A TROCA - Conto Clássico Cruel - Emilia Pardo Bazán

A TROCA

Emilia Pardo Bazán

Tradução de Paulo Soriano




De repente, ao entrar no bosque, o cão latiu furiosamente, e Raimundo, vendo que surgia por dentre os arbustos uma figura que lhe pareceu sinistra, instintivamente lançou mão de sua carabina carregada. No entanto, tranquilizou-se quando ouviu o homem que assim aparecia, murmurando com uma voz ansiosa e suplicante:

Senhorzinho, pela alma de sua mãe…

Raimundo fez menção de vasculhar o bolso; mas o homem, com um movimento a que não faltava dignidade, conteve-o. Não era estranho que Raimundo tomasse aquele indivíduo por um mendigo. Ele usava roupas, se não andrajosas, puídas e remendadas, e tamancos muito gastos. Seu rosto estava curtido pela intempérie, avermelhado e seco; e seus olhos lacrimejantes, de pálpebras flácidas, e seu rosto esgotado e famélico traíam não apenas a sua idade, mas a miséria profunda.

O que queres? — perguntou Raimundo, num tom frio e peremptório.

O que quero? Quero… que eles não nos deixem morrer de fome, senhorzinho. Pela saúde de quem mais amas! Pela saúde da senhorita e do menino que acaba de nascer! Eu sou João, o oleiro, que leva uma barbaridade fazendo telha lá no bosque, senhorzinho…

O meu genro me ajudava, mas Deus levou-o para si, e fiquei com a filha grávida e, eu, ancião, sem forças para amassar o barro... E porque me atrasei no pagamento da renda, querem me tirar a olaria, senhor, a olaria, que é o nosso pão e o nosso socorro!

Raimundo deu de ombros. O que ele tinha a ver com essas bagatelas de pagamentos e cobranças? Eram coisas para o mordomo. Que lhe deixassem em paz, caçando e divertindo-se! A única coisa que lhe ocorreu responder ao pobre-diabo foi uma objeção:

Se, a final de contas, não podes trabalhar, de que te adianta a olaria?

Senhorzinho, pelas almas... Escuta a santa verdade ... Procurei um rapaz que me ajudasse, e já o contratei a quatro reais, e, mesmo que suemos a alma — eu a gerenciar, ele a amassar e cozer —, pagamos, lá pelo Ano Novo, somente a metade da dívida. Não te peço esmola, senhor, pois quero ganhar meu sustento com as minhas mãos... Lembra-te que somos todos mortais, senhorzinho! E que tenho que alimentar duas bocas: a filha parida e o recém-nascido... A filha, por falta de sustança, está ficando sem leite, senhor, porque, em não tendo, com perdão, o que meter entre os dentes, o seu corpo não dá coisa alguma, nem para a criança, nem para o trabalho...

Impaciente, Raimundo franzia o cenho. Estavam-lhe malogrando a ocasião favorável de matar as codornizes. E, afinal de contas, ele não entendia bulhufas daquele imbróglio. Fez um movimento para desviar-se do velho, que continuava a atravessado no caminho, e resmungou:

Bem, bem… Vou perguntar a Frazais… Vamos ver o que ele me diz sobre toda a tua história…

A Frazais! Ao mordomo implacável, ao exator, à cunha do mesmo pau, àquele que ria das necessidades, desgraças e agonias dos pobres! A esperança de João, o oleiro, de repente se extinguiu como vela quando soprada. Reprimiu um suspiro soluçante, uma queixa furiosa e surda. Ergueu a cabeça e, afastando-se sem dizer uma palavra, pôs o chapéu surrado e desapareceu no bosque de castanheiras, cujos galhos estalaram como se à passagem de uma fera...

Vagando desesperadamente, sem rumo algum, triste de morte, João encontrou-se, depois de meia hora, nos jardins da quinta, que lindavam com a olaria, e parou ao ouvir uma voz fresca que gorjeava palavras truncadas e carinhosas. Por entre os troncos das árvores, ele viu, sentada em um banco de pedra, uma jovem mulher amamentando uma criancinha. Bem conhecia João a ama de leite: era Juliana, esposa de Gório Nogueiras. Mas quão bela, quão gorda estava ela, tão diferente de quando colhia batatas, ajudando o marido! Nossa Senhora, o que a sustança faz! O seio que Juliana descobria, e sobre o qual o sol incidia naquele momento, parecia uma bola de manteiga, branca e redonda…

