VISÃO DE ALÉM-TÚMULO - Conto Clássico Fúnebre - Amédée Gouet

VISÃO DE ALÉM-TÚMULO

Amédée Gouet

(181? – 1869)

Tradução de autor desconhecido do séc. XIX



Certa noite, entrou no meu quarto um amigo que morrera há seis meses.

Eu assistira eu ao seu enterro. Tinha-lhe lançado água benta sobre cova, ouvira o caixão do pinho ressoar com as lúgubres pás de terra.

Boas noites — disse-me ele, satisfeito como um Roger-Bontemps1. — Como passas?

Bem… E tu? — respondi, procurando resistir ao abalo de surpresa que esta aparição me causava.

Melhor, multo melhor, obrigado — tornou o meu amigo. — Desde que faleci, já não tenho as fúnebres ideias que me tornavam insuportável a vida. O meu cérebro aclarou-se e, por consequência, tornou-se melhor o estômago, e o peito excelente, como um verdadeiro saxofone. É mesmo uma maravilha! Não é sem razão que dizem que a morte cura todos os males.

Desatou a rir e as suas estrondosas gargalhadas fizeram tremer as vidraças, como para atestarem a poderosa sonoridade do instrumento que lhe fazia as vezes de peito. Mesmo Sax2 teria estremecido.

Era fixo o meu olhar, como o que Kean3 empresta a Macbeth diante do espectro de Banquo.

Venho pedir-te um obséquio — continuou o meu amigo. —Vou casar-me.

Casar-te? — exclamei, como se estivesse sonhando.

Sabes como eu amava Carolina.

Na verdade foi por ela…

Que morri. Pois bem, caso-me com a sua irmã Julinha.

Porém, não a amavas…

Mas tenho o seu amor. E ocorreu-me a sábia reflexão de que devemos antes casar com a mulher que nos ama. Essa porá os seus cuidados em fazer-nos feliz, enquanto a outra, pelo contrário, nos roubará a felicidade. Esta é uma reflexão de além-túmulo. O cheiro da mortalha, meu amigo, inspira a sabedoria.

Eu olhava, escutava e respondia com a cabeça, inundado de suor, como debaixo de um pesadelo.

Faz-me o favor — disse-lhe, passando a mão pelos olhos —, de acabar com tão odioso gracejo. Quem és, senhor?

Chegou então ao meu amigo a vez de encarar-me com pasmo. Em seguida, entregou-se a uma explosão do riso.

Ah! Ah! Muito bem, otimamente! Tomas-me por um fantasma, por uma alma do outro mundo; pelo irmão da Freira Ensanguentada4, ou por Lorde Ruthen, o vampiro de Byron5. É natural…

Estávamos sentados, cada um do seu lado da lareira. Um lampião, coberto com um quebra-luz de papel verde, alumiava o quarto, e parecia-me ler no rosto do meu amigo uma expressão de ironia. Quanto ao mais, estava o defunto mais gordo, tinha a cor rosada, os olhos vivos e o ar alegre e feliz.

Tirou do bolso uma charuteira, abriu-a e ofereceu-me um charuto ortodoxo que, contudo, recusei por um gesto.

Antes de reclamar o teu auxílio — tornou ele —, é meu dever contar-te os sucessos e impressões da minha viagem à habitação dos mortos, a cujas praias tiveste a bondade da acompanhar-me.

Acendeu o charuto, lançou no quarto alguma baforada de alvo fumo e prosseguiu:

Lembras-te de que eu tinha o caráter melancólico. O meu nariz, como o do padre Aubry6, farejava a tumba. Eu falava em uma linguagem fúnebre; Young7, o autor das Noites, o poeta dos cemitérios, ao pé do mim, era um folgazão autor de entremeses.

Contudo, eu amava Carolina, a mais indolente e leviana entre as jovens. Era uma borboleta, uma ave sempre cantando, correndo e saltando, com uma vivacidade e travessura tão encantadoras que fascinavam. Como podia eu, triste necrófilo, amar este capricho encarnado, esta fantasia ardente e folgazã, em quem a vida transbordava de um modo extravagante? Não o sei explicar. O amor não é a lógica. Adorava-a como Alceslte, o misantropo, adora a garrida Celimene, sem saber porquê, e talvez que em virtude da lei providencial dos contrastes; a luz era ela, eu a sombra; eu era a dor, ela a alegria.

