O MEDO - Conto Clássico de Horror - Ramón del Valle Inclán



O MEDO

Ramón del Valle-Inclán

(1866 – 1936)

Tradução de Paulo Soriano


Esse longo e angustiante calafrio, que parece mensageiro da morte, o verdadeiro calafrio do medo, somente uma vez pude senti-lo. Foi há muitos anos, naqueles belos tempos dos morgados, quando ainda se investigava a nobreza de quem pretendia seguir a carreira militar. Eu acabava de conquistar os cordões de cavaleiro cadete. Preferiria entrar na Guarda da Pessoa Real, mas a minha mãe opunha-se a isto, e, seguindo a tradição familiar, acabei granadeiro do Regimento do Rei. Não me recordo, com certeza, quantos anos faz, mas, na época, mal me despontava a pelugem dos bigodes e, hoje, já sou um velho, quase senil. Antes de ingressar no Regimento, quis a minha mãe dar-me a sua bênção. A pobre senhora vivia retirada nos recônditos de uma aldeia, onde ficava o nosso paço solarengo, e para lá segui, submisso e obediente. Na mesma tarde em que cheguei, minha mãe mandou chamar o prior de Brandeso para que viesse tomar-me a confissão na capela do paço. Minhas irmãs Maria Isabel e Maria Fernanda, que eram ainda crianças, desceram para colher as rosas no jardim, e minha mãe encheu, com elas, os vasos do altar. Depois me chamou, em voz baixa, para dar-me o seu missal e dizer-me que fizesse o exame de consciência:

—Vai à tribuna, meu filho. Lá, estarás melhor.

A tribuna senhorial estava ao lado do Evangelho e se comunicava com a biblioteca. A capela era úmida, tenebrosa, ressonante. Sobre o retábulo, distinguia-se o escudo, concedido pelos Reis Católicos, por carta de fidalguia, ao senhor de Bradomim, Pedro Aguiar de Tor, chamado “O Bode” e também “O Velho”. Era este o cavaleiro que estava sepultado à direita do altar. O sepulcro tinha a estátua de um guerreiro a orar.

A lamparina do presbitério ardia dia e noite diante do retábulo lavrado com a delicadeza de pequeninas joias reais. Os áureos cachos da videira evangélica pareciam oferecer-se carregados de frutos. O santo padroeiro era aquele piedoso Rei Mago que ofertou mirra ao Deus Menino. Sua túnica de seda bordada a ouro brilhava com o resplendor devoto de um milagre oriental. A luz da lamparina, entre as correntes de prata, tinha o tímido esvoaçar de um pássaro prisioneiro, que ansiava libertar-se num voo de encontro ao santo.

Minha mãe quis que fossem suas as mãos as que deixariam, naquela tarde, aos pés do Rei Mago, os vasos carregados de rosas, como oferenda proporcionada por sua alma devota. Depois, acompanhada de minhas irmãs, ajoelhou-se diante do altar. Eu, na tribuna, escutava apenas o murmúrio de sua voz, que entoava, moribunda, as ave-marias. Mas, quando cabia às meninas o responso, eu ouvia claramente cada uma das palavras rituais da oração. A tarde agonizava e as orações ressoavam na silenciosa escuridão da capela, profundas, tristes e divinas, como um eco da Paixão. Eu dormitava na tribuna. As meninas foram sentar-se nos degraus do altar. Seus vestidos eram alvos como o linho dos panos litúrgicos. Eu distinguia apenas uma sombra que rezava sob a lamparina do presbitério. Era minha mãe, que mantinha entre as mãos um livro aberto e lia-o com a cabeça abaixada. De quando em quando, o vento agitava a cortina de uma alta janela. Então vi no céu, já escura, a face da Lua, pálida e sobrenatural como uma deusa que tem seu altar nos bosques e nos lagos...

