O FANTASMA DE SALAMANCA - Conto Clássico de Mistério - René Bizet

O FANTASMA DE SALAMANCA

René Bizet

(1887 – 1947)

Tradutor anônimo do início do séc. XX


Eu acabara de chegar a Salamanca. Era por uma péssima tarde de inverno. Nevara sobre a cidade das serenatas, e as ruas estavam transformadas em verdadeiros lamaçais.

Carregado num veiculo que seis mulas arrastavam penosamente, pude, afinal, apresentar-me no domicílio do meu amigo Dom Pedro Miguel Carranza, que gentilmente me oferecia hospitalidade.

Há vinte anos, talvez, não nos víamos. Éramos, então, estudantes, em Paris. Um pouco mais velho do que eu, Pedro tomara sobre mim uma certa ascendência, e, enquanto nos apertávamos num fraternal abraço, eu me recordava das suas repreensões quando eu levava uma vida desregrada, esbanjando a minha modesta fortuna com qualquer sedutora figura.

Achei-o bem mudado. O seu rosto moreno e fino conservava a mesma graça orgulhosa, mas o seu comprido corpo curvara-se e os cabelos embranquecidos davam-lhe, prematuramente, a aparência de um velho.

Que a casa dos meus antepassados te seja agradável — exclamou, apertando-me as mãos. — É como se estivesses na tua casa. Vamos amos tratar de ressuscitar aqui um pouco da nossa juventude…

Confesso que este último desejo me parecia impossível. A residência em que me introduzira Dom Pedro não era feita, por mais que ele quisesse, para evocar um tempo risonho, delicioso. O grandioso vestíbulo, o imenso e tenebroso salão, certos recantos misteriosos, entrevistos ao passar, em companhia do dono da casa, e extrema gravidade dos empregados, tudo isto me produzia uma impressão de tédio úmido e de glacial melancolia, de que não me era dado livrar-me.

Esta impressão transformou-se em verdadeira angústia quando Dom Pedro me apresentou a mulher e a filha. A senhora Carranza mostrava ter sido bela, mas não lhe restavam, dos seus encantos, senão um triste ar de majestade e um sorriso apagado. Quanto à senhorita, pude dar-lhe, apenas, um rápido olhar. Conservara-se na penumbra. Distingui uma forma esbelta, mas não vi a fisionomia, nem as mãos.

E conversamos.

E eu vim a saber, no correr dessa palestra desanimada, que Dom Pedro Miguel Carranza sofria, há anos, de uma incurável neurastenia, que à sua mulher não coubera uma vida melhor, e que a sua filha María ia fenecendo aos poucos.

Que estranho fado pesava sobre eles! O meu amigo nada sabia, e como eu timidamente insinuasse que talvez aquela velha mansão fosse a causa do nervosismo doentio dos seus habitantes, Dom Carranza me disse, com uma tal entonação —“A antiga casa dos Carranza não pode ser a causa de nenhum mal” —, que resolvi não mais insistir.

Ainda tive ânimo para aconselhar algumas viagens. Um lacaio veio avisar-nos de que o jantar estava servido.

As lâmpadas continuavam apagadas. A senhorita María, cujo semblante ainda não me fora possível ver, recolhera-se. O pai explicou que ela não podia ficar levantada depois das seis horas e caminhamos para a sala de jantar Pedro, a mulher e eu, como espectros. O jantar foi silencioso. Dois candelabros, de três ramos cada um, eram toda a iluminação da sala, onde poderiam servir-se, sem dificuldade, oitenta pessoas. Cada um de nós seguia os próprios pensamentos. Os meus iam muito longe, aos horizontes primaveris de Portugal, que me atraíam com uma força invencível.

Mas Dom Miguel interrompeu, bruscamente, o meu agradável sonho:

És medroso? — perguntou-me.

Não, por quê?

Oh, por nada! Perguntei…

Por que perguntaste?

É que, às vezes, quando se dorme num quarto que não nos é familiar…

Ora! Estou habituado a viajar, aos quartos de hotel. E nunca tive o menor receio.

