A SOMBRA DE MINHA MÃE - Conto Clássico de Terror - Moacir Deabreu

A SOMBRA DE MINHA MÃE

Moacir Deabreu

(Início do séc. XX)


Vem de minha infância, de muito longe… Dezenove anos já se foram, dia a dia, daquela hora em que a sombra de minha mãe me apareceu nas sombras do portal da cela do infinito corredor deste velho convento da Bretanha.

Sinto que a minha hora está perto, sinto com todos os sentidos que a Morte anda rondando o ritmo do meu coração, anda aqui dentro e lá fora cantando o fúnebre responso de minha vida, numa voz que não ouço, com uma boca que não vejo e que sinto que anda perto de mim.

Estou só no meu quarto e na minha casa vasta e lúgubre, antigo convento de treze séculos, extinto há perto de cem anos, onde não ninguém e nada se ouve além da voz do pêndulo do alto relógio do salão amarelo e do cicio dos fantasmas errantes pelos corredores sem termo.

Escrevo estas últimas páginas (sei que vão ser as últimas traçadas por minha mão), escrevo-as para que elas revelem, quando eu não for mais deste mundo, o segredo da angústia que pôs fel e desesperança em toda a minha vida, que foi cinzenta e triste como os dias dum condenado por toda a existência.

Tenho vinte e cinco anos e há muito os meus cabelos estão grisalhos e as rugas marcaram, no meu rosto, o rastro gelado da velhice.

Chamo-me Arthur de Kergouet e descendo de pais bretões. Nasci numa cidade fluminense, onde o destino levara os meus pais, e passei a minha infância nesta aldeola bretã, à beira do mar, entre lendas geladas, a alma taciturna do meu pai e o passo de sombra de uma mulher magra e silenciosa, que era minha mãe.

Minha mãe chamava-se Helena e parecia uma morta. Desde a mais remota lembrança das fulgurações entre brumas do meu abrir de sentidos para o entendimento infante das coisas, eu tive medo de minha mãe. Um medo pânico, enorme, que encontro ligado a todas as recordações da primeira meninice.

Criancinha, no berço, contara-me a ama, chorava forte quando ela se avizinhava. Quando dormia e ela entrava no meu quarto, o meu rosto de criança de três meses se contorcia, como se pairasse sobre o berço o anjo da morte com a sua última agonia.

Cresci fugindo de Helena. Se os seus olhos pousavam nos meus, adoecia com febre alta. Ela abria-me os braços, de longe, implorando um beijo, uma carícia. Eu tinha pena, às vezes, mas não podia, o horror de minha carne era mais forte.

Uma noite (eu nunca me esqueci dessa noite!) estava no salão amarelo com pai Ives, junto a uma grande lareira, vendo-o fumar um grosso cachimbo e olhar as brasas com seus olhos parados. A sala era vasta e monacal, de paredes altas e vazias pintadas de amarelo. As vozes ali tinham uma ressonância triste de coisas do passado, como se acordassem as outras vozes que ela ouvira e guardara no desfilar de treze séculos.

Era inverno e a neve caía num ruído de cem passos cautelosos de fantasmas em casa maldita. Helena chegara sem que eu pressentisse e tocara-me o rosto, apertando-o docemente com as suas mãos geladas de morta. Tive um grito imenso, de alguém que estão matando, e caí…

Tinha seis anos. Contaram-me que trinta dias a morte andou em minha cabeceira e já haviam mandado fazer o caixão.

Não morri, mas aquelas mãos frias haviam posto, para sempre, o frio da morte em minha vida.

Na aldeia todos tinham medo de minha mãe. Diziam morar no seu corpo o espírito da “mulher de branco do convento”. Nunca mais estivemos juntos. Depois da doença era ela quem fugia de mim. As almas do outro mundo voltaram a habitar de novo o casarão do convento. Dentro das horas mortas surgiam procissões estranhas no alto dos torreões. As cinco torres do convento estendiam para a aldeia as sombras dos seus enormes dedos e a aldeia ficava mais encolhida num grande silencio de pavor.

Minha mãe morreu antes de eu haver completado sete anos, dando à luz a minha irmãzinha Maud. Morreu à meia-noite, ouvindo os carrilhões do grande relógio do salão amarelo. Na agonia, que foi curta, os grandes sinos da torre mater, onde nunca fora ninguém, por não existir mais a grande escadaria, puseram-se lentos e formidáveis a badalar na noite.

Quando ela fechou os olhos, os sinos emudeceram.

Levaram-me para beijar a sua fronte. Não beijei. Deitada no caixão comprido e fino, forrado de preto, ali no salão amarelo onde resmunga o relógio, ela guardava a mesma expressão de morta que carregara com a vida. Tive medo que ela se levantasse para me tocar com as suas mãos frias e sem sangue de defunta.

No dia seguinte ao do seu enterro, estava sentado à beira do mar, à hora do cair da noite, sozinho, quando ela me apareceu.

Ouvia, vindo da praia e das casas remotas, o vozerio das crianças brincando de roda. Era uma tarde suja e triste de princípio de inverno bretão. Olhava as águas, a curva embaçada do horizonte, e tinha vontade de desaparecer da aldeia e ir, mundo afora, ver o país do sol, sem neve e árvores sem folhas, onde a ama localizara a minha terra natal.

