O SEGREDO DA CONDESSA BÁRBARA - Conto Clássico de Terror - Henri de Régnier
O SEGREDO DA CONDESSA BÁRBARA
Henri de Régnier
(1864 – 1936)
Tradução de autor anônimo do início do séc. XX
O homem, cuja estranha confissão ides ler, era de boa família veneziana.
Digo “era”, porque, no momento em que me veio às mãos o documento a que me refiro, havia algumas semanas que morrera no hospital da ilha de San Servolo, onde o mantinham internado desde muitos anos, o autor deste curioso escrito.
Foi, sem dúvida, tal circunstância que determinou o amável diretor do asilo de alienados, M. C., a comunicar-me essa elucubração sintomática.
É verdade, também, que eu fora calorosamente recomendado a M. C., e que o inquérito psicomedical, que eu vinha continuar no “Manicômio” de Veneza, tranquilizava-o sobre as minhas intenções. Ele sabia bem que eu não abusaria das confidências do seu extinto pensionista. Por isso, não teve escrúpulo algum em me deixar copiar o trabalho que se vai ler e que hoje entrego ao público.
Faço-o, aliás, com tanto maior liberdade, porquanto os acontecimentos nele referidos remontam a perto de vinte e cinco anos passados.
Há, justamente, doze anos que os estudos aos quais me aplicava, e que abandonei depois, me levaram a Veneza.
Nesse tempo, eles me apaixonavam de tal maneira que eu nem pensava, sequer, em apreciar as poéticas e pitorescas belezas da Cidade dos Doges.
Quando muito, visitei apressado os monumentos, sem perder um minuto a gozar o repouso que nos oferece a única cidade do mundo em que se pode esquecer, quase completamente, a vida moderna.
Entre tantas coisas belas que eu via pela primeira vez, apenas me ocupava com o meu trabalho. Hoje, já não acontece a mesma coisa, e não me posso lembrar sem algum desdém do jovem visitante de outrora, que vivia em Veneza como se vivesse em qualquer outra parte, a quem a basílica de São Marcos parecia uma coisa qualquer, e que não tinha para o Palácio Ducal senão olhares indiferentes. Sim, eu levava tão longe essa indiferença que morava em frente à estação. Adotando essa moradia, não tivera em consideração senão a comodidade e o preço modesto. Resulta destas confissões que o sentimento da beleza estava, nessa época, inteiramente atrofiado em mim. De tal sorte que os sítios mais interessantes de Veneza me pareciam ser o café Florian — cujos sorvetes eu muito apreciava —, o Lido, onde eu gostava de tomar o meu banho, e a ilha San Servolo, cujo amável diretor, interessado pelas minhas investigações, esclarecia-me com suas luzes.
Ah, que excelente homem!… Conservo agradável recordação das nossas palestras no gabinete do trabalho da sua ilha de alienados.
As janelas dessa peça abriam sobre um terraço plantado com três ciprestes desiguais, dominando toda a extensão da laguna do lado de Malamoceo e de Chioggia. Aí nos sentávamos muitas vezes para discutir. Um admirável silêncio, apenas turbado por algum grito que se elevava do quarteirão dos agitados, e, também, em maré baixa, pelo reboliço dos ratos, cuja multidão inumerável se recreava na vasa, ao pé das muralhas.
Foi em seguida a um dos nossos colóquios do terraço que M. C. me emprestou o documento que se vai ler e que eu copio, traduzindo-o.
MANICÔMIO DE SAN SERVOLO
12 de maio de 18….
Agora que estou bem e devidamente considerado como louco, e que aqui estou enclausurado neste asilo provavelmente até o fim de meus dias, nada me impede de relatar, com toda a exatidão e verdade, os acontecimentos que provocaram o meu internamento.
Não imagineis, sobretudo, vós, que percorreis estas linhas, que vos encontrais em presença de um desses maníacos que redigem intermináveis recriminações contra o erro médico do qual eles foram vítimas, ou que denunciam as sombrias maquinações de família e os dramas íntimos, cuja consequência foi a perda da sua liberdade. Não! Longe de mim a ideia de me queixar da minha sorte e de protestar contra a medida tomada a meu respeito. Nenhum projeto de evasão, depois que estou aqui, me atravessou o espírito. Ao contrário, a minha cela de San Servolo não é para mim um calabouço, mas um refúgio. Ela me garante uma segurança que eu não encontraria em parte alguma, e não tenho nenhum desejo de deixá-la. Abençoo as espessas muralhas e as grades sólidas que me põem doravante ao abrigo — e para sempre — da sociedade dos homens e, em particular, daqueles que fazem profissão de julgar as ações humanas.
Com efeito, mesmo que estas linhas caíssem sob os olhos dos magistrados, elas seriam sem valor para eles, e para mim sem perigo, pela simples razão de que eu sou legal e medicalmente tido por louco. Essa qualidade me dá toda a licença para falar livremente.