*

Os donos da casa levantaram-se e um empregado, tomando duma lâmpada, convidou-me a segui-lo. Beijei a mão senhora, apertei a de meu amigo, que me desejou “boa noite”, com um tom singular, olhando-me com uma ternura que me comoveu no momento. Mas, ao alcançar a porta do meu quarto, já não me lembrava disso

Na verdade, não era um quarto, mas um dormitório, pelas proporções. O leito perdia-se, naquela imensidade, como numa planície. Era quase uma caminhada para chegar à janela que dava para uma praça onde a catedral de Salamanca erguia-se, maciça, sob um céu de raras estrelas.

Inspecionei as paredes, e os moveis também me ocuparam a atenção: velhas cômodas, pesadas poltronas profundas, revestidas de sombrio pano, um armário ameaçador como uma masmorra, e terríveis retratos de homenzinhos vestidos de preto, as fisionomias lívidas dentro das grossas molduras.

Voltou-me à mente a frase de Dom Pedro Miguel:

És medroso?

Já me sentia mentalmente intimidado. Eram, apenas, sete horas da noite. Nunca eu me deitara tão cedo, mas a ideia de só ter por companheiro contemporâneos de Filipe II não me animava a procurar uma distração antes de dormir.

Afinal, pensei, vou tratar de dormir. Certamente, não terei maiores pesadelos dormindo do que acordado.

Despi-me então, e meti-me debaixo das cobertas. Apaguei a vela. Fechei os olhos. Mas eu não pensara nos mil ruídos que vinham agora encher-me os ouvidos; passos no sonoro corredor, um ranger de fechaduras, corridas de ratos gemidos do vento… latidos de cães… Tudo isso era hem natural, mas por que eu inquietava tanto? Agitava-me sem cessar no leito, virava o travesseiro. Oito horas, nove horas soaram no relógio da catedral e eu não conseguia adormecer…

De repente, sentei-me na cama, alarmado: tinham virado suavemente, muito suavemente, o trinco da porta do meu quarto. Eu tinha absoluta certeza de não estar sonhando, pois via, no fundo do quarto, a janela que dava para a praça, e agarrara mesmo a minha caixa de fósforos. Mas não tive tempo de acender a luz. A porta entreabriu-se e eu distingui um vulto branco, que veio até a minha cama, agitando guizos, e rápido desapareceu nas trevas.

Quem está aí? — perguntei.

Não houve resposta. Repeti a pergunta, num tom que me esforçava por tornar divertido.

Quem está aí? Quem é quem vem visitar-me? Os guizos mexeram-se. Faziam um ruído fraco, mas a sua música era acompanhada por uns risinhos secos, que, confesso, naquelas circunstâncias, não me agradavam muito.

Não me achava com disposição para brincadeiras. A minha única arma era o travesseiro. Acendi a vela e olhei: o vulto branco sentara-se numa poltrona, sob um dos retratos antigos. Não se mexia, permanecendo em silêncio.

Não gosto de brincadeiras deste gênero, meu bom fantasma — disse em voz baixa — e se não fores embora imediatamente, eu…

*

E vi, com efeito, o inverossímil espetáculo de fantasma assustado, que se pôs a tremer com todos os membros, e que, sob a mortalha, chorava como uma criança.

A sua fraqueza me encorajava ainda mais, e eu compreendi que, com um pouco de energia, ganharia a partida. Então, ordenei:

Saia daqui!

O fantasma quis levantar-se, mas, já sem forças, aprofundou-se ainda mais na poltrona, e eu ouvi uma voz muito frágil que dizia:

Perdão! Perdão!… Eu não posso!…

Agora, já era demais. Era preciso que o vivo fosse em auxílio do morto. Levantei-me e fui até a poltrona para dar animo ao infeliz.

Ergui o véu que o asfixiava e apareceu, então, aos meus olhos, um pálido, um lívido semblante de moça que só sabia murmurar: “Perdão... enganei-me de quarto…”

Na verdade, senhorita — disse eu já perfeitamente calmo —, quem quer que seja, princesa ou criada, acho singular este modo proceder. A senhora obriga-me a ser ridículo. Está vendo um cavalheiro em pijama, que quase a trata com a maior brutalidade. É certo que a sua situação pseudo-fantasma não é menos divertida. E é esta igualdade no ridículo que produz a minha indulgência. Agora, só me falta chamar Dom Pedro…

A minha curiosa desconhecida estremeceu, e suplicou:

Oh, não! Rogo-lhe, não chame o meu pai!