Fui ter com o pai de Carolina, médico velho e um pouco surdo, mas muito sábio, duplicado perigo para mim. Habitava em Chailllot, numa casa esquisitamente construída e cercada de altos muros, o que me não atemorizou muito. Magro, de elevada estatura, tinha ele um ar de senil candura, em que me fiei demais.

Levava por apresentante uma carta da minha avó, que lhe entreguei e que ele abriu. Rezava assim, segundo depois o soube:

Prezado doutor.

É portador desta meu neto, vítima de uma alienação do coração que só vós podeis curar. Ele vos explicará a causa, e, conhecida ela, espero que de boa vontade empregareis os vossos esforços para lhe restituir o sossego, isto é, assegurar-lhe a felicidade.

Creio que a vossa provada estima não me recusará isto”.

Fora no colégio onde estava minha irmã quo eu conheci Carolina. Encontrara-a depois na sociedade, onde a levava sua tia; mas era pela primeira vez que via seu pai, que só se entregava à ciência.

Senhor — disse-lhe eu, ignorando então o conteúdo da carta —, a minha avó vos comunicou o terno afeto que aqui me traz. Ela não pôde, porém, exprimir-vos a violência desta afeição que dia e note me persegue, e que ora me arrouba, ora me faz sofrer dores cruéis, conforme a esperança ou o desalento me dominam.

O velho médico, que chamaremos Jacob, fitou-me no rosto com a atenção de um frenologista alemão, mandou-me sentar, e tomando-me a mão, disse-me:

Meu jovem amigo — disse ele —, em vosso rosto estão pintados os sinais evidentes de agitações de que me fala a sua avó. Ficareis em minha casa.

Chegará, pois, a vossa bondade a advogar minha causa, perante…

O tratamento da casa é suave. Com tranquilidade, maravilhosos resultados serão obtidos, sobretudo se não é crônica a afecção mental.

Levantei-me de súbito com o repente de um autômato, mola foi locada por mão imprudente.

Zombais de mim — exclamei eu, estremecendo de surpresa.

Frio e grave como uma estátua, o velho ergueu-se.

Chegastes a tempo — disse ele. —Vamos combater esse acesso.

Dizendo isto, aproximou-se da chaminé, e puxou o cordão do uma campainha. Semelhantes aos eunucos de um sultão, entraram em silêncio três robustos filhos da Auvergne vestidos de enfermeiros.

Quis protestar, mas agarram-me, como os hércules do monte d'ouro agarraram Lychos, e o meu protesto foi abafado nas ondas de uma vasta piscina, onde me lançaram.

Dominava-me o furor, e estrebuchava como o diabo numa pia de água benta. Lançaram-me sobre a cabeça terríveis aspersões e as cataratas d’água eram temperadas a trinta graus da gelada. Não podia falar. Tiraram-me, então, do banho, despiram-me e ditaram-me numa boa cama.

À noite, Jacob tirou-me duas tigelas de sangue.

Quando acordava no dia seguinte, ouvia a voz de minha avó:

Pois bem, doutor — dizia ela num tom satisfeito—, vistes meu neto? Um bom moço, não é assim?

Completamente, minha senhora — respondeu Jacob, abrindo a porta do quarto e mostrando-me deitado no leito. Demais, eram desnecessárias as indicações de vossa carta para que eu diagnosticasse o mal.

A minha carta? — exclamou a bondosa senhora, que não podia acreditar no que via, nem no que ouvi. — A minha caria dizia-vos que ele estava louco do amor, e nada mais.

Bem o sei — prosseguiu a doutor, sem a compreender. — E sobe a ponto tal, que vós mesma não o imaginais. Olhai bem o seu rosto exangue e açafroado. Este jovem sofre de uma afecção biliosa, que poderia degenerar à monomania furiosa. Ontem foi atacado de uma crise terrível.

Desgraçado! — exclamei, sentando-me. — Vós é que estais doido!

Nada mais pude acrescentar. A custo chegava o fôlego aos meus lábios, porque estava profundamente enfraquecido.

Vede, vede! — prosseguiu Jacob com a mesma tranquilidade de espírito, que às minhas palavras o seu olhar perturbado se ilumina, e os seus lábios desmaiados estremecem. — Observai a mobilidade convulsiva do seu rosto. Ele ouve, compreende e irrita-se. Bons sintomas, contudo.

Minha avó, pálida e imóvel, olhava-me com espanto. Tê-la-iam tomado por uma estátua da mulher de Ló.