A minha mãe fechou o livro com um suspiro e novamente chamou as meninas. Sombras brancas perpassaram o presbitério e entrevi que elas se ajoelhavam ao lado de minha mãe. A lamparina tremeluzia com um débil resplendor, incidindo sobre aquelas mãos que voltavam a segurar o livro aberto. No silêncio, a voz entoava uma leitura piedosa e lenta. As meninas escutavam, e elucubrei que as suas melenas caíam, soltas, uniformemente repartidas, sobre a alvura dos vestidos que usavam, mas assim tão iguais, tão tristes e torturadas. Eu havia adormecido e, de repente, os gritos de minhas irmãs sobressaltaram-me. Olhei e as vi, no cerne do presbitério, abraçadas à minha mãe. Gritavam de terror. Minha mãe agarrou-as pelas mãos e as três fugiram. Desci pressuroso. Ia segui-las, mas fiquei aterrorizado. No interior do sepulcro do guerreiro, entrechocavam-se os ossos do esqueleto. Em minha fronte, os cabelos eriçaram-se. A capela caíra no mais profundo silêncio e ouvia-se claramente o áspero e medonho revirar da caveira sobre o travesseiro de pedra. Senti um medo que jamais sentira antes. Mas, como não quis que a minha mãe e as minhas irmãs me tomassem por covarde, permaneci imóvel no meio do presbitério, com os olhos fixos na porta entreaberta. A luz da lamparina oscilava. Mais acima, mexia-se a cortina de uma alta janela, as nuvens deslizavam sobre a Lua, e as estrelas refulgiam e feneciam assim como as nossas vidas. De súbito, ae longe, ressoaram o festivo ladrar de cães e o tilintar dos chocalhos. Uma voz grave e eclesiástica chamava:

—Aqui, Carabel! Aqui, Capitão!

Era o prior de Brandeso, que chegava para tomar-me a confissão.

Então, ouvi a voz trêmula e assustada de minha mãe, e percebi claramente a correria saltitante dos cães. A voz grave e eclesiástica se elevava lentamente, como num canto gregoriano:

— Agora veremos o que foi isto… Coisa do outro mundo não foi, com certeza… Aqui, Carabel! Aqui, Capitão!

E o prior de Brandeso, precedido de seus sabujos, apareceu na porta da capela:

— O que está acontecendo, senhor granadeiro do rei?

— Senhor prior, ouvir chocalhar o esqueleto dentro do sepulcro!

O prior atravessou lentamente a capela. Era um homem arrogante e de cabeça erguida. Em sua mocidade, também havia sido granadeiro do rei. Aproximou-se de mim, sem recolher as abas de seus hábitos brancos, e, firmando a mão no meu ombro, fitando-me na face lívida, disse-me gravemente:

Que nunca possa o Prior de Brandeso dizer que viu tremer um granadeiro do rei!

Manteve firme a mão sobre o meu ombro e permanecemos imóveis, contemplando-nos sem falar. Naquele silêncio, ouvimos revirar-se a caveira do guerreiro. A mão do prior não tremeu. Ao nosso lado, os cães enristavam as orelhas, com os pelos do pescoço eriçados. Mais uma vez, ouvimos o rolar da caveira sobre o seu travesseiro de pedra. O prior sacudiu-se:

—Senhor granadeiro do rei, precisamos saber se são trasgos ou bruxas!

Aproximou-se do sepulcro e agarrou as duas argolas de bronze incrustadas numa das lápides, a que tinha o epitáfio. Tremendo, aproximei-me. O prior me olhou sem despegar os lábios. Eu juntei às suas as minhas mãos nas argolas. E puxei. Lentamente, alçamos a pedra. O buraco, negro e frio, abriu-se diante de nós. Eu vi que a árida e amarelada caveira ainda se remexia. O prior estendeu um braço para alcançá-la. E eu recebi, tremendo, aquele crânio. Estava em pleno presbitério e a luz da lamparina incidia sobre as minhas mãos. Ao fixar os olhos sobre elas, sacudi-as com horror.

Tinha entre as mãos um ninho de cobras, que se desanelavam, sibilando. A caveira rolou por cada um dos degraus do presbitério. O prior me fitou com seus olhos de guerreiro. Sob o capucho, eles refulgiam como se ardessem sob a viseira de um elmo.




—Senhor granadeiro do rei, não há absolvição… Eu não absolvo os covardes!

Envergando uma rude e ensaiada postura, saiu sem nem mesmo recolher as abas de seus brancos hábitos talares. As palavras do prior de Brandeso ressoaram por muito tempo em meus ouvidos. Ainda hoje ressoam. Talvez em razão de tais palavras, aprendi, mais tarde, a sorrir para a morte como quem sorri para uma mulher!


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