Como? Trata-se da senhorita María Caranza?

Sim.

Mas, então…

Afinal, depois de muitos suspiros, a jovem resolveu explicar-se:

Não me julgue louca, senhor estrangeiro, e não pense que eu tive a intenção de pregar-lhe uma peça... Sou muito infeliz, e procuro deste modo, não divertir-me, o que seria uma tolice, mas dar um fim ao meu tormento... Imagine que eu vivo nesta casa cheia de mofo desde o dia em que nasci, que nunca saio, nem para uma festa, nem para um passeio, sendo a minha única distração ir à catedral, que fica a cem passos da nossa residência. Que será de mim, meu senhor? Morro de tédio, numa palavra. Se o senhor teve, há pouco, a comedia do fantasma que se encontra mal, é porque sou muito nervosa, e a menor emoção me aflige…

Muito bem, senhorita, mas isso não me explica…

Um pouco de paciência. Pedi aos meus pais que me retirassem desta casa. O doutor disse-lhes que eu estava morrendo aos poucos. Gastei sorrisos e lagrimas para convencê-los Trabalho inútil. O meu pai nasceu aqui, e daqui não quer sair. O senhor pôde julgar por si mesmo do estado da saúde dele. Precisa de ar, de sol... Então, esgotadas a minha energia e a minha astúcia, pensei que, se pudesse intimidá-lo, se conseguisse convencê-lo de que os seus próprios antepassados é que lhe aconselhavam abandonar este maldito logar, talvez ele obedecesse ao medo e aos avisos do além-túmulo. Acha-se debilitado e, portanto, muito crédulo. E há um mês, todas as noites disfarçada como o senhor vê, represento o fantasma de Dona Seráfita, filha de Filipe Benito Carranza Virtos, escudeiro do rei Filipe IV, morto de consunção, nesta casa, no dia 15 de fevereiro de 1644… Entro no quarto de meus pais e gemo; entre duas sacudidelas de guizo, digo num tom lúgubre: “Dom Pedro Miguel, fuja deste sepulcro assombrado pelos mortos, onde o destino que cortou a flor de minha juventude abater-vos há em plena madureza!

E acha que seu pai cederá?

A jovem teve um momento de hesitação:

Pelo menos, eu espero, mas desejaria que fosse sem demora, pois o senhor não pode imaginar como me fatiga fazer alma do outro mundo todas as noites.

Mas eu duvido!… — exclamei.

E calei-me. Os meus olhos, que há pouco e pouco se haviam habituado à penumbra, distinguiam os traços encantadores duma fisionomia juvenil emoldurada em cabelos louros, e tão lívida que se diria uma rosa branca, um ser frágil, tímido, um pouco envergonhado da sua aventura, e que acabava por desatar em soluços.

Permaneceu assim, ao meu lado, durante um espaço de tempo cuja duração não me foi possível apreciar, mas que me pareceu muito curto. Esforcei-me por dar-lhe algum consolo, secando-lhe as lágrimas, prometendo intervir junto aos pais para apressar a sua libertação; dia sorriu, estendeu-me as mãos requeimantes, e, sempre um pouco receosa, retirou-se, pedindo-me mais uma vez.

*

Dormiste bem? —indagou de manhã, quando nos achamos todos reunidos na sala de jantar, Dom Pedro Miguel, ansioso por ouvir as minhas palavras.

Sim e não — Respondi-lhe. — Sim, da meia-noite ao dia; e não, das nove horas à meia-noite.

Que foi que aconteceu?

Fingia-se surpreso, mas a sua palidez é prova de que temia as minhas explicações.

Podes imaginar…

Ah, ele veio?

Sim. Ele não deixou de vir.

É horrível!

Horrível, não digo: é um exagero; mas é perturbador, não ha dúvida.

Devo confessar-te que te deixáramos, eu e a minha mulher, o nosso quarto, pensando que ele não ousaria aparecer…

Pois… ousou.

