O NAVIO FANTASMA - Conto Clássico de Terror - Ricciotto Canudo
O NAVIO FANTASMA
Ricciotto Canudo
(1877 – 1923)
Tradução de ator anônimo do início do séc. XX.
O grande navio britânico deixou São Francisco com uma carga de cadáveres. E tomou o rumo da China, onde as leis religiosas do povo celeste querem que os seus filhos sejam sepultados.
Entre estes dois mil chineses, o navio tinha o fúnebre orgulho de transportar um príncipe de sangue e a jovem princesa, com a sua escolta, todos mortos num acidente de estrada de ferro. Mas, na segunda noite de viagem, o navio teve a sua máquina completamente destruída por uma desgraça bastante difícil de explicar. E esta desgraça foi ainda maior por terem os maquinistas e os foguistas sucumbido asfixiados. O navio não possuía velas, e, sucedendo-se as tempestades sem cessar, o capitão, marinheiro tão perfeito, pela experiência da navegação, que parecia moldado na mesma matéria do seu navio, foi obrigado a entregar-se ao dispor das grandes correntes oceânicas.
Os sinais de perigo ficaram sem resposta O navio corria vertiginosamente. Com terror, viu a tripulação — num dia violentamente sacudido do pelas tempestades e sombrio como a noite — que o navio se precipitava para o Sul, onde se se perderiam irremediavelmente.
Pouco a pouco, o medo de cada tripulante começou a tocar as fronteiras do delírio. E, contudo, não era tão intenso este grande pânico, que parecia encher todo o navio, e fazê-lo estremecer cada vez mais, como o horror que principiava a desvairar todos os cérebros. Havia, a bordo, dois milhares de mortos. Os marinheiros reconheceram nesta lúgubre companhia a causa da sua aflição, e, então, desesperaram de todo. O próprio capitão, que conservara toda a sua firmeza por tanto tempo, começava a sofrer com aquela atmosfera mortal, que ia dominando todas as almas, e também a sua. E, no horizonte, nada aparecia, nenhum sinal de terra, nenhum raio de esperança, enquanto o navio, desamparado, fugia ao Sul, através do cinzento tenebroso do mar e do céu. Os espíritos já se adiavam totalmente assolados pelas correntes do medo e das superstições. Estas cresciam e invadiam tudo, o tombadilho, os mastros as cabines, como gigantescas aranhas invisíveis, cujo horroroso tormento cada qual sentia em si próprio. Em breve, o terror chegou ao auge e sacudiu todo o navio, e amordaçou todas as almas; e foi quando um inconcebível acontecimento desnorteou o resto de razão que ainda se arrastava a bordo. A escolta dos príncipes chineses repelira violentamente, sem mesmo tocar-lhes, dois marinheiros que se haviam aproximado da “cabine" em que fora respeitosamente encerrado o casal principesco. E, a partir daquela noite, os chineses saíam dos esquifes, amontoados em longas pilhas, e iam velar os seus jovens senhores.
O navio caminhava sempre para o Sul, ao sabor dos ventos. Seria o polo medonho que esperava, para o gelar, o coração daqueles marinheiros? Os mares para onde o navio flutuava agora eram absolutamente desconhecidos.
Não se encontrava nenhum traço deles, nem nos mapas, nem na lembrança, nem nas suposições dos navegantes. Seria, então, a revelação de um novo mundo? O capitão, obedecendo à ordem secreta da tradição que levava em si, esqueceu o seu próprio sofrimento, e começou a tomar nota das suas impressões e observações científicas.
Contudo, a obsessão da presença dos chineses defuntos pesava de tal modo sobre o cérebro dos marinheiros, desamparados como o seu navio, que muitos deles não mais puderam libertar-se. Os delírios dos loucos serpenteavam através dos cérebros, e levavam aqueles homens — autômatos frenéticos ou acabrunhados — a entrecruzar-se sem se reconhecerem mais, sem mais se verem! Cada um seguia agora as suas próprias visões, nascidas do comum tormento, como se a cada um enlaçassem espirais de serpentes, saindo juntas do ninho. Alguns definhavam lamentavelmente, abatidos pela inércia total, os olhos fixos fixos no porão dos mortos. Os outros atiravam-se ao o mar. Foi então que os mais lúcidos pensaram em desembaraçar o navio de toda aquela sinistra carga de chineses que transportava através do espaço. Mas tiveram medo de aliviar demais o navio, cada vez mais sacudido pelas águas. Guardaram os mortos como lastro.
Guardaram-nos, também, por uma espécie de terror religioso. No cérebro desnorteado do capitão e dos marinheiros, começou a tomar vulto a ideia de que os chineses mortos eram os verdadeiros senhores do navio, e todos começaram a adorar aqueles cadáveres que transportavam já não sabiam mais para onde.
Todas as manhãs e todas as noites, iam adorá-los de joelhos, como se fossem santos. Chegavam a oferecer-lhes libações de vinho.
E sempre longe da terra! E sempre o deserto líquido com as suas acalmias e os seus doidos saltos! Para seu consolo, os infelizes ainda tinham vinho a bordo. Podiam embriagar-se para nada mais saber, no meio do seu inerte desespero. Bêbados, entregavam-se ao seu estranho culto dos mortos, derramando pelo lutuoso porão muitas garrafas de precioso vinho. Depois, quando o melhor fluido se esgotou, começaram a derramar o vinho ordinário, que, em breve, também entrou a escassear. No dia em que se acabou completamente, um marinheiro, mais exaltado ou mais místico que os outros, abriu uma veia para saciar de sangue os “pobres mortos” que adoravam. Lançaram-no ao mar. Sacrificara a vida aos chineses desconhecidos, que o navio desamparado transportava quem sabe para onde.
