ASSOMBRAÇÕES - Conto Clássico de Horror - Yara do Rio

ASSOMBRAÇÕES

Yara do Rio

(Pseudônimo de Heloísa Leal da Costa)

(Início do séc. XX)



Uma tempestade horrível se desenvolvera. Encharcados até os ossos, atolados na lama, os quatro caçadores e o guia só conseguiam ver o caminho à luz dos relâmpagos. E, ao ribombar dos trovões, respondiam com uivos e pios terríveis os habitantes da floresta.

Irra! — disse um dos rapazes. — Eu tremo de frio e… de medo.

Ora, seu Juca — respondeu o outro —, você com medo de…

Mas um grito alucinante, que escapou de seus lábios, não deixou que terminasse a frase. Cascavel imensa, a chocalhar, passava viçosa, ondulante, por entre suas pernas ágeis, que o pavor ainda mais ágeis tornara. Felizmente, o réptil nenhum mal lhe fez, e, à claridade de um novo relâmpago, viram o rancho que o guia, desnorteado havia várias horas, procurava.

O grupo era formado de três estudantes do Dr. Hilário, um solteirão capitalista, já maduro, que se sentia bem na companhia de gente moça. Incrédulo, bonachão, ria de todas essas superstições e lendas que infestam o nosso Brasil.

Quando já enxutos, fumavam ao redor da fogueira que crepitava fumarenta no meio de uma choupana, repararam no guia um “cabra” de músculos rijos, que não tinha medo de gente, mas que se encolhia todo, com os olhos brilhantes, persignando-se a cada estrondo do trovão.





Que tens, Damião? — perguntou um dos estudantes.

Ah, patrão! É que esse mucambo é mal-assombrado. Dizem que em noites cuma de hoje vem aqui cantar e tocar viola a arma do defunto Zé Matuto, que morreu numa noite igualzinha à de hoje, de morte matada, quando cantava umas trovas pra dona do seu coração. Antonces, quando a chuva chove cuma hoje, ele vem acabá a trova que estava cantando quando morreu.

E, como para afirmar as palavras do Damião, o vento, passando por entre as folhas das árvores, deu aos ouvintes a impressão nítida de uma viola a cantar. Pela carapinha dos rapazes correu um leve arrepio.

O silêncio que se fez foi cortado pela gargalhada satírica do Dr. Hilário.

Ora! Assombrações… Então vocês acreditam nisso? Verdade é que eu também já acreditei, mas foi só por alguns momentos. É melhor que lhes conte, enquanto não cessa assa maldita chuva. E, acomodando-se como pôde, ele começou a narrativa:

Se não me engano, sou descendente do Judeu Errante. Desde cedo que se revelou em mim essa mania de correr terras. Depois, era bem fácil satisfazer aos meus caprichos, pois acharam os meus antepassados que deviam juntar dinheiro para que eu o gastasse. De mim, só exigiram uma formatura em Direito, porque, infelizmente, no Brasil, só é gente quem é doutor ou... coronel. Viajei. Corri quase todo o mundo e nunca soube o que foi ter medo, nem do salteador da Serra Morena ou do nosso cangaceiro; jamais me apavorou o uivo do jaguar traiçoeiro, nem a peste das regiões pantanosas; mas, tremi, acreditem, por causa de uma assombração.

Faz muitos anos, porém é bem vivo na minha imaginação o pavor que senti naqueles curtos momentos. Estava eu em Recife e, por um capricho, resolvi fazer um passeio à noite pela costa. Um dia cálido, dia quente do Norte, fazia prever grande tempestade. Aluguei um cavalo para fazer a excursão. Queria ver, à noite, o aspecto imponente da fortaleza do Brum, obra sólida e majestosa, feita pelos holandeses durante o período da sua invasão e permanência em nosso país. Mais adiante ficava a fortaleza do Buraco, meio em ruínas, e, entre duas fortificações, a celebre ‘Cruz do Patrão’. É uma dessas cruzes comuns que vemos sempre nas beiras das estradas dizendo ao viajante que ali morreu alguém. Ora, a ‘Cruz do Patrão’ tem várias lendas e entre elas a seguinte:

Dizem que naquele lugar foi assassinado, numa noite tempestuosa, um rico senhor de engenho. Voltava ele de receber o dinheiro de um açúcar vendido, quando, de repente, lhe apareceu na frente, armado de faca, um seu empregado, homem no qual depositava toda a confiança. Foi tanto o medo e tão grande o espanto da dolorosa surpresa, que o infeliz enlouqueceu, morrendo a gargalhar. Quando, no dia seguinte, encontraram o cadáver, a boca roxa, os músculos da face repuxados, os olhos vítreos, tudo parecia rir, um riso que nunca mais havia de terminar. E o povo dizia que, nas noites de trovoada, um fantasma gargalhava nos braços da cruz que protegia a sua sepultura. Pois bem, essa lenda ainda mais aguçou minha curiosidade.

Quando cheguei à praia, grossos pingos de chuva batiam de encontro à minha capa de borracha, enquanto ao longe o trovão se anunciava, num surdo ribombar. E a borrasca se desencadeou. Nunca vi espetáculo mais soberbo e ao mesmo tempo terrível. O mar, em fúria, levantava montanhas de água negra, que se arremessavam à praia como feras. O vento assobiava lúgubre, indo de encontro aos manguais, que se partiam com estalidos secos. E tudo vibrava, tremia, ã luz dos raios que ziguezagueavam no céu. Eu gozava extasiado a revolta dos elementos.

Quando me aproximava da ‘Cruz do Patrão’, o vendaval atingira o auge. Mais alguns passos, e eu a alcançaria. O animal, porém, relinchou e, empinando-se todo, não obedeceu nem ao freio nem às esporas. Lutei um pouco com o cavalo, até que, de repente, senti o sangue parar nas veias — eu ouvira — entenderam? —, ouvira uma gargalhada partir da cruz. Instintivamente, meus olhos se voltaram para a sepultura, onde divisei dois faróis de fogo que luziam na escuridão. Ah, meus amigos, confesso que tive medo, terror!… Espavorido, criei forças, chicoteei a montaria, que deu um arranco e passou coiceando para depois tornar a parar. Como que fascinado, não tirava os olhos da cruz, ou por outra, do lugar onde ela se achava, pois era tal a escuridão, que apenas distinguia um vulto. Porém, um novo relâmpago, uma nova gargalhada, um bater de asas e ou vi a assombração. Uma coruja que descansava nos braços da cruz. Tive vergonha de mim mesmo. Chicoteando com raiva o animal, consegui que ele voltasse. Saíra em busca de sensações novas e aquela me bastava.”

O Dr. Hilário terminara a narrativa. Alguém perguntou então:

Ainda existe a "Cruz do Patrão”?

Não sei, mas é possível que não. Há quinze anos que não vou a Recife, e dizem que as obras do porto fizeram maravilhas e… atrocidades. É possível que a civilização, na sua ânsia de progredir, tenha destruído mais uma das nossas tradições.

A tempestade passara. Lá fora, a Lua prateava as poças d’água, e as árvores, mirando-se nas sombras, pareciam fantasmas a bailar ao som de uma orquestra de rãs.


Fonte: “Fon Fon”/RJ, edição de 16 de março de 1929.

Imagem do miolo: PS/Copilot.

 

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