A minha loucura é a minha salvaguarda.
Também, à minha chegada aqui, fiz tudo que era preciso para bem frisar o meu caso. Rolei pelo chão, tentei estrangular um guarda, disse disparates com um cuidado escrupuloso e com uma arte que a mim mesmo me enganaria. Não era preciso bem assegurar a minha situação para gozar em paz das vantagens que ela confere?
Pois já o adivinhaste, estou certo. Eu não sou louco, de modo algum, mas fui vítima de uma aterradora aventura, de uma dessas aventuras que a razão recusa admitir e que, entretanto, são verdadeiras, embora excedam o alcance do nosso fraco entendimento. Escutai a minha, e julgai.
A primeira infelicidade da minha vida foi ter nascido pobre; a segunda, que a natureza me tivesse criado preguiçoso.
Meus pais são de boa raça, mas pouco favorecidos pela fortuna. Sem embargo, fizeram-me dar uma excelente educação. Fui, pois, posto em pensão no melhor instituto de Veneza. Jovens de boas famílias o frequentavam. Foi aí que conheci o jovem conde Odoardo Grimanelli, de quem falarei dentro em pouco.
Os nossos estudos foram medíocres e, uma vez terminados, mal e mal os meus, meus pais quiseram que eu escolhesse uma profissão. Nesse momento, a minha maldita preguiça interveio. Ela era invencível, e nisso eu sou um verdadeiro veneziano. Para que ter nascido na mais doce cidade do Universo, se aí é preciso trabalhar como em qualquer outra parte? Veneza, só por si, já era para mim uma ocupação suficiente. Eu gostava de gozá-la no seu presente e no seu passado. Eu passaria de bom grado o meu tempo a revolver os antigos arquivos da sua história, mas, para isso, era preciso o dinheiro de que eu estava extremamente desprovido. Como remediar esta penúria que punha obstáculos às minhas tendências de flâneur1 e amador de historia?
Foi num dia em que refletia nessas dificuldades que a ideia fatal, que me trouxe aqui, atravessou subitamente o meu espirito.
Eu tinha entrado em São Marcos. Sentado sobre um banco, considerava os mármores preciosos e os mosaicos que ornam essa obra-prima das artes.
Todo esse ouro espalhado me hipnotizava e toda essa riqueza coruscante, que faz do interior de uma igreja uma gruta cheia de sortilégios. A essa vista o sentimento da minha pobreza me acabrunhou, quando, de súbito, me lembrei do teor de velhos papéis de Estado que nessa mesma eu havia folheado nos Arquivos. Era um relatório dos inquisidores a respeito de um certo aventureiro alemão, Hans Glucksberger, que pretendia possuir a arte da transmutação dos metais. Ele tinha vindo operar em Veneza em meados do século XVIII e aí havia feito muitos adeptos!…
Nesse momento, uma luz súbita me atravessou o espírito. As abóbadas de ouro de São Marcos puseram-se a girar em minha cabeça e tive um deslumbramento. Visto que esse maravilhoso segredo existira, porque não o encontraria eu? Ele devia ter tido depositários. Devia também ser possível tornar a encontrá-los e obter, a meu turno, a lucrativa iniciação.
O meu partido estava tomado. Obtive de minha família um novo prazo e mergulhei febrilmente no estudo das obras de ocultismo e dos tratados de alquimia. Desde logo, convenci-me de que o poder de fazer o ouro não era por forma alguma uma fábula. Hans Glucksberger o tinha obtido, certamente. Ele devia ter comunicado a fórmula a alguns de seus adeptos venezianos. Esta convicção decuplicou as minhas forças. Continuei as minhas investigações. De repente, a pista apareceu.
Entre os adeptos do alemão, citava-se uma certa condessa Barbara Grimanelli. Esta senhora, de grande inteligência, no dizer dos contemporâneos, havia restabelecido em poucos anos a fortuna de sua família, muito abalada. Era ela quem tinha feito reconstruir o Palácio Grimanelli, e que o havia feito decorar com pinturas a fresco por Pietro Longhi. Para mim, não havia dúvida: a prosperidade súbita da Condessa Barbara era devida à posse do segredo maravilhoso, do qual o seu neto Odoardo devia ser o atual detentor!
Ah, essa condessa Barbara! A sua fisionomia me era familiar! Eu a revia no centro da composição em que Longhi havia representado diversos personagens da família Grimanelli, sentados a mesas de jogo. A cena era divertida e muito viva, com as suas figuras de tamanho natural e a sua decoração enganadora. No meio dos jogadores estava em pé a Condessa Barbara. Era uma mulher alta, de fisionomia dura e altiva. As suas mãos desenrolavam um papel coberto de sinais cabalísticos. Como é que esses sinais não me haviam posto mais cedo sobre a pista?