A sombra dela desenhou-se no rochedo, só a sombra, sem o corpo, e caminhou para mim, tocando a minha sombra.

Corri para casa, onde caí aos pés de Ives. Quando recuperei os sentidos, contei-lhe que vira a sombra de Helena e que ela tocara a minha sombra.

Olhou-me tristemente, murmurando uma palavra bretã cujo sentido ignorava e sempre ignorei por havê-la esquecido. Pôs uma almofada no tapete a fim de que eu me deitasse de bruços, como era meu costume, junto à lareira e aos seus pés. Acendeu o grande cachimbo cor de cinza e ficou com os olhos iluminados pelos reflexos vermelhos das labaredas, a existir longe de mim.

Duas horas fiquei ali, pensando na sombra de Helena e no meu país natal que eu não conhecia, e onde a ama dizia haver um grande Sol muito quente, não haver neves, e onde as árvores não perdiam as folhas e os passarinhos não morriam de frio.

A ama veio buscar-me para dormir. E lá fomos pelos grandes corredores, com uma tocha oscilante, em demanda do quarto. A ama tremia e tremia a tocha em suas mãos. Olhava para trás amiúde, vendo as sombras dos nossos corpos, que se arrastavam medrosas pelo pavimento úmido, acompanhando-nos.

Na porta de uma das muitas celas, eu vi distintamente colada à madeira a sombra de uma mulher.

Olha, ama, a sombra de Helena à soleira daquela porta.

A ama caiu de joelhos, pondo-se a rezar e a soluçar alto. O seu soluço foi andando pelo corredor até aos ouvidos de meu pai, que veio em nosso socorro, com o seu passo calmo. A ama chorava e rezava, tendo nas mãos a tocha trêmula. A sombra havia fugido para a escuridão do corredor.

Ives olhou a soleira que o meu dedo indicava, pronunciou a mesma palavra bretã e deu-me um grande olhar de tristeza.

Naquela noite, ele morreu. Foram encontrar o seu cadáver, de bruços, na porta da cela onde eu havia visto a sombra de minha mãe.

Parentes da aldeia mandaram-me para o Brasil, onde morava o último dos meus tios.

***

Anos fugiram. Nada de anormal acontecera em minha vida. Fizeram-me entrar para um internato cheio de corredores escuros e compridos como os da nossa casa da Bretanha, povoados de crianças pálidas e homens de negro que adoravam pequenas estatuetas colocadas em nichos, entre sons de harmonium e fumaças de incenso.

Ensinaram-me que havia um Deus e uma legião de santos, que havia um inferno e um paraíso.

Todas as crianças pálidas temiam o inferno e amavam o paraíso. Eu temia o paraíso e amava o inferno.

No inferno havia fogueiras, danças e risos. Havia calor e ninguém falava baixo. Havia muitas luzes e não havia corredores com sombras e crianças pálidas e homens inchados vestidos de preto.

Eu amei o inferno e invocava baixinho, na capela, o demônio que os meninos pálidos temiam. Sentia que ele devia ser bom porque ria e mandava numa casa infinita, onde havia fogo, e luz e não havia corredores compridos e povoados de sombras.

Temia profundamente o paraíso que todos amavam e faziam penitência para alcançá-lo. Lá havia as músicas fúnebres do harmonium e um povo de homens de preto, amarelos, inchados e repelentes como o ventre dos sapos, e crianças e velhas magras como os cadáveres, que levam a enterrar dentro dos caixões estreitos e forrados de preto. Existiam corredores infinitos, com sombras dançantes nas paredes e nos portais. Ninguém falava alto e todos tinham olheiras, e não comiam e pranteavam eternamente o dono do paraíso, que vivia pregado numa cruz, cheio de sangue roxo. Não, a minha carne tremia da possibilidade de ir para o paraíso.

Mastigava as hóstias a fim de não ir para ele, quando fechasse os olhos para a vida, e fosse num caixão estreito para a escuridão da cova fria. Quebrava as estatuetas adoradas, cuspia nos sacrários onde ficavam as hóstias e na face da grande estátua pregada numa cruz, estátua de homem magro e sinistro, cheio de sangue roxo, que diziam ser o dono do paraíso.

Perguntava sempre aos homens de preto:

Que não se deve fazer para ir para o céu?

E os homens de preto contavam, numa voz ciciante, todas as coisas que não deviam ser feitas. Eu as guardava de cor para fazê-las às escondidas, implorando ao demônio que não me desamparasse, que me roubasse quando eu fosse para a escuridão do cemitério, levando-me para a sua casa infinita cheia de caldeiras e de calor.

Nas férias, ia para a casa de meu tio. Era um casarão colonial meio derruído pelo tempo, onde o vento, à noite, entrando pelas paredes esburacadas, me punha um medo enorme de paraíso.

O tio era velho, era só e não conversava. Eu andava com os meninos da vizinhança, às escondidas dele, e os meninos tinham medo de mim, chamando-me de defunto.