Meu pobre filho! — murmurou ela. — Oh, ireis curá-lo, não é assim, senhor?

Jacob tinha o ouvido rebelde. Para que respondesse com acerto, tornava-se preciso falar-lhe cm voz alta. Aquele órgão era uma emboscada em que só podia, como no meu caso, por exemplo, ver estrebuchar a sua razão; porque o médico, muito teimoso na sua qualidade de sábio, condenava-vos, não pelo que se lhe dizia, mas pelo que ouvia.

Ele dorme assaz, minha senhora — respondeu o pai de Carolina à minha avó. — Sem dúvida cuidando que ela lhe pedia que me adormecesse.

Ah! Ah! Ah! — exclamei, rindo de cólera triunfante. — Ele é surdo! É surdo! Livre-me das extravagâncias deste enfermo, minha avó, em nome do céu! É erro dizer que esta é uma casa de saúde. Ao contrário, é a habitação da loucura.

Quis explicar à boa senhora como fora vítima da enfermidade científica e auricular do doutor, que, ao pedido que lhe ia fazer da mão se sua filha, respondera-me com um banho e uma sangria. Mas, fraco e vivamente comovido como estava, só podia balbuciar. Trêmulos de febre, os meu lábios retalhavam as frases, cortavam as palavras e misturavam as sílabas. Tornei-me incompreensível irritando-me contra a minha requisitória. O doutor escutava-me, grave e impassível como a ciência, e a minha tentativa de rebeldia parecia-lhe um novo sintoma de afetação mental.

Minha avó chorava; e saiu muito persuadida de que eu enlouquecera.

Contudo, no dia seguinte, enviou-me seu médico, que eu já conhecia, e que recebi como um libertador. Examinou-me e interrogou-me. Eu já tinha a recobrado o sossego. Respondi-lhe, pois, com uma lucidez que o surpreendeu e contei-lhe minha aventura. Interrogou, então, Jacob sutilmente e o verificou que o velho sábio era verdade tinha dificuldade em o ouvir.

Enganou-vos o vosso diagnóstico, prezado doutor — disse-lhe ele. — Este senhor não está doente, graças a Deus! Estou autorizado de tirá-lo do vosso estabelecimento.

Os lábios de Jacob contraiu um sorriso desdenhoso e os seus olhos faiscaram. E tomou nas suas mãos a minha cabeça encrespada, tão de súbito e imperiosamente que me atordoou.

Vede, jovem — disse ele ao seu colega. — Será este um crânio normal?

E, dizendo isto, amolgava-me a cabeça e enterrava-me as unhas no tecido capilar.

Arreda, selvagem! — disse eu, soltando-me de suas mãos.

Demais — prosseguiu ele tranquilamente —, não é necessário consultar a carta em relevo das faculdades intelectuais para conhecer a idiossincrasia de alguém. Basta ver-lhe as feições. Olhai.

Eu tinha o rosto alterado pela cólera e pela dor e estava prestes a enfurecer-me. Contudo, acalmei-me, temendo fornecer novas armas contra mim.

Vós me magoastes, senhor — disse eu. — Sou a maior doçura possível.

Este moço não está doente — repetiu o médico de minha avó. Vou levá-lo comigo.

Jacob não disse uma única palavra, nem objetou. O seu rosto pálido lembrava o de Galileu perante o concílio.

Neste momento ressoou debaixo da janela do quarto uma voz suave. Era a voz de carolina, que eu não via há muitas semanas. Levado não sei por que vertigem, saltei fora do leito e corri para a janela. O médico quis deter-me, mas empurrei-o e caí extenuado no tapete.

Este impulso fora inconsiderado. O animal, como diz de Maistre, agira antes que a alma tivesse tempo de se opor à sua impertinente tentativa.

Recuperados os sentidos, estava completamente senhor de mim. Devia corar e desculpar-me da minha extravagância. Mas eu me lembrei do roçar noturno de um vestido de seda e entreguei-me a divagações como Bruto, batendo no médico que me queria levar para casa e apostrofando Jacob de insensato. Alcancei um triunfo extraordinário. O médico reconheceu plenamente o seu erro e e declarou-me formalmente doido. O pai de Carolina de há muito estava convencido disto e aceitou a declaração do seu jovem colega com a altiva modéstia da superioridade triunfante.