E a vida que levava Odoardo, desde a sua maioridade, não se explicava subitamente? Era público e notório que o pai de Odoardo, ao morrer, já havia dissipado os seus bens, e, entretanto, há dois anos que este fazia despesas exageradas. O Palácio Grimanelli tinha sido restaurado e reposto no seu antigo esplendor. Odoardo fazia em Londres e Paris custosas estadias. Não provava tudo isso que, por sua vez, ele detinha o segredo da condessa Barbara, de Hans Glucksberger, o segredo maravilhoso que eu queria também possuir?
Pois esse segredo eu o queria a todo preço. Por que recusaria Odoardo partilhá-lo comigo, quando a minha perspicácia havia descoberto a sua existência?
Mas, como chegar aos meus fins? A primeira condição era rever Odoardo. Ora, ele estava nesse momento em Veneza e, no dia seguinte, dirigi-me ao Palácio Grimanelli. Introduziram-me justamente na galeria onde se achava a pintura a fresco.
Como Odoardo tardasse em aparecer, tive tempo de examinar o trabalho de Longhi. Um único personagem interessava-me, a condessa Barbara. Impressionou-me o seu ar de dureza e de ameaça. A sua mão parecia apertar com raiva o manuscrito, aliás sem significação, como que para pô-lo ao abrigo dos indiscretos.
A entrada de Odoardo pôs fim às minhas reflexões. Acolheu-me com amizade. Falou-me na sua recente estadia em Londres e depois interrogou-me amistosamente sobre a minha pessoa. Já me havia eu decidido por alguma profissão? A essa questão, respondi evasivamente; aleguei, para justificar a minha indecisão, o meu gosto pelos trabalhos dos arquivos.
Odoardo ouvia-me com benevolência. Para ele, evidentemente, as viagens, o jogo, as mulheres, eram as únicas ocupações admissíveis. Sem dúvida, eu compreendia isso, mas, entretanto, as investigações eruditas tinham também o seu interesse. Assim, por exemplo, disse-lhe que, ainda ultimamente, eu descobrira curiosos detalhes sobre a sua avó, a condessa Barbara.
Dizendo isto, eu designava o retrato. Odoardo pareceu um pouco embaraçado; depois, rindo ruidosamente, disse:
— Vamos, estou certo de que descobriste algumas estroinices da minha respeitável avó. Ah! Vós outros, os eruditos, sois todos os mesmos. Imagina tu que ultimamente apareceu em Paris uma brochura, em que um jovem investigador francês pretende ter posto a mão sobre uma correspondência, das mais comprometedoras, entrar a Condessa e o aventureiro Casanova de Seingalt.
Ele me olhou de esguelha e eu me pus também a rir
—Eh! Eh! Meu caro Odoardo, isso não me admiraria, e pode muito bem ser que fosse esse Casanova quem iniciasse a tua avó nas manipulações da alquimia e nas operações de magia. Veneza, nessa época, estava cheia de cabalistas. Vinham até do estrangeiro.
Odoardo não ria mais e, parecendo presa de um verdadeiro mal-estar, desviou bruscamente a conversação. Voltou à questão da carreira que era urgente que eu escolhesse. Ofereceu-se, mesmo, para ajudar-me com as suas relações. Se eu tivesse necessidade dele, ele estava à minha disposição. Falando, fazia discretamente tilintar algumas peças d'ouro na bolsinha de prata.
Pobre Odoardo, não era isso que eu queria de ti. O que eu queria era o maravilhoso segredo de transmutação que tu certamente possuías e que eu estava bem-disposto a obter de ti, por bem ou por mal. Não me restava mais senão achar o meio de te arrancar, pela persuasão ou pela violência, a fórmula misteriosa e soberana!
Esses meios eu empreguei muitas semanas a combiná-los. Cada dia passava longas horas a meditá-los na gruta de ouro de São Marcos. Muitas vezes, tomava uma gôndola e fazia-me conduzir aos pontos mais desertos da laguna.
O silêncio dessas águas mudas é propício à reflexão.
Foi uma tarde, em que a gôndola corria ao longo das velhas muralhas da ilha de San Servolo, que eu assentei o plano seguinte: pediria a Odoardo uma entrevista particular e, depois, uma vez fechados a sós, eu saberia bem fazê-lo falar. Eu tinha uma força muscular pouco comum. Estava disposto a tudo para atingir o meu fim.
Foi-me preciso esperar a volta de Odoardo, que tinha ido a Roma assistir a uma representação teatral.
Enfim, o dia fatídico chegou. Odoardo devia receber-me às seis horas. Às cinco horas e meia dirigi-me para o Palácio Grimanelli.