Entrara nos meus treze anos. Era pálido e comprido como um círio de essa; tinha os olhos fundos e desconhecidos que me metiam pavor quando eu me olhava no espelho antes de dormir.

Ah! Os meus olhos... Os meus olhos! Sempre os temi e sempre me foram desconhecidos, como se eu carregasse no rosto os olhos de um morto que me olham de longe, de muito longe, lá de um fundo de espaço onde devem existir as almas.

Quantas vezes parei diante do espelho a olhá-los, dominando o medo e procurando descobrir o dono dessas pupilas mortas que olham de muito longe.

Os homens nunca sentiram o horror induzido de um morto que nos olha com os nossos próprios olhos que não são nossos!

Ah! Fechar as pálpebras e sentir lá dentro duas bolas frias, da frialdade viscosa que devem ter os cadáveres que se descompõem lentamente no fundo subterrâneo de uma cova.

Quando findaram os dois meses de férias, não me mandaram voltar para o internato. O tio não tinha dinheiro para pagar as mensalidades.

Eu sabia que o meu pai deixara uma imensa fortuna e que, por atrapalhações não entendidas por mim, ela ainda não fora entregue ao meu tio.

Um dia, sem que esperássemos, veio uma menina para nossa casa. Estava na porta do velho pavilhão do jardim e a vira entrar para a varanda onde o meu tio estava sentado. Acompanhava-a um homem alto. Falaram qualquer coisa e o meu tio pôs a menina nos joelhos para beijá-la. Avistando-me na porta do pavilhão, chamou-me.

Disse-me quem era ela. Era Maud, a irmãzinha que havia ficado na Bretanha. O homem alto era da legação francesa, à qual viera recomendada.

Ficamos amigos. Maud tinha oito anos e uns olhos verdes, muito grandes. Era alta e pouco gorda. O quarto menos abrigado era o do tio. No meu não chovia e ela ficou comigo.

Maud foi um pouco de alegria para a minha vida escura e triste como as tardes de inverno na Bretanha. Achava que o quarto era menos negro, que os meninos da vizinhança eram mais aborrecidos e temia um pouco menos o paraíso.

Num dezembro, o tio avisou-me que eu tornaria em fevereiro para o internato dos homens de preto e Maud iria para um outro de mulheres de preto, com grandes toucas negras na cabeça.

Maud não sabia que lá se alcançava o paraíso e ficou alegre. Tive medo por ela e contei-lhe as histórias das estatuetas de pedra, do homem sinistro pregado numa cruz e do paraíso.

Ela ouvia atenta, sob a luz da vela, com a cabeça deitada no meu colo, o corpo enrolado nos cobertores, namorando-me com os seus grandes olhos verdes.

Falei-lhe do inferno, das doçuras dele. Lá havia músicas e fogo, e um demônio que era bom e que ria, mandando em outros demônios, em todos os demônios. Lá existiam todos os homens belos e todas as mulheres lindas que passaram contentes nesta vida.

E, daquela noite em diante, fomos dois a amar o inferno e a temer o paraíso.

Meu tio não conversava, falava em resmungos, dirigindo-se à criada, uma preta de cabelos brancos, que era a única a compreendê-lo. A preta não falava conosco e tinha medo de mim, de minha cor amarelada e de meu todo de tocha mortuária.

Antes de voltar para o internato, um médico amigo de meu tio levou-me para a sua fazenda. Passei lá dois meses, debaixo do Sol risonho e belo, a tomar umas injeções doídas.

Quando voltei, mirando o meu rosto diante do espelho, descobri um menino corado, de nariz enérgico e fronte ampla.

Não tinha mais o aspecto de defunto. Só os olhos, só eles, continuavam desconhecidos, pondo-me medo ainda.

Minha irmã estava mais magra, tinha olheiras fundas e parecia uma mulher. Contou-me os seus terrores pelas largas noites silenciosas ouvindo o vento, pensando em mim e tendo medo do paraíso.

No internato não chove?

Eu lhe dizia que não. Havia uma coisa pior que a chuva: ganhava-se lá o paraíso. Eu senti na carne nua de sua espinha encolhimentos de medo, numa curva ascencional de dorso de gato, pela perspectiva do internato e do paraíso.

Tremia, colando-se mais ao meu corpo, e sentia no meu pescoço a carne trêmula e medrosa de sua boca.

Era tão melhor ficar aqui. Dormir escondida nos teus braços, sem temer o vento.

O tio não é mau, e por que faz ele a maldade de nos mandar ganhar o paraíso?

O tio não sabia do fundo horror que existia no paraíso: não acreditava nele ou achava, como os meninos pálidos, ser um lugar de delícias.

Em abril fomos para o internato. Ela chorou e eu fiquei triste por ela haver chorado.

Retornaram os corredores, as crianças pálidas e os homens de negro da grande casa escura onde todo o mundo se martirizava para alcançar o paraíso.

Tornei a cuspir nos sacrários das hóstias, a triturá-las nos dentes à hora da comunhão, a quebrar as estatuetas feias e a aprender com os companheiros e com os homens de preto o que se não devia fazer para ir, depois de morto, para a casa cheia de corredores e sombras e silêncios, onde mandava aquele homem amedrontador, pregado na grande cruz.