Deram-me, então, mais banhos. Ai, amor! É preciso que o teu fogo seja bem grego para ter resistido ao tratamento hidroterápico do Dr. Jacob. Se lhe tivessem enviado o incêndio de Moscou, tê-lo ia, sem dúvida, apagado. E, para não me apagar, asseguro-te que me foi preciso metamorfosear-me em Tritão. Estava todo o dia na água e sentia-me nascerem-me barbatanas nos pés, enquanto o dilúvio me caía sobre a cabeça. Durou isto quarenta dias, como na Bíblia. Quarenta dias de chuva, que, por felicidade, eram separados por outras tantas noites — de Sol.

Vou explicar-me.

Jacob e sua família prodigalizam-me os mais extremos cuidados. Ora, sempre à meia-noite — a hora das almas do outro mundo — eu ouvia o sussurro feminino de que já falei e, na escuridão do quarto, via despontar uma sombra branca.

É ela — dizia então comigo.

A princípio, continha a respiração, ocultava o fogo dos meus olhares debaixo das pálpebras semifechadas, e afetava a postura adormecida de Endimião visitado por Diana. A sombra via se me faltava alguma coisa ao meu lado, preparava — sem fazer ruído — as minhas beberagens e, depois, ajoelhava-se junto ao meu leito, erguia as mãos e orava.

Carolina — disse-lhe eu numa noite —, eu te amo!

A sombra estremeceu, ergueu-se e saiu a chorar.

Na noite seguinte, voltou. Fingi que eu sonhava e dirigia-lhe, assim, com a capa do sonho, todos os ditirambos amorosos, capazes, desde Adão, de fazer palpar o coração da donzela. Ela chorou ainda, mas a ponto de despedaçar a alma.

Formosa Carolina — disse eu —, não chores mais, nem creias que jamais estive doido, graças a Deus. Eu vim aqui para pedir a tua mão e me faço de demente para ficar junto a ti, esperançado em que ganharei o teu amor, meu único desejo na terra. Perdoa-me este ardil. Eu amo-te e, visto que me tens amor, confia os nossos interesses à tua tia e, ainda que for doido, será de alegria!

Em vez de abrandar, esta declaração aumentou as lágrimas da sombra. Surpreendeu-me isto, e muito mais porque, durante o dia, andava Carolina sempre satisfeita e contente. Desde manhã até a noite, ouvia cantar e rir esta jovem, que de noite me aparecia como uma alma penando, com tão graciosa inteligência e gargalhadas tão francas e sinceras que ninguém poderia, com razão, atribuir-lhe um pesar. Eu a via perpassar debaixo das minhas janelas e correr pelo jardim aspirando o perfume das plantas, a frescura do ar e a embriaguez das suas dezoito primaveras, mas estouvada e louca do que uma bacante. Quando me via, desviava os olhos e, um dia, em que a encontrei no corredor, fugiu de minha aproximação. Pelo contrário, Júlia chegou a mim e perguntou-me se estava melhor.

Carolina era alta, esbelta e leve como uma sílfide. Tinha os cabelos louros e os olhos verde-mar como os da Vênus Anadiômene. Personificava a fantasia feliz. Jamais um desassossego lhe emurchecera uma rosa do rosto. Júlia, trigueira e melancólica, fazia ainda sobressair o ar radiante de sua irmã.

Julguei um momento que era amado por uma sonâmbula, comparando a Carolina da noite com a do dia. Não podia acreditar na dissimulação.

Talvez —dizia eu comigo — vem ela chorar e orar na cabeceira do meu leito sob a impressão do sonambulismo.

Impaciente por penetrar neste mistério, pedi-lhe uma noite que revelasse o nosso amor à sua tia — sua mãe já morrera. A tia veio ter comigo ao quarto. Narrei-lhe com a maior franqueza a minha primeira visita ao doutor e os acidentes extravagantes que depois se tinham dado. A digna senhora conhecia-me e conhecia minha família, e de há muito que adivinhava o meu amor. Satisfeita com as minhas revelações, tomou-me as mão com amizade, sorrindo: “Confiai em mim.”

Nesse mesmo dia, operou-se uma mudança no procedimento de Carolina. Não mais a ouvi cantar nem rir, nem voltar ao jardim. Caminhava com circunspecção, e parecia que voara a sua alegria de passarinho.

Minha avó, a quem dei parte de minha cura, dirigiu-se a Jacob com o pedido oficial.

O velho sábio respondeu-lhe:

Minha senhora, não trato dos negócios domésticos. Fale com a tia…

As suas senhoras contrataram o casamento.