Não sabemos como exprimir-te…

Para mim, meu amigo, isso não tem importância, mas receio que para vocês dois sejam bem penosas essas manifestações da vontade do além…

Dom Pedro Miguel tornara-se sombrio. A mulher tremia de medo, lembrando-se das noites assombradas. Nem tocaram na ligeira refeição que nos fora servida. Quando eu terminei o meu café com leite, Dom Pedro, cada vez mais furioso, ergueu-se da mesa. e exclamou:

E, apesar de tudo, não sairemos desta casa. Aqui nasci, aqui quero morrer!

Neste momento, a jovem María entrava na sala. A vontade paterna, expressa naqueles termos, atingiu-a como uma martelada na fronte. Olhou-me desesperada.

Tu podes, sem dúvida alguma, sacrificar-te a ti mesmo. Mas os teus?

Nós formamos um só corpo.

Eu sentia que uma discussão com aquele egoísta. sobre este assunto não daria outro resultado senão afirmar ainda mais a sua resolução. Por teimosia, por amor-próprio, não queria ceder, principalmente na minha presença. Fiz-lhe, então, outra proposta.

E se eu os livrasse do fantasma?

Tu? O senhor? — exclamou, ansiosa, a dona da casa.

Sim… se quiserem. Mas exijo, antes de mais nada, a promessa de confiarem plenamente em mim, não contrariando de forma alguma a minha ação.

Juraram dar-me a máxima liberdade, e que o seu reconhecimento seria eterno.

Assim, à noite, pedi a Dom Pedro Miguel e à sua esposa que não subissem para o seu quarto, e esperassem embaixo, pacientemente, a minha vinda.

Estou certo — disse-lhes — de atrair a mim o fantasma. Mas se, para afastá-los de vós definitivamente, tiver de fugir com ele, hão de perdoar-me sair sem as despedidas do protocolo…

Concederam-me, de boa vontade, a autorização de faltar à polidez.

*

Que deliciosa comedia representamos, María o eu, quando bateram nove horas na catedral! Ela veio encontrar-me no dormitório em que me surpreendera na véspera. Ajudei-a a aperfeiçoar um pouco a sua toalete de fantasma.

O senhor e a senhora Carranza conservavam-se no salão, apenas iluminado, de onde se haviam afastado para nada, permanecendo sem alimentação, e em preces.

Quando terminamos os preparativos, desci, dirigindo-me aos pais:

Aí vem ele! Vem nas minhas pegadas…

Dom Pedro Miguel teve ainda forças para perguntar-me: “sim. mas… seguir-te-á ele até o fim?”

Não tive tempo de responder. Ouvimos um roçar de sedas pelo soalho, e vimos entrar, virginal, luminoso, um vulto coberto por um véu branco; um ruido de guizos marcava-lhe os movimentos. Era aterrador e magnífico.

Uma voz trágica cortou o silêncio:

Dom Pedro Miguel, fuja deste sepulcro! Abandone esta casa maldita…

O marido, desorientado, caíra de joelhos. A senhora soluçava.

Um extremo comovido, com certeza, o fantasma não quis continuar seu tremendo discurso. Apontei-lhe a porta. Obedeceu-me. Íamos saindo juntos, mas, receando que a brincadeira se tornasse demasiado grave, voltei-me e disse:

Amigo, antes que o espectro deixe estes logares, permites que te peça a sua mão?

O pobre Dom Pedro já não sabia se continuava neste ou no outro mundo, e, como num sonho, murmurou estas palavras

Sim… sim! Tudo o que quiseres.

Foi então que a jovem descobriu o semblante aparecendo aos seus, tímido, humilde serafim decaído, que só dispõe do prestigio da sua beleza.

O que eu temia era este ultimo quadro. A nossa comédia correra muito bem, mas qual seria o seu desenredo?

Dom Pedro Miguel sentiu um alívio tão grande que caiu sobre a poltrona, enquanto a sua esposa, num tom maternal e comovente, que maravilhosamente encerrava a nossa aventura, observou:

Parece uma noivinha!

E era bem verdade, pois María não trazia outro vestido, quando, algumas semanas mais tarde, nos casamos, em Paris, para onde nos mudamos os quatro, definitivamente.


Fonte: “Leitura para Todos”, edição de setembro de 1923.

 

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