Entre as crianças pálidas, havia um menino magro e mau que batia em todas as crianças pálidas. Chamava-se André, era descendente de franceses e devia estudar para ser, um dia, um homem de preto. Todos diziam: “Ele vai para o inferno” e temiam-no.

Fiz-me seu companheiro, depois de lhe haver batido, uma tarde, no canto do pátio, sem luz do recreio.

André era três anos mais velho que eu, mas era franzino e menos alto. Sabia muitas coisas da vida não sonhada por mim e amava com fúria um menino loiro e branco, em quem dava grandes beijos selvagens, no escuro dos corredores, ensanguentando a sua boquinha fina e vermelha de baby tenro.

Era a única criança que não era pálida naquela casa, e chamava-se Leoni.

Leoni transia-se todo diante dele e deixava-se machucar, chorando baixinho, humildemente, com arrepios de dores no corpo branco quando André lhe enterrava os dentes, profundamente, nas gengivas vermelhas.

O meu companheiro contou-me o que era um homem e o que era uma mulher.

Numa das visitas semanais, eu conheci a sua irmã. Estávamos no severo salão nobre do internato. André havia subido ao dormitório para guardar uma caixa de doces. Dum canto da sala, eu a estudava, curiosamente, nessa ânsia dolorosa e sem formas, que vem das primeiras fomes da puberdade.

Tinha olhos azuis, cabelos loiros e treze anos sadios. Era alta, um pouco fina, de artelhos modelados de mulher completa e pernas puras, nervosas, de fim de raça aristocrata. Olhava-me com as pálpebras semicerradas e silenciosamente. Os meus olhos namoravam-lhe o corpo, linha a linha, com o desembaraço da inocência. O seu vestido à marinheira era curto e, debaixo da blusa ampla e aberta no decote, eu sentia que todo o seu busto vivia em liberdade.

Na sala, só havia a voz do relógio e o olhar do retrato de um príncipe da igreja. Para além das portas fechadas, um rumor longínquo de crianças brincando.

Estávamos os dois no mesmo divã acolchoado e escuro, e tão perto um do outro que as nossas pernas se tocavam. Sentia nas narinas o cheiro quente de virgindade irritada que se desprendia de sua carne branca e tenra.

Ela tomou-me a cabeça entre as mãos, com bondade, e, sem que eu esperasse, feriu-me a boca, esmagando-a com os dentes. Apertou-me depois de encontro ao seu corpo, estalando-me os ossos, colando-me a cabeça nos seus seios quentes e mordeu-me tão profundamente os ombros que eu senti um fio de sangue morno descer-me pelas costas, entre a pele e a camisa.

Ao desvencilhar-me, os seus lábios sangrentos tremiam em paresias ferozes.

Quando ela saiu, achei a vida mais clara, o internato mais triste e o Sol mais lindo.

Sonhei durante a noite que ela me rasgava todo com os dentes finos e toda a minha carne sofria a delícia enorme de ser rasgada.

Perguntei a André durante a semana inteira:

Madalena volta sábado?

Ele mexia os ombros, com descaso.

Aquela semana fui todo carinhos, partindo o rosto das crianças pálidas que falavam mal dele. Ficou-me grato e falou-me de sua casa. Só tinha aquela irmã; era órfão de pai e a mãe era surda e boa, e distribuía dinheiro com os homens de preto e com as igrejas. Madalena era má e batia-lhe sempre. Uma vez tentara arrancar-lhe uma unha com um alicate. Livraram-no dela, mas a unha custou a ficar boa. Quando não podia fazer sofrer alguém, arrancava as pernas dos passarinhos do viveiro para assistir à sua agonia. Uma vez, na véspera de terminar as férias, amarrara o gato da casa, arrancando-lhe os olhos com a ponta de uma faca.

Madalena não voltou no outro sábado. A mãe dela havia escrito ao diretor pedindo permissão para André passar uma semana na chácara e declarando que ficaria lisonjeada se o internato lhe confiasse a minha pessoa por uma semana.

Aquilo era contra todos os regulamentos da casa dos homens de preto e das crianças pálidas, mas a mãe de André dava dinheiro para o internato e para a capela… Fomos.

Na manhã da nossa chegada, o meu companheiro foi mandado jantar na cidade, em casa dum amigo da família onde havia uma festa. Eu não quisera ir. Preferira, com uma consciência confusa, ficar na grande chácara cheia de árvores, em companhia de Madalena.

Fui acompanhá-lo até ao pequeno riacho fora dos cercados da chácara, para aproveitar o trole.

Ainda não era meio-dia. Estava, havia minutos, contemplando a poeira do carro que desaparecia entre os maciços de árvores da encosta fronteira, quando ouvi uma risada e o meu nome.

Está arrependido por não haver ido?

Madalena surgira, a quinze passos, do outro lado da cerca divisória, debaixo da vegetação rasteira do capoeirão cerrado. Estava deitada no chão e ria.

Não estou arrependido. Não gosto das festas em cidade.

E por que estava triste?

Não estava triste, estava olhando a poeira do trole. Não quer vir para aqui?

Não, aqui está melhor. E, depois, deste lado estamos em casa.

