bispo talvez se apressasse se eu o enviasse uma prova documentada, mas qual? Talvez se colhesse o relato por escrito de cada habitante…”, mas tal ideia desapareceu de sua mente, iria necessitar de uma prova mais concreta do que as palavras por escrito de um bando de aldeões supersticiosos. Deveria pensar rapidamente em uma alternativa para seu problema, nas noites de insônia podia imaginar a besta agarrada em sua garganta, com um sorriso maléfico no rosto.

Eis que chega à vila um jornalista, chamava-se Frederico Figueira, disse que trabalhava em um jornal chamado “O Norte” em Barra do Corda, fez a viagem até a vila do Buriti quando soube dos últimos ocorridos. As histórias já haviam se espalhado pelos povoados vizinhos e era tema de debate entre a classe intelectual da Barra, já em Caxias e Vila-Maré as pessoas tratavam o assunto com ceticismo.

O jornalista pediu uma entrevista com alguma liderança da vila, então os moradores o levaram até a casa do sacerdote, próxima do rio. Padre Alberto Teixeira o recebeu muito bem, sempre gostava de receber visitas que vinham de outros lugares. Passaram o resto daquela tarde inteira conversando. O padre repassou todos os acontecimentos dos últimos dias, contou sobre o primeiro canto da estranha criatura, ouvido nas entranhas da selva, até o momento em que ele mesmo viu a besta perto da sua casa. O jornalista ouvia tudo aquilo com certa incredulidade e fazia anotações em uma folha com cuidado minucioso.

Tudo isso irá servir para uma boa matéria, todos estão curiosos para saber o que se passa aqui no seu vilarejo, sabia? Mas eu queria levar algo que desse mais credibilidade… talvez uma foto?

Foi então que uma centelha se acendeu na cabeça do padre: este se ajoelhou e fez uma reza ali mesmo, na frente do jornalista.

Deus é bom! Deus é bom! O sr. Frederico! O senhor me trouxe a solução que procurava. Onde está sua máquina de fotografia?

O sr. Frederico foi até o aposento onde havia guardado suas coisas, voltou com uma caixa preta, que era grande e pesada. Os dois então se puseram a pensar em como poderiam tirar uma foto da besta. O sr. Frederico então propôs o seguinte plano: ficaria de tocaia durante a noite, com o intuito de tirar uma foto da besta, enquanto ela estivesse dançando no açude. O plano era bom, arriscado é verdade, mas, como o sacerdote estava precisando de uma prova documentada e concreta, concordou com a empreitada do jovem jornalista.

Naquela mesma noite, o padre deu ordem para que Frederico montasse a câmera atrás dos arbustos, mirando para o açude, e assim foi feito. O sr. Frederico buscou o melhor ângulo e, então, ficou de tocaia, agachado durante toda a noite. Alguns homens estavam por perto para protegê-lo, caso a besta o atacasse. O tempo passava e nada acontecia. O padre já perdia as esperanças de que a besta aparecesse. “Já está sumida há muito tempo; não vai aparecer hoje com certeza”. Era madrugada, os homens já estavam cansados e desejavam se retirar para suas casas; o padre Alberto, porém, os manteve em guarda. Foi então que o canto começou, de forma tímida, ficando cada vez mais alto. Podiam todos ver os vultos por entre os pés de cana. As sombras eram grotescas sob o brilho vespertino que vinha surgindo. Um flash de luz surgiu por entre os arbustos e iluminou toda a vanguarda, a besta soltou um grunhido de espanto. Pôde-se ouvir o suspiro de horror de muitos homens que, por uma fração de segundos, contemplaram o monstro. Seguiu-se um berro hediondo e algo grotesco correu para dentro da selva. A quietude tomou conta de tudo, os homens estavam estáticos diante do que haviam presenciado.

Durante a manhã, todos na vila estavam ansiosos para ver a tal foto. O sr. Frederico a preparava com todos os cuidados e técnicas que uma foto necessitava para ser revelada nos aposentos do padre Alberto. Passaram algumas horas e quando chegava a tarde, tudo ficou pronto. Os aldeões se amontoaram nos pequenos aposentos da casinha do padre. Frederico trouxe a foto com extremo cuidado e a pôs na mesa. Todos inclinaram a cabeça para ver de perto a imagem. Houve então um coral de vozes espantadas. Dona Josefina quase desmaiou, tendo de ser amparada por Euclides. O sacerdote aparentava um grande horror, olhando para aquela figura representada no papel. Sentia um calafrio por todo o corpo. A foto revelava um ser humanoide, é verdade, podia-se distinguir os chifres e a cauda de fato. Não restavam dúvidas que aquilo era o diabo.





Despachou o sr. Frederico no outro dia, pois este já tinha uma boa matéria para o seu jornal, pediu para seu Inácio acompanhar o moço de volta a Barra do Corda, e também incubiu-lhe de entregar a carta com a foto anexada para o sacerdote da Igreja Matriz, Ricardo Magalhães, seu amigo de longa data: ele saberia o que fazer após lê-la. No papel, havia as instruções necessárias para que a foto fosse levada até a Diocese de São Luís. O padre abençoou os dois homens quando partiram no fim da tarde.


***


O desespero começava a tomar conta dos moradores, uma histeria estava prestes a eclodir. O motivo era a besta: ficou mais audaciosa do que nunca. Havia, na noite passada, atacado a casa do pescador Rafael; sua família ficava isolada dos demais aldeões, dentro da selva escura. Os aldeões, ouvindo os disparos, correram em direção à casa. Chegando lá, encontram o pobre Rafael todo estropiado, sua esposa chorava em desespero com o filho pequeno nos braços. Apesar do terror, todos estavam vivos. Rafael contou que o diabo invadiu sua casa entrando pela janela; ao ver a criatura, Rafael entrou em uma briga feroz com ela. O monstro era mais forte e ele só não morreu por conta de sua esposa, que pegou a espingarda e atirou contra a coisa, que saiu em disparada matagal adentro.