Finalmente, todos os tripulantes se comunicavam realmente com os singulares passageiros, tornando-se a presença destes últimos evidente, quase carnal. Os marinheiros passaram a vê-los, assentados à mesa, um morto ao lado dum vivo, no tombadilho, até na superfície líquida que cercava o navio.
Morreram outros marinheiros. Os porões haviam sido abertos para que os sinistros passageiros pudessem exalar os seus suspiros ao céu estrelado e ao ar livre do oceano. Mas, depois de terríveis chuvaradas, os esquifes apodrecidos tinham infeccionado tão terrivelmente o ar que uma estranha e violentíssima epidemia matara três quartos dos sobreviventes do desnorteado navio. Lançaram-nos também no mar. E fecharam piedosa, mas definitivamente, os porões sobre os desconhecidos chineses que transportavam não sabiam para onde.
Restavam, assim, sete marinheiros a bordo, inclusive o capitão. Eram todos poderosamente entalhados numa carne granítica e, certamente — pensavam eles —, a morte não podia senão abordá-los, sem os agarrar nunca.
E como a reserva de víveres estavam quase esgotadas, resolveram dividir em rações o que restava, com muita prudência, espaçando de quarenta e oito horas cada refeição, regada com água do mar. Então, sentiram-se os marinheiros dominados por um novo terror. A fome rudemente os torturava e a água do mar alimentava-lhes mais a febre do que o corpo.
O ódio contra os chineses que carregavam concentrou toda a sua capacidade de reação e, pouco a pouco, tornou-se intolerável. Era o ódio que os povos primitivos manifestam contra os deuses e os santos quando estes não lhes acodem. E de tal modo argamassado de medo, que nenhum deles ousou seguir o conselho pavoroso, uma noite dado pelo capitão, de lançar ao mar todos aqueles mortos, desembaraçando-se, assim, dos fantasmas que reinavam no navio.
Por mais estranho que isto pareça, o tombadilho vivia gora cheio de chineses, que estendiam cordagens pelo navio e formavam outros empecilhos, nos quais tropeçavam e caíam os marinheiros. Também acontecia verem-se subitamente amarrados por mãos hábeis e cruéis, cujo contato absolutamente não sentiam!
Essa era, evidentemente, a suprema decadência da brilhante tripulação, entregue agora ao inteiro dispor dum bando de fantasmas!
Todos viam, no centro do tombadilho, o jovem casal de príncipes, sentados como sobre um trono. Os chineses comprimiam-se em torno do lindo casal.
E o navio corria sempre, sempre, não se sabia para onde.
*
As horas desciam sobre o tombadilho. A noite era fresca e pálida. A palidez da noite estendia-se sobre o navio, igual à dos chineses vestidos de branco, que se agitavam sem descanso. Em redor do navio, concentravam-se claridades sólidas como as dos imensos icebergs que erram pelo mar. O capitão exclamou:
— Essas massas brancas são multidões de mortos, que sobem, de noite, à superfície, para saudar os vivos ou para maldizê-los.
E acrescentou:
—Não! São os gelos do polo. Precipitamo-nos sobre a muralha intransponível do Polo.
Ninguém respondeu. Mas o terror do polo avassalou-se dele com uma violência tão grande que, num supremo esforço, teve forças para erguer-se e precipitar-se no meio do tombadilho, junto ao trono dos príncipes.
De repente, parou, como que ferido em pleno peito. E um longo grito de horror escapou-se-lhe dos lábios, tão violento que a garganta e a boca se lhe encheram de sangue. Não havia mais chineses no tombadilho! Todos tinham desaparecido. Os marinheiros permaneciam deitados, imóveis. O desgraçado comandante chamou-os, sacudiu-os. Mas, subitamente, inteiriçou-se, aterrado: estavam todos mortos.
Sentiu, no seu desespero desenfreado, a impressão do ruído que o gelo ia fazer contra o casco do navio, o ruido que os dedos fazem quebrando uma casca de ovo, não mais. E este ruído endoidecia-o, sempre a bater-lhe no ouvido, ensurdecia-o, arrancando-lhe gritos terríveis, que lhe rasgavam a garganta, e que ele não ouvia...
O momento era definitivo. O horror das implacáveis montanhas de gelo estava ali, oprimindo-o. Então, bradou a todos os mortos uma ordem de manobra, a única que poderia salvá-lo. Morreria no seu posto, apesar de tudo, depois de haver feito, apesar de tudo, o ultimo esforço que o dever milenar dos marinheiros exigia da sua honra.
E, depois de um tão violento esforço, caiu sobre o tombadilho. Alguns gritos na sua vizinhança fizeram-no abrir
— Olá! Olá! Olá!
A tripulação da missão antárctica francesa premia-se em torno do capitão desfalecido, que apertava convulsivamente numa das mãos o caderno das suas impressões, registradas até o momento da destruição do navio.
— Perfeitamente! — disse-lhe alguém. — O capitão há de sair-se dessa, afinal! É muito fácil, depois de ter espatifado a sua casca de noz contra o nosso acampamento de inverno e escapado vivo… Mas que diabo de carne o capitão trazia para os nossos cães? Para uma dúzia de terras-novas, mais de uma centena de cadáveres humanos? Está louco, capitão?
Fonte: “Leitura para Todos”, edição de agosto de 1923.
AMEIIIIIIII
ResponderExcluirAdorei, o final é hilário!
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