Ela veio erguer o arame farpado a fim de me facilitar a passagem por baixo da cerca.

Carregou-me para o pomar. Trepava nas árvores, machucava-me com as suas mãos curiosas, sempre risonha e palradeira.

Estávamos cansados, e havíamos deitado debaixo de uma grande mangueira, quando ela se lembrou do nosso conhecimento no internato:

Está zangado comigo por causa daquela dentada?

Abanei a cabeça negativamente. Ela sorria, fingindo-se incrédula e vergastando com a tala, que havia furtado a um empregado da casa, a raiz da mangueira.

Arrastou-se para o meu lagar e estendeu-me a boca.

Beija-me aqui.

Trêmulo, eu perquiria os arredores desertos.

Não há ninguém… E, depois, a boca é minha e faço dela o que quiser.

E pus toda a minha alma no meu primeiro beijo.

No fim do ano, saí definitivamente da casa dos homens de preto e das crianças pálidas. Tinha quinze anos e readquirira a minha cor de tocha mortuária.

Maud voltara mais crescida, com olheiras maiores e estava mais pálida. Era também uma imitação do paraíso a casa das mulheres de preto com grandes véus negros na cabeça.

No nosso quarto, à noite, contou-me toda a sua vida de internato: as rezas, as brigas, os amores misteriosos das educandas. Conhecera Madalena no internato, era sua companheira de quarto e ainda trazia no corpo os sinais arroxeados de sua boca.

Eu compreendi que as educandas sabiam mais da vida que as crianças pálidas do casarão sombrio dos homens de preto.

Maud adormeceu com os olhos cheios de lágrimas, com saudade de Madalena.

***

Quinze dias depois de nossa chegada, uma noite, quando nos recolhíamos para o quarto, vi na porta de um dos quartos abandonados a sombra de minha mãe.

Fora, na treva e na chuva, os cães uivavam.

Tive medo e gritei. O tio veio. Contei-lhe o que vira. Olhou-me com o mesmo olhar de tristeza que tivera meu pai e resmungou a mesma palavra bretã que não cheguei a entender.

Retirou-se para o seu quarto, num passo trêmulo de velhice e desamparo. Fiquei a olhá-lo com uma tristeza adivinha, apertando de encontro ao peito o corpo magro de minha irmã, que chorava sem nada compreender.

Na manhã seguinte, fui encontrá-lo morto, de bruços, na porta do quarto abandonado onde eu vira a sombra de minha mãe.

Com a morte dele, a nossa vida sofreu uma alteração profunda. Fomos para a casa de um senhor de barbas brancas, que era nosso tutor e depositário da fortuna deixada por meu pai.

Deram-me conforto, liberdade e sol. Em dois anos, eu me transformei rapidamente. Tinha músculos de aço e uma agilidade de acrobata. Domava cavalos xucros e tinha a pontaria infalível dos filhos dos gerais.

Madalena reentrara em minha vida. Estava mais alta, mais fina e mais bela. Continuava a morar na mesma chácara e quase nada perdera do seu sadismo.

André morrera no internato, de uma pneumonia, e eu fiquei sendo o amigo fiel da casa.

Quando ela fez dezessete anos, num domingo quente de dezembro, eu fui jantar na chácara. À tarde, começou uma tempestade que se prolongou pela noite. Quando ia regressar, o criado avisou que o meu cavalo já estava no pasto.

Voltei para a sala onde Madalena me esperava.

Estás triste por não poder ir?

Magdalena tinha os olhos mais fundos e mais belos. Lembrei-me da estrada, da poeira do trole e da outra frase, no passado: “Está triste por ter ficado?”

Um pressentimento triste doía-me nos nervos. Não me esquecera da sombra de minha mãe…

Sentia frio e fazia calor.

Se tocasse qualquer coisa…

Ela foi para o piano, sorridente e inquieta, pondo-se a tocar um tango alegre.

Preferia que não tocasse essa música…

Queres uma marcha fúnebre, pela noite perdida?

Os seus olhos encontraram os meus, e nos meus devia viver qualquer inquietação, muito grande, muito fora das inquietações humanas, um quer que fosse parecido com o olhar de um destino fulgindo nas minhas retinas que não eram minhas.

Pôs-se de pé, inquieta. Fi-la sentar de novo no banco do piano.

Tens qualquer coisa hoje, Arthur. Nunca te vi assim. Tenho quase medo dos teus olhos. Os teus olhos.... Parece que não são os teus olhos...

Olhava-me bem no fundo das retinas, num olhar profundo e grave de quem espera qualquer causa fora das normas das coisas banais.

As chamas do gás pareciam mais brancas, maiores, numa imobilidade onde eu divisava qualquer coisa fúnebre e pesada.

Ao nosso lado, encostado à parede, um velho relógio semelhante a um sarcófago em pé tinha um tiquetaque frio, incompleto, que irritava os nervos.

Se parássemos o relógio, Madalena? Faz-me mal o barulho daquela pêndula. Parece uma voz que se vai calar…

Olhamos o relógio. A pêndula oscilava isocrônica, tranquila. De repente, estalou e ficou imóvel, sem a mínima oscilação.