Estava já pouco mais ou menos curado da doença de médico e foi-me permitido cortejar Carolina. Íamos passear ora ao bosque, ora ao Sena, onde tinha um bote que comprara.

Quão formosa é a esperança, e quão ditoso o tempo que se passa à espera de uma felicidade! Mas, também, que esquisito jogo de loto que é a vida!

Tínhamos saído um dia a passear no nosso bote e vogamos para cima das ilhas dos Cisnes, quando um acidente vulgar, à passagem de um barco a vapor, nos fez balançar desordenadamente. Carolina, que estava em pé, como uma inquieta borboleta à proa, perdeu o equilíbrio e caiu ao rio. Lancei-me em seu socorro e fui bastante feliz em poder conservá-la à tona da água até que alguns marinheiros vieram tirá-la das minhas mãos. Quebrado pelo cansaço, desfaleci então, e desapareci na corrente arrastado para o fundo.

Que me sucedeu, então? Posso dizê-lo, porque conservei todas as impressões deste passeio fluvial.

Envolvido e arrastado pela corrente, pensei primeiramente na piscina de Jacob.

Ah! — disse comigo mesmo. — Pode a hidroterapia ser uma excelente coisa; contudo, não pretendo abusar…

Tentei subir à dona d’água. Ouvi distintamente as vozes dos marinheiro e os gritos de desespero de Júlia e sua tia. Mas todo o meu desassossego era por Carolina, se quem que pensava menos no perigo que ela tinha corrido do que nas consequências da imersão.

Tem os vestidos molhados — pensei eu. — Como é que os mudará?

Este era o meu cuidado e a minha preocupação fixa. A ideia de que ela tinha no corpo os vestidos molhados, e não podia mudá-los, tomava-me o espírito e atormentava-me como uma tenacidade pueril.

Tirado isto, não sentia dor aguda, nem temor, nem consciência de minha situação, mas lutava instintivamente contra o abismo, desfalecido e como embriagado. A água produzia nos meus ouvidos o ruído de uma trombeta, ou antes de diabo chinês. Era um zumbido surdo que entorpecia. Através do meio envidraçado em que estava imerso, via o fundo do rio; e, erguendo os olhos, apercebia por cima os batéis à minha procura, e que passavam por sobre a minha cabeça. Era um sonho, esquisito e fantástico, cuja impressão, cheia de confusão e entorpecimento, não deixava de ter encanto e doçura.

De repente, senti levantar-me; um vago raio de luz feriu os meus olhos, mas ouvi quase logo vozes que diziam:

Ah, está morto! Pobre-diabo! Teso como um pau. Picai-o. Um alfinete!

Em seguida, depois de uma pequena pausa, murmuraram:

Está morto, bem morto…

Ficara num estado singular. Os membros tinham a rigidez e o firo de um cadáver. A sensibilidade e a elasticidade não funcionavam: era uma completa catalepsia. Percebia, contudo, os sons, e via o que se passava junto de mim como através de um nevoeiro. Mas era em vão que me esforçava por mover os braços, as pernas, os lábios e dar sinal de vida; nada, era impossível. Era como se estivesse encerrado numa estátua de mármore.

Levado para casa do doutor, submeteram-me, sem resultado, ao tratamento enérgico dos asfixiados. Envolveram-me, depois, numa mortalha, acenderam tochas nos quatro cantos da cama, colocaram-me no peito uma cruz de pau preto e ouvi a tia recitar orações de defuntos, enquanto que uma jovem, sem dúvida de joelhos ao pé dela, soluçava. Esta jovem era Carolina, pelo menos assim o julgava. Falou, porém, e pareceu-me reconhecer a voz de Júlia.

Os soluços e as orações duraram por toda noite e dia seguinte. Era uma sena no gosto de Carlos V, mas que pouco me divertia…

Veio, enfim, o enterro. Meteram-me no ataúde e levaram-me para o carro mortuário. Atravessei Paris, sorrindo interiormente com a lembrança das numerosas barretadas que ia colhendo pelo caminho. Sabia eu que perfeitamente que essas cortesias não se dirigiam a mim, mas que eram homenagens ao temor misterioso da morte, em um reconhecimento instintivo da imortalidade, mas, nessa fase palingenésica, lisonjeou-me aquilo! Tu verás.

