A CAUSA DE UM HOMICÍDIO - Conto Clássico de Crime - J.-H. Rosny
A CAUSA DE UM HOMICÍDIO
J.-H. Rosny
[Joseph-Henri-Honoré Boex (1856 – 1940) e Séraphin-Justin-François Boex (1859 – 1948)]
— Agora já posso confessar — afirmou Miguel Bellenza — que não matei o Dr. Vallagne num acesso de cólera, nem que obedecesse ao império de algum ciúme irresistível, muito menos ainda porque julgasse a minha honra ofendida. Entendamo-nos, porém: não digo que não tivesse passando um momento de grande raiva, que o ciúme não de mordesse as entranhas e que não me sentisse ferido em minha honra marital. Mentiria. Sofri imensamente. Ms não sou um impulsivo e o assassinato me repugna, me causa horror.
Decorrido o primeiro momento de estupefação, pude reaver a serenidade, apesar das angústias por que havia passado; raciocinei (sou daqueles que raciocinam no próprio cadafalso). E, se o meu caso fosse um caso extraordinário, é mais que certo que me teria tentado em recorrer à justiça: possuía provas que me garantiam o divórcio e, ademais, minha mulher não se oporia a isso.
Destarte, tudo se passaria limpamente, tudo estaria esquecido e, dentro em breve — tenho a mais íntima convicção —, encontraria na vida de solteiro o mesmo encanto que gozara antes de casar-me, visto como, a falar verdade, não estava talhado para a aventura matrimonial e tenho a alma de um celibatário. Meu casamento foi uma cabeçada.
Sim, haveria simplesmente pleiteado o divórcio. Matei porque o cúmplice era um médico.
Lembra-me, nos seus menores incidentes, o dia do crime. Levantara-me de manhã, como de costume. Não tinha nenhuma suspeita, sou o menos desconfiado dos homens. É claro que devia estar avisado, há muito tempo, pela atitude de minha mulher, pois já não era aquele pequena Solange que conhecera tão expansiva e tão leal. Tornara-se reservada, fria, mentirosa e equívoca. Estava presa naquela necessidade de mentir por mentir que caracteriza a doença de adultério num tão grande número de mulheres.
Tratava-me com uma espécie de desprezo medroso que muito me penalizava.
Enfim, saía frequentemente, desesperadamente, e voltava com uns olhos por demais reveladores, e, às vezes, com os cabelos tão mal-arranjados que, na verdade, era preciso que eu fosse uma santa criatura para não fazer um inquérito. Benevolamente, atribuía isso à sua doença nervosa — essa doença obscura e fugidia para a qual Vallagne havia inventado toda a sorete de tratamentos cabalísticos.
No dia do crime, pois, não pensava a mal — fazia, tranquilamente, uma página de estatística no meu gabinete — quando uma empregada de quarto irrompeu, furiosamente, sem bater a porta, e mediu-me dos pés à cabeça, com olhares de vendetta córsega, bradando:
— Acabo de ser despedida pela senhora… Pôs-me no olho da rua! Se o senhor não é uma besta, deve fazer-lhe outro tanto.
— Tomei os meus grandes ares, meus ares de oficial territorial, mas a mulher, erguendo os ombros com desdém, atirou-me quase em rosto um pacote de cartas, escarnecendo:
— O senhor fará bem de não passar debaixo da porta São Diniz!
E fugiu.
Tive veleidade, um momento, de dar tudo ao desprezo. Cheguei a pensar que um homem de educação não deve violar os segredos da correspondência.
Mas isso só se vê em romances. Na vida, estes preceitos são de um todo perfeito. Li, pois, com intrepidez, toda aquela papelada, que me contou, com todos os pormenores, os amores de minha mulher e do seu médico. Não vou demorar-me em plantar-vos o meu estado de alma. Este amálgama de abjeção, de furor e de desespero é por demais conhecido; são muito conhecidas também as pequenas reações em que um homem enganado — se possui as cartas — se compara a César, a Mollière e a Napoleão, cujas companheiras foram copiosamente visitadas pelo Espírito Santo.
Esbocei, naturalmente, alguns gestos assassinos. Anatole France conta-nos que o mais pacífico dos filósofos — quero dizer M. Bergereth — sentiu voltar em si o homem dos bosques diante do canapé revelador.
Esbocei, pois, algumas boas cenas de carnificina — mas, de fato, guardei um sólido império sobre mim mesmo. Somente fui, pouco a pouco, assaltado por uma ideia fixa: Vallagne era médico e, de mais a mais, o médico da família. Tratava de mim, tratava de meus filhos, tratava da própria Solange. Vinha à nossa casa sob os auspícios da mais sagrada e a mais santa das missões. Em verdade, que é o padre, que é o advogado, que é o notário, ao lado do médico, revestido de um poder sem limites sobre o mais íntimo de nosso ser?
Se existe alguma honraria suprema, se há um pacto de absoluta lealdade, não é aquele que resulta deste simples fato que um homem se encarrega da vida dos seus semelhantes — que os nossos males os mais secretos lhe são revelados? Que esse homem abuse de seu poderio é a mais covarde das prevaricações.
Seria demasiado longo descrever-vos a intensidade trágica que estas reflexões tomaram-me no meu espírito.
Posso afirmar que dominaram todo o resto — e foi, levados por elas que cheguei à convicção de que devia matar o Dr. Vallagne.
Uma vez esta resolução tomada, tornei-a irrevogável e permaneci muito calmo.
Minha mulher havia saído. Tinha feito constar que iria almoçar em casa de sua mãe. Não tive, pois, que suportar uma presença odiosa para mim: pude tomar à vontade as minhas disposições. Possuía um revólver e isto tornou-as, em suma, facílimas. Bastou armá-lo, tomar um carro e ir ter com Vallagne.
Cheguei no momento em que acabava de almoçar. Recebeu-me imediatamente e, se me não engano, estava perturbado. Não tive tempo de examiná-lo, porque não perdi um minuto sequer em palavreados vãos. Apenas achei-me em sua presença, aportei-lhe a arma para o peito num gesto seguro e rápido. Ele teve um movimento de recuo, quis falar, mas a pequena máquina já se lhe havia antecipado… Falou seis vezes. Vallagne alçou os braços, rodou sobre si mesmo e abateu-se sobre o tapete. Apenas pôde suspirar um ou duas vezes.
*
Perante a Justiça a minha atitude foi perfeitamente hipócrita. Persuadido que defendia uma causa que escapava a qualquer interpretação jurídica, julguei que minha defesa devia se conformar às circunstâncias. Consegui mistificar os juízes, mistifiquei os jurados e mistifiquei o público. Todos acreditavam que havia cedido a um acesso violento de ciúme, todos viram em mim o marido alucinado pela injúria que lhe foi feita.
Eu fui absolvido unanimemente.
Como não se pode ser julgado duas vezes pela mesma causa, ouso declarar agora, e acho bom fazê-lo, que só matei Vallagne porque era médico.
Fonte: “Correio da Manhã”/RJ, edição de 18 de agosto de 1903.
Imagem: P.S./Perchance.
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