Esquisito, Arthur — murmurou ela, rodeando-me o pescoço com os braços. — Parece que vai acontecer alguma coisa.

Nas suas pupilas meigas tremulavam as sombras do medo.

Não seja criança — disse-lhe eu, acariciando-lhe os cabelos.

Ela se colava mais ao meu corpo e a minha carne sentia as pequenas convulsões de sua pele.

Como é estranha a voz do vento hoje. Se não soubesse que era o vento, pensaria ser uma voz que quer ser entendida. Olha!…

Os seus dentes batiam e ela se fez menor nos meus braços. Voltei os olhos para o lugar indicado pelos seus olhos. A pêndula do relógio balouçava-se serena, como minutos antes.

Ri docemente para os seus olhos interrogativos. Entretanto, no fundo de minha carne, talvez na alma, crescia uma angústia dolorida e fria. Eu havia visto antes de vir para a chácara, desenhada no corredor de minha casa na cidade, a sombra de Helena, e desenhada no sol violento que entrava pela janela aberta. Quando me aproximei para vê-la melhor, ela já não existia: — Ilusão dos meus olhos, pensara. Montara a cavalo e fizera correr, pondo-me a cantar para esquecer a sombra, fina e compacta que eu vira tão bem, tão melhor, tão mais nítida do que as outras vezes. Na chácara, a presença da criatura amada havia esbatido a lembrança da inquietação.

Num raspar surdo de ferros, o relógio parara. Fora tão inopinado o incidente que tive um movimento brusco de recuo e teria recuado até ao divã se não visse Madalena perder os sentidos nos meus braços.

Imobilizado, a olhar os ponteiros que marcavam onze e cinquenta e cinco, eu tive a enorme certeza de que naquele momento estava acontecendo alguma coisa na minha casa da cidade.

Deitei Madalena no divã, desabotoei-lhe o vestido e ia buscar água quando ela abriu os olhos.

Pus-me a falar com volubilidade:

Tolinha… Também fiquei espantado… Vi depois que era um desarranjo no maquinismo do relógio, causado pela umidade do tempo…

Sem lhe dar tempo de responder, debrucei-me sobre seu corpo, apertando-o nos meus braços e beijando-lhe violentamente a boca, para entontecê-la, fazê-la esquecer a pêndula maldita que brilhava na luz do gás como um olho risonho.

A loucura dos meus beijos e a inquietação de minhas mãos errantes sobre o seu corpo indefeso sensualizaram-lhe os sentidos. Suas pálpebras baixaram-se molemente semivelando-lhe os olhos que se adoçavam na meiguice do abandono.

Debaixo de minha mão contraída, eu sentia a carne nua e macia do seu pequenino seio de menina, na carne quente de minha boca eu sentia a carne viva e irritada dos seus lábios; entretanto, nunca um homem esteve tão longe das sensações da volúpia. Havia frio no meu cérebro e nos meus sentidos. Eu pensava, eu via, no corredor da minha casa da cidade, a sombra fina e fatídica de minha mãe.

Um ruído de passos no corredor pôs termo àquele desolado contraste de atos e pensamentos. Desliguei-me de seus lábios e ela, com uma rapidez que não julgava capaz, tentou abotoar a blusa que eu desabotoara na síncope e, vendo que não tinha tempo de cobrir a nudez dos seios, apertou com os braços, de encontro ao peito, uma grande almofada de seda, pondo-se a palrar em voz alta.

D. Marta, sua mãe, veio sentar-se ao seu lado, tomando parte da conversa.

Eu retomara a calma e via diminuir-se a sensação de angústia acordada pela lembrança da sombra de Helena. Com a volta da tranquilidade, pus-me a observar a segurança de Madalena, que estava colocada entre mim e D. Marta.

Uma resolução repentina assaltou-me:

Madalena, desejo contar um segredo à sua mãe, segredo que não podes ouvir.

Seu rosto ficou quase da cor dos seus lábios. Adivinhara a resolução que ainda não se formara de todo em mim. Deu um salto e desapareceu correndo na porta da sala, sempre com a almofada de seda colada ao peito.

D. Marta pusera a mão em concha perto da orelha, disposta a ouvir o que ela já sabia que eu devia dizer.

Fui conciso. Expliquei-lhe a minha situação financeira, os meus planos e pedi-lhe Madalena para minha mulher. Abraçou-me com lágrimas nos olhos e me deixou sozinho.

Três minutos depois, a minha noiva apareceu.

Mau… por que não me falaste antes?

D. Marta, que voltara, pediu licença para se retirar.

Vou rezar por vocês e depois vou dormir. Antes, terei o cuidado de mandar o chá. Podem tecer à vontade os planos de casamento.

Ao sair, viu o relógio parado. Pôs a pêndula a andar e acertou-o pelo seu reloginho de pulso.

Passamos a noite na sala, tocando músicas tristes de Kreisler, Franz Schubert e Mendelshon, e fazendo os planos de casamento.

Quando voltei para a cidade, eram sete horas da manhã e estavam olvidados, por completo, os dolorosos presságios do começo da noite.

Ao descer do cavalo, no portão da casa, veio ao meu encontro o meu velho tutor.