Todas as minhas disposições estavam tomadas, tinha no bolso uma mordaça, sólidas cordas e não me havia esquecido do revólver. Estava muito calmo, e uma única coisa me preocupava. Odoardo me receberia no seu fumoir2, ou na galeria das pinturas?
Eu teria preferido o fumoir, mais isolado, mas saberia arranjar-me na galeria. Fosse como fosse, eu estava seguro do êxito. Odoardo não me oporia grande resistência e, uma vez desvendado o segredo, talvez me perdoasse ainda a sem-cerimônia do meu processo.
Cheguei com esses sentimentos ao Palácio Grimanelli e foi para a galeria que me conduziram.
No alto da escada, o criado, que me acompanhara, retirou-se.
Entrei devagarinho.
Odoardo achava-se justamente em frente à pintura de Longhi, parecendo examiná-la com tal atenção que me pude aproximar, sem que ele notasse a minha presença.
Antes que ele pudesse dar um grito, fazer um movimento, estava amordaçado e estendido no chão. Enxuguei a fronte tirei o revólver e tratei de explicar-lhe o que exigia dele.
A medida que eu falava, Odoardo tornava-se livido. Não parecia me ouvir e mantinha os olhos fixos num ponto da parede.
Maquinalmente, segui o seu olhar. O que eu vi era tão terrível que o revólver me caiu das mãos e me senti paralisado pelo pavor.
Lentamente, mas com segurança, no quadro em que Longhi a havia representado, a condessa Barbara animava-se de uma vida mistérios.
Foi, em primeiro lugar, um dedo que se moveu, depois a mão, depois um braço, depois o outro braço. De repente, ela voltou a cabeça, avançou um pé e depois o outro. Vi agitar-se o seu vestido. Sim, a condessa Barbara deixava a parede em que, há cento e cinquenta anos, a sua imagem imóvel permanecia prisioneira das tintas e dos vernizes.
E não havia dúvida possível. No lugar que ela ocupava na pintura, uma larga mancha branca se desenhava.
A condessa Barbara vinha defender o segredo, pelo qual, sem dúvida, outrora ela vendera a alma ao Diabo.
Agora ela estava a dois passos de mim. De repente, senti sobre o ombro a sua mão pesada e glacial, enquanto seus olhos pilhavam-me imperiosamente, longamente…
Quando voltei a mim, estava deitado sobre uma cama, à qual me prendia uma sólida correia.
Num canto do quarto, Odoardo conversava com um senhor de barba grisalha. Era o excelente diretor do asilo San Servolo.
À minha cabeceira, meu pai e minha mãe choravam. Sobre uma pequena mesa estavam a mordaça, as cordas e o revólver.
Felizmente eu seria, desde então, considerado como louco, sem o que essas provas materiais poderiam ocasionar-me muitos desgostos.
Não importa. Estive bem perto de saber o grande segredo e, sem essa maldita Condessa Barbara…”
*
Eu havia esquecido, há muito tempo, entre os meus papeis, as confidências do prisioneiro da ilha San Servolo, quando, o mês passado, vim passar uns quinze dias em Veneza.
Um dia, ao passar pela praça de São Marcos, encontrei o meu amigo Jules d'Escoullac.
— Venho ver — disse-me ele — as pinturas a fresco do Palácio Grimanelli, cuja compra me propuseram. O conde Grimanelli morreu recentemente em Londres e os herdeiros querem vender todas as pinturas de Longhi. São do gênero das do palácio Grassi. Grimanelli! Esse nome me chamou a atenção. Onde já o tinha ouvido pronunciar?
Segui o meu amigo d'Escoullac que acrescentava:
— Somente é aborrecido que a pintura esteja deteriorada; falta-lhe um personagem. Parece que o acidente data de uns vinte anos. Alguma fenda da parede. Estes venezianos são tão descuidados; e, depois, o conde não morava mais no palácio!
Chegamos ao Palacio Grimanelli, que está situado em San Stae, perto do Grande Canal. O guarda nos fez subir. A pintura de Longhi cobria todo um painel da galeria.
Representava os personagens sentados a mesas de jogo. No meio, havia, com efeito, uma grande mancha branca. É onde estivera a imagem da condessa Barbara… E, enquanto Jules d’Escoullac falava uma algaravia de italiano com o guarda, eu experimentava, diante desse curioso acaso, uma singular perturbação e mal-estar.
Fonte: “Leitura para Todos”/RJ, edição de novembro de 1919.
Ilustrações: Maurice Quentin de La Tour (1704 – 1788).
Fizeram-se breves adaptações textuais.
Notas:
1Boa-vida.
2Ambiente adequado ao consumo do tabaco.
amigo, vou ler o conto. Quando sobra um tempo, estou sempre lendo algo novo no site CDT, Contos de Terror. Por aqui o frio está nos seus estertores. Cheguei, com a friagem, a pegar vários resfriados. Tomara que venha o verão logo.
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