O enterro chegou ao cemitério e desceram-me à cova. Ter-me-iam comovido, sem dúvida, se não sofresse então uma dor agudíssima, os derradeiros cânticos da igreja e o ruído da terra caindo sobre o ataúde. Fui sempre amante da música e minha sensibilidade musical, estendida até ao eretismo, fora irritada por uma nota desafinada que um padre embriagado soltara.

Oh! — dizia eu comigo. — O miserável não se embriaga, decerto, senão com vinho azedo! A sua voz parece-se com o rangido de uma porta de aço sobre o vidro.

E refleti, então, apaixonadamente, na influência da qualidade do vinho sobre o timbre de voz. Desprendeu-se, contudo, o meu pensamento, graças a Deus, pouco a pouco, levado para fora do círculo de misérias humanas da vida, porque, se meu corpo estava morto, ou perto disto, vivia a minha alma, se bem que presa comum uma luz numa lanterna furta-fogo, mas procurando soltar-se da prisão, e tendo conseguido já em parte essa tentativa.

Eu sentia desenvolver-se-me as faculdades e adquirir e, meus sentidos nova penetração sobrenatural. Abandonado o corpo, não é a alma a borboleta saindo de crisálidas, dir-se-ia antes o éter que se evaporava do frasco partido. Retido como prisioneiro que, encostado à grade da prisão, mergulha a vista nos esplendores do horizonte, chagava eu a ver do fundo de minha cova a magnificência de mundos desconhecidos. Transportava-me em pensamento de um ponto ao outro, com uma presteza que podia ser para o fluido elétrico o que é para a locomotiva dos caminhos de ferro. Entregava-se a minha vista, livre de todo o obstáculo formado pelos olhos, a percorrer o espaço com a rapidez da luz! E percebia os mais leves ruídos a distâncias enormes, porque a orelha não impedia já ao ouvido as percepções. Tinha, para assim dizer, uma espécie de intuição de todas as coisas e sentia-me tomado de uma beatitude extraordinária.

No entanto, rebentara por cima de mim uma furiosa tempestade que dispersara os convidados à cerimônia do enterro e, até mesmo, os coveiros encarregados de atulhar a cova.

A chuva caía em torrentes e as faíscas abalavam a atmosfera. Era um abalo geral e um estrondo capaz de despertar os mortos. Depois de uma terrível explosão, que desfez em pedaços um teixo que espalhava os seus ramos por sobre a morada de um inquilino vizinho, parece-me que soltei um grande brado ao céu. Um anjo, ajoelhado à beira da campa, e orando debaixo daquela tempestade, ouviu-o…

Exumaram-me. Abriram o ataúde, e eu estava vivo.”

É este anjo que eu devo desposar — prosseguiu o meu amigo, o mesmo que, durante a noite, vinha chorar e orar no meu quarto, enquanto Carolina, embriagada da sua beleza, dormia o sono da rosa. — Disse-te já que era Júlia.

Esta maravilhosa história de fantasma cativara-me a atenção.

E o que esperas de mim? — perguntei, apertando a mão do ressuscitado.

Que te prestes a afirmar que eu não morri. Desejo casar-me e opõem-me a minha certidão de óbito, acrescentando que um morto não tem o direito de desposar um vivo. Ando arranjando testemunhas e lembrei-me de ti.

Não há dúvida alguma.

No dia seguinte, fui testemunhar a identidade do meu amigo, a quem desejei toda a felicidade.

Obrigado — respondeu-me ele sorrindo. — Sou feliz e estou bem de saúde desde a minha viagem além-túmulo, na qual descobri que a morte é a vida.



Fonte: “Diario de Pernambuco”/PE, edições de 14 a 16 de novembro de 1865.

Fizeram-se breves adaptações textuais.



Notas:

1 Pessoa alegre, divertida, brincalhona.

2Alusão ao valão Antoine-Joseph Sax, mais conhecido por Adolf Sax (1814 - 1894), inventor do instrumento que leva o seu nome.

3 Edmund Kean (1787 – 1833), ator shakesperiano inglês. Macbeth e Bânquo são personagem da tragédia Macbeth, escrita entre 1603 e 1607, por William Shakespeare (1564 – 1818).

4 Alusão a um conto de Charles Nodier (1780-1844).

5 Na verdade, de John William Polidori (1795 – 1821), escritor inglês, tio do pintor Dante Gabriel Rosseti (1828 – 1882).

6 Personagem do romance Atala, de François-René de Chateaubriand (1768 – 1848).

7 Edward Young (1683 – 1765), poeta inglês.

 

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