Maud fora encontrada morta, ao amanhecer, no corredor. Encontraram-na de bruços, em pijama de dormir.

No corredor, mostrou-me o lugar exato onde ela fora encontrada. Era o mesmo onde eu vira no dia anterior a sombra fina de minha mãe.

Fui vê-la no divã da sala de visitas, para onde havia sido transportada. Estava ainda de pijama, com os olhos semicerrados e o rosto transformado num esgar de pavor.

Rodeava o cadáver a família do meu tutor. O médico, um velho amigo da casa, chegado na tarde anterior de uma longa viagem à Europa, declarou que ela morrera do coração e perguntou-me se havia casos de mortes iguais em minha família.

Meu pai e meu tio…

Então…

Eu continuara com uma esquisita tranquilidade:

Apareceram ambos, em datas diferentes, ao nascer do dia, mortos, de bruços, o primeiro num dos corredores da minha casa da Bretanha, o outro, no corredor de sua casa, aqui na cidade.

O médico fez-se pálido e chamou-me para o corredor onde Maud havia sido encontrada.

Julga tratar-se de um crime? Júlio (referia-se ao meu velho tutor) está acima de qualquer suspeita. É uma loucura! Pode mandar chamar um outro médico... Encontrei o corpo frio. Deve ter morrido muitas horas antes de amanhecer.

Morreu às onze e cinquenta e cinco…

Ele estremeceu violentamente.

O doutor é um velho honrado e um homem de ciência… Promete guardar segredo absoluto sobre o que eu lhe disser?

Sim — balbuciou ele, fazendo-se mais pálido.

Não se trata de um crime. Antes que eu diga alguma causa, desejo ver os relógios da casa.

Entrei na sala de jantar e ele me seguiu em silêncio. Olhamos ambos o relógio que estava junto a uma cristaleira. Estava parado nas onze e cinquenta e cinco.

O relógio da copa marcava também onze e cinquenta e cinco.

De volta à sala de visitas, perguntei as horas ao meu tutor. Sacou o relógio, atencioso:

Esquisito… parado nas doze… Lembro-me de lhe ter dado corda ontem quando me deitei. Por sinal, estava adiantado cinco minutos, como de costume.

À tarde, de volta do cemitério, sob uma neblina fina e desconsolada, narrei ao médico a história da sombra de minha mãe.

***

Três meses depois, eu me casei com Madalena. Era Março. Não houve convite e ninguém foi à chácara onde a cerimonia se realizou, à exceção do meu ex-tutor e do médico da família, que se retiraram cedo.

Às nove horas, subimos para os nossos quartos, que se comunicavam por uma porta. Vesti um pijama e estive muito tempo debruçado na janela a olhar uma grande Lua avermelhada e as morrarias distantes enroladas na bruma. Quando entrei no quarto de minha mulher, ela estava diante do espelho, de pijama, concertando os cabelos.

Viu-me refletido no fundo do cristal, mas não se voltou. Sentei-me numa grande poltrona escura que havia junto à cama e ela veio sentar-se no meu colo, com as curvas das pernas pousadas no acolchoado da poltrona e a cabeça nos meus braços.

Julguei que tivesse dormindo, Arthur.

Tardei?

Um pouco. Já estava com medo....

De que eu viesse – murmurei, fazendo-lhe cócegas no pequenino pé calçado com uma meia de seda cor de cinza clara.

De que não viesses — respondeu, escondendo a cabeça no meu peito.

Numa árvore vizinha ou em cima do telhado, uma coruja sonâmbula rasgava mortalhas.

***

Às quatro horas da manhã, quando me dirigia para o meu quarto, ao encostar a porta de comunicação, ouvi passos cautelosos na sala de visitas que ficava no rés do chão. Desci a escada lentamente e, no meio dela, colando-me a sombra, pus-me a escutar.

Nenhum sinal de vida. Haviam esquecido um bico de gás aceso e ele alumiava tenuemente a sala. Confundido com a treva, respiração presa, eu esperava. No canto, ouvia-se o resmungo triste e lento do pêndulo do relógio.

Quando distendia o corpo para subir, notei que o gás estava mais claro. Meus olhos foram descobrir, entre o divã e o piano, colada ao tapete, uma sombra fina e preta. Voltei rapidamente para o quarto de minha mulher, tendo o cuidado de fechar as duas portas por onde passei e guardar as chaves.

Madalena dormia cansada. A luz estava acesa. Acordei-a sacudindo-lhe a cabeça.

Eu tinha frio na carne, frio da alma. Contei-lhe toda a minha vida e todas as mortes que a sombra fatídica fizera em meu caminho. Ela ouvia atenta, com os olhos muito abertos e os braços enrolados no meu pescoço.

Não sairás deste quarto, ainda que ouças a casa arder. Não sairás porque a morte é certa e eu não quero que morras, não quero te perder.

E ela jurou que não sairia.

Minha cabeça pesava num cansaço estranho.

Sinto que vou dormir… Peço-te que não saias… A morte está na sala… entre o divã e o piano… Vais jurar novamente…

Na manhã seguinte, a porta do quarto estava aberta par a par e a cama sem a minha companheira. Corri para baixo, como se me houvessem arrancado o cérebro.