O padre, ouvindo aquele relato, não pôde conter o seguinte pensamento: “Quanto tempo até o diabo entrar de forma sorrateira em meus aposentos e me enfocar até a morte?”. Então resolveu agir por conta própria, não poderia esperar pelas instruções da diocese. Seu plano era simples: usar a armadilha para animais grandes que o tenente Tomé Vieira Passos trouxera de suas muitas viagens, durante as campanhas contra os índios guajajara ao norte. Ele passava pela cidade e costumava deixar alguns pertences que acreditava serem desnecessários. A armadilha guardada no armazém fora um destes pertences, e nunca mais o tenente voltou para buscá-la, “para a glória de Deus!”, pensou o padre. Se reuniu com os homens e explicou-lhes seu plano. Todos ouviram e concordaram: iriam capturar e matar a criatura no dia seguinte.

No dia esperado, todos estavam prontos. Era noite de lua minguante e a mata estava quieta, o silêncio era assustador. O padre deu ordens para que colocassem a armadilha próxima às margens do açude, onde a criatura costumava ficar. Deixaram a arataca o mais oculta possível, cobrindo-a com gravetos. Padre Alberto então os espalhou pelas redondezas em pontos estratégicos. Todos os homens então esperaram, alguns com facões em mãos, outros com espingarda e uns poucos com redes de pesca e pedaços de porrete. Ficaram esperando a hora certa de agir e assim ficaram durante muito tempo.

O Vento noturno balançava a copa das árvores, um vento que trazia o som de um gemido lamentoso. O coração dos homens ficou cheio de temor e tristeza. Foi neste momento que um barulho de metal se chocando foi ouvido, seguiu-se um crack, de ossos quebrando. A besta havia pisado na armadilha, a dor lancinante a fez soltar um uivo de dor profundo, que deixou todos paralisados de espanto. Quando os disparos foram efetuados, já era tarde, a besta correu em direção a vila, o que se podia ver era apenas o vulto de tão rápida que era a criatura. Ouviu-se um grito de mulher vindo da casa de Dona Josefina. Acharam a pobre moça desmaiada no chão, devido ao susto de ter visto o monstro. Ela tentava balbuciar alguma coisa, mas o choque a deixara paralisada. O padre se aproximou para encostar o ouvido próximo da mulher.

A besta rap… raptou m… meu fi… filho, padre…

O sacerdote sobressaltou-se, rapidamente repassou o que havia ouvido e viu todos ficarem tão horrorizados quanto ele.

Mas para onde a besta-fera levou a criança? — perguntou o roceiro Lindomar.

É isto que iremos descobrir. Vamos nos espalhar e procurar a besta, ela está próxima, disso tenham certeza! Senhor Antônio, tome conta de Dona Josefina, dê a ela uma água com açúcar. Voltaremos somente quando encontrarmos a sua criança.

Todos se espalharam pelas redondezas, procurando o pequeno. Passou-se algumas longas horas sem que nada encontrassem, então, ouviu-se um tiro do outro lado da vila; alguém gritava:

Ele está aqui! Venham rápido! — Era o seu Inácio.

Correram em direção aos disparos e chegaram nas proximidades da casa do padre. A besta estava do outro lado do rio e levava a criança nas costas.

Ele atravessou o rio muito rápido, estava com o menino nos braços cabeludos! — disse o velho homem sem fôlego. Pegaram as canoas e todos atravessaram para o outro lado. Adentraram a mata com archotes nas mãos. Ouviu-se novamente um berro medonho, que vinha de mais à frente, das profundezas da mata. Muitos homens ficaram amedrontados, mas os pedidos de socorro da criança os encorajaram a continuar. Atravessaram toda a mata até encontrar uma área aberta, onde a vegetação era rasteira.

Ali, na subida daquele morro! — disse um boiadeiro apontando.

De fato era a besta. Andava com dificuldade, puxando o menino pelos pés, enquanto a criança lutava bravamente para se desgarrar dela; sob a luz do luar podia-se ver os chifres, o rabo e os cascos da besta horrenda e disforme. Os homens atravessaram a área aberta, o brilho lunar iluminava tudo à sua volta.

Um roceiro puxou a arma para tentar um tiro.

Cuidado! Atenção com a criança! — alertou o padre, mas já era tarde.

Tiro disparado, certeiro, a besta cai ao chão se contorcendo e ruminando palavras sem estrutura. A criança conseguiu se soltar e correr de volta em direção ao grupo. Aproximaram-se devagar, tremendo que a coisa pulasse sobre eles e os estraçalhasse. A armadilha fizera terríveis danos as patas do bicho e isso dificultou a sua fuga.

Finalmente matamos o capeta! — gritou seu Euclides, levantando a garrucha em vitória.

O diabo, ali caído no chão, era retorcido e sujo; uma cauda pendia do dorso e tinha um par de chifres contorcidos. Os olhos eram estranhos, mas, longe de serem iguais ao que o padre vira antes, vermelhos como o inferno. Chegava tais olhos a serem até possuidores de um tom familiar… mas será possível? Aquela coisa no chão era mais humana do que ele gostaria. Aquele era alguém que já vira a muito tempo atrás…

Isto não é diabo nenhum, senhores. Este é o filho do senhor Oswaldo e da senhora Cláudia! O menino Ricardo da Silva!


Imagens: PS/Copilot.

 

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