E João, lembrando-se de que a sua filha ia secando, ouvia com indescritível cólera o “glu, glu…” do jorrinho regalado de doce leite que escorria por entre os lábios do menino, filho do senhorzinho Raimundo, leite que lhe forniria umas carnes ainda mais roliças que a de Juliana, umas carnes rosadas, tenras como as de um leitãozinho…

Enquanto João contemplava o grupo, sentindo tentações veementes e absurdas de sair e fazer uma barbaridade para vingar-se daqueles a quem pouco importava que os pobres explodissem. Um homem, um lavrador, deslizava sorrateiramente ao banco onde Juliana amamentava. João o reconheceu e entendeu: ele era o marido da ama, Gório Nogueiras. A completa ausência de surpresa e a expressiva acolhida que Juliana deu ao recém-chegado provaram-lhe que o casal tinha por costume ver-se e falar-se assim, em segredo, naquele recanto isolado.

Juliana havia, prontamente, retirado o seio dos lábios do pequerrucho e, revelada a sua face diminuta, iluminada pelo sol claro, João se surpreendeu: o filho do senhorzinho Raimundo assemelhava-se ao neto do oleiro assim como um ovo parece-se com outro. Todas as crianças pequenas são parecidas; mas aqueles dois eram exatamente idênticos: os mesmos olhos azuis, o mesmo nariz um tanto largo, a mesma pele de nata de leite, o mesmo penacho louro saindo do gorro e caindo em duas mechas ralas sobre a fronte saliente.

Quão iguais são os ricos aos pobres enquanto não começa a escravidão do trabalho e a falta de sustança! João, pensando assim, deu dois passos à frente para ver melhor; as folhas farfalharam, e Juliana e Gório, assustados, quase se ajoelharam para implorar, por caridade, que não os denunciassem, que nada dissesse aos patrões do que tinha visto… Ora, falar o marido com a mulher não é pecado algum! Foi isto o que Gório exclamou, rogando ao oleiro que lhe desse razão. Quando se viu, entre os cristãos, privar o marido da vista da esposa?

Nada temas — declarou João. — De minha parte, acho que os patrões não precisam saber disso… Eles lá que se ajudem, que nós nos ajudamos também… Não somos espiões, rapaz, nem vamos levar ninguém a pique… Eu… delatar-vos…?! Antes, cortem-me o pescoço… E se quiserdes ficar em paz e na graça de Deus, levarei o menino para minha casa… Lá, iremos entretê-lo, e tu, Juliana, poderás buscá-lo depois. Já conheces o caminho: atrás dos castanheiros, virando à direita…

E se a joiazinha de Deus chorar? — perguntou Juliana com a involuntária e instintiva solicitude da ama pela criança.

Se chorar, minha filha lhe dá o peito… Como tu, ela está criando um menino… — respondeu decisivamente o velho João, em cujos olhos lacrimejantes e marejados brilhava uma centelha de vontade diabólica. E, pegando o menino cuidadosamente, embalando-o e dizendo-lhe coisas a seu modo, foi embora rapidamente, deixando o casal livre e satisfeito.

Três quartos de hora depois, Juliana, sozinha, inquieta, muito receosa de, ao voltar para casa, levar uma reprimenda por estar atrasada, foi buscar o menino no casebre do oleiro, uma mísera vivenda desmantelada, onde o frio e a chuva penetravam sem dificuldade, mercê do telhado sem forro e das rachaduras e buracos nas paredes. Ela não precisou entrar: na porta, obstruída por pilhas de estrume e mato, sobre as quais duas galinhas magricelas ciscavam, o oleiro já a esperava com a criancinha nos braços, embalando-a para que não chorasse…

Ai, meu tesouro! Que saudade ele tinha de mim... Por que bota esta cara feia? Até parece mais magro! Sim, as roupas lhe estão caindo! — gritou a ama de leite, apoderando-se do menino e apressando-se em desabotoar-se para oferecer-lhe um consolo eficaz pelo momentâneo abandono…

Com o tempo ele bota uma cor bonita, mulher; logo vai botar — afirmou, filosoficamente, o velho.

E enquanto a mulher, conturbada, abraçando e encharcando o anjinho, corria em direção à quinta, João, o oleiro, sorria com a boca desdentada e esfregava as mãos secas, pensando com seus botões:

Vão expulsar-nos e iremos pelo mundo pedindo uma esmolinha... Mas aquele que é o meu neto não há de passar necessidade; quanto ao filho dos patrões... esse, que aprenda a cozer telhas quando tiver idade suficiente... se chegar a tê-la, sabe Deus!... Em casa de pobre, as criancinhas morrem como moscas…

 

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