Entre o divã e o piano, de bruços no tapete, com o pijama aberto, morta, estava a mulher que fora todo o meu afeto neste mundo.

Vinte e dois anos... e os meus cabelos já estavam grisalhos e já havia no meu rosto o rastro fundo e gelado da velhice. Vim para a Europa e, comigo, o veneno das coisas frias vindo da sombra assassina, e a saudade incurável de Madalena...

Era rico e procurei pagar com o vício vertiginoso aquela eterna sombra gelada. Onze meses, ela não apareceu. Fui um pouco feliz, parecia haver saído montanhas de cima do meu cérebro.

Uma atrizita de um teatro do Passy, Jeanne Furquin, era minha amante havia vinte dias. Num terceiro ato, ao entrar em seu camarim, vi deitada em cima do divã a sombra fina de Helena. Quis entrar no palco e gritar a Jeanne que não entrasse nunca mais no camarim. Perdi os sentidos e rolei atrás de uns panos pintados. Quando me levantei, havia um ajuntamento à porta. Corri para lá.

***

De bruços, no divã, dormia, para sempre, Jeanne Furquin.

Fugi de Paris, fui para Ostende, odiando a minha vida e crendo-me responsável por toda aquele rosário de mortes deixado em meu caminho.

No hotel onde me refugiara, uma miss da Escócia cercou-me de atenções, enchendo a minha vida vazia de novos carinhos.

Tive medo e quis fugir. Na noite da fuga, quando ia fechar a janela do quarto, vi desenhada ao luar, junto ao lago, a sombra fina de Helena. Quis sair. A mesma vertigem andou na minha cabeça. Quando recuperei os sentidos, amanhecia.

E, da minha janela que ficara aberta, vi, no lugar preciso onde a sombra dela aparecera, o vulto inanimado da minha miss escocesa, de bruços, na mesma posição dos outros.

O médico deu como causa mortis, como todos os outros, moléstia do coração.

Voltei a Paris. Consultei a maior mentalidade médica da raça. Ele era suficientemente gênio para reconhecer que eu não estava doido. Aconselhou-me que me retirasse para uma terra onde não tivesse amigos e nunca mais amasse ninguém.

***

E voltei para a Bretanha e aqui estou na mesma aldeola, dentro do mesmo casarão imenso e monacal, onde ela me apareceu pela segunda vez, à espera de que a morte chegue.

Tornei a ver hoje a sombra de minha mãe na porta da cela onde morreu meu pai. Sei que é a última vez que a vejo.

Como não mata mais ninguém na casa, e eu não tenho mais amigos, e ela indica sempre a morte de alguém, sei que vou aparecer amanhã, de bruços, para sempre, na porta da cela maldita.

Sinto que a minha hora está perto, sinto com todos os sentidos que a Morte anda rondando o ritmo do meu coração, anda aqui dentro e lá fora, cantando o fúnebre responso de minha vida, com uma voz que não ouço, com uma boca que não vejo e que sinto que anda perto de mim.

Estou só no meu quarto e na minha casa vasta e lúgubre, antigo convento de treze séculos, extinto há perto de cem anos, onde não há ninguém e nada se ouve além da voz do pêndulo do alto relógio do salão amarelo e do cicio dos fantasmas errando pelos corredores sem termo.

***

A chama da tocha agoniza, extinguindo-se. Vou parar porque não posso escrever dentro da treva…

Sinto passos no corredor, os passos de minha mãe que caminham para o meu quarto... e a tocha morre... e alguém anda a abrir a porta…


Ilustração: PS-Copilot.




Comentários

  1. Barão, tenho que ler esse conto de qualquer jeito!

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  2. esse autor foi considerado o primeiro autor de terror no Brasil, com o livro de contos "A casa do pavor", que é difícil de achar inclusive na internet ( andei pesquisando e queria ler esse livro!), tanto pra comprar quanto pra baixar. A famosa revista do modernismo, a Klaxon (que no Ensino Médio ouvi falar dela pela primeira vez), publicou algumas críticas sobre o Deabreu, apesar de elogiá-lo também. Poucos sites disponibilizam esse autor, já em domínio público, com exceção do CDT, o Contos de Terror, este site, e o Tênebra. Foi o que pesquisei antes de ler este conto, leitura que farei em breve. Alguns pesquisadores consideravam o Luchetti o primeiro, mas acredita-se que Deabreu seja o pioneiro. mas Luchetti evidentemente é genial, um dos meus favoritos.O Terror e a Ficção Científica no Brasil sempre sofreu um certo preconceito estúpido dos "maiorais" da dita literatura "séria", principalmente no mundo acadêmico, mundo que aliás, eu sempre detestei. Aprendi a gostar d eler indos nas bancas de jornais e comprando revistas e livros baratos. Hoje as bancas quase que foram totalmente substituídas pelos sites. Muito bom, adoro encontrar autores obscuros (pelo menos para mim, talvez não sejam tão assim), mas talentosos.

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  3. acabei de ler o conto. Esse autor é um gênio ! Puxa vida, preciso achar mais contos desse cara